A culpa tóxica do Ocidente

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“Eu, que tenho alimento suficiente e uma vida bastante confortável, sinto culpa (embora eu não tenha relação pessoal direta com você) porque você passa fome ou é destituído de seus direitos civis e sofre de opressão política.”

(James Burnham)

Qualquer análise factual simples é suficiente para identificar com clareza os ataques sistemáticos que o Ocidente está sofrendo, com investidas incessantes — ora dissimuladas, ora abertas, mas cada vez mais ostensivas —, com vistas a destruir todas as suas instituições. As agressões começam com a distorção da própria concepção filosófica da natureza humana e chegam à política, à economia, à religião, à cultura, às artes e à maioria dos costumes, enfim, a tudo o que possa lembrar a nossa tradição. Nada escapa aos detratores em sua ânsia destruidora dos princípios, valores e instituições forjados ao longo de séculos de aprendizado e aperfeiçoamento, que estabeleceram a civilização e aboliram a barbárie.

Sem dúvida, nós, os ocidentais, estamos em uma guerra de âmbito mundial, mas travada sem mísseis, porta-aviões e caças supersônicos, em que o objetivo dos nossos inimigos é quebrar o processo evolutivo natural da civilização e substituí-lo pela utopia de uma sociedade global que chamam de justa, igualitária, inclusiva, diversa, verde e uma penca interminável de vários outros adjetivos bonitos e politicamente corretos, supostamente imprescindíveis e impostos com a cumplicidade da imprensa. Embora dispense os armamentos convencionais (ou aparente fazê-lo), essa guerra tem um enorme potencial destrutivo sobre as realizações que a humanidade alcançou.

Os inimigos da civilização querem demolir tudo, apagar a história e recomeçar do zero, recriando outra, nova em folha (mas velha em falha), de acordo com o seu modelo racionalista extremado, profundamente autoritário. É um exótico “Exército de Brancaleone”, em que se destacam socialistas, comunistas, identitários de gênero, globalistas, feministas, ambientalistas, representantes de “povos originários”, esquerdistas em geral e outros grupos, cada um dos quais com características peculiares facilmente identificáveis, mas que guardam muitos objetivos em comum, dos quais o principal é, simplesmente, em nome do “bem da humanidade”, mandar na vida alheia.

No front ocidental, a vítima desses ataques, infelizmente, identifica-se há décadas um processo de diátese, algo como uma predisposição mórbida para entregar os pontos e que, nos últimos anos, vem se exacerbando, não sendo implausível supor que em pouco tempo atingirá um ponto de ruptura. O filósofo norte-americano James Burnham (1905-1987), escrevendo nos anos 1960 do século passado (portanto, há 60 anos), relatou as origens e características de sua dinâmica no livro O Suicídio do Ocidente — Um Ensaio Sobre o Significado e o Destino do Esquerdismo, em que procurou, em tempos de guerra fria, apontar o declínio cultural e acelerado da civilização ocidental, especialmente a partir da década de 1930, e propor respostas para a importante pergunta: como o Ocidente chegou a esse ponto?

Para isso, Burnham analisou a evolução da ideologia esquerdista desde a sua origem, mostrando a concepção que seus defensores têm da natureza humana, suas crenças infundadas, suas falácias e ao mesmo tempo seu poder atrativo, concluindo que aquilo que denominou de tendências suicidas ocidentais não tem ligação com a escassez de recursos, a pobreza ou com alguma queda de poder militar, e sim com a corrosão dos elementos intelectuais, morais, éticos e espirituais da sociedade ocidental. A partir dessa deformação, Burnham critica o comunismo e outras formas de totalitarismo, cujo objetivo é exilar as liberdades individuais da sociedade ou, preferencialmente, matá-las, substituindo-as pela centralização de poder e pela gestão burocrática.

Passaram-se 60 anos e, obviamente, muitas coisas aconteceram. A União Soviética, o Muro de Berlim e a guerra fria saíram de cena, as Torres Gêmeas desabaram, o terrorismo cresceu no mundo, a China ascendeu à categoria de grande potência, a Europa foi invadida por milhões de fugitivos da fome ou de ditaduras, a Ucrânia foi invadida pela Rússia, o Hamas assassinou inocentes em Israel, houve crises, guerras localizadas etc. Mas a profecia de Burnham de que o Ocidente estava cometendo suicídio ao aceitar passivamente a corrosão de seus valores e instituições promovida por seus inimigos esquerdistas está prestes a se consumar. Seis décadas depois, o Ocidente subiu ao terraço do arranha-céu e ameaça se atirar lá de cima, aos gritos dos progressistas e globalistas de “Pula! Pula!”.

O que mais espanta em tudo isso é a passividade com que o Ocidente aceita a artilharia pesada de seus inimigos, como que assumindo uma culpa por algo que não fez ou, se fez, foi por circunstâncias específicas de tempo e lugar, que ele mesmo descartou ao atestar que não era bom, seja moralmente, seja por qualquer outro motivo revelado pelos fatos, por exemplo, os horrores da escravidão. É uma culpa tóxica, situação descrita pela psicologia como aquela em que os indivíduos se sentem culpados por ações que não praticaram ou que estavam fora do seu controle.

Não é curioso, também, reparar que muitas manifestações de ativistas contra o racismo, a homofobia e o machismo acontecem exatamente nos países em que esses grupos mais desfrutam de respeito?

Convenhamos que é “forçar demais a barra” apontar o dedo para alguém cujo tataravô foi dono de escravos no sul dos Estados Unidos ou no interior do Estado do Rio de Janeiro e acusá-lo de escravagista, além de lhe atribuir culpa e lhe enviar o boleto de uma “dívida histórica”. No entanto, muitos brancos aceitam passiva e toxicamente uma culpa que não lhes cabe, sendo aplaudidos por esse motivo, enquanto, ao mesmo tempo, atribui-se sumária e automaticamente a muitos negros conscientes, cujos antepassados foram escravos, mas que negam essa suposta dívida, a pecha de traidores da causa antirracista. A mesma atitude de julgar seletivamente, ou seja, de acordo com as preferências ideológicas, vale para mulheres que se opõem ao feminismo, homossexuais contrários à ideologia de gênero, pobres que não se consideram vítimas do capitalismo e índios que não querem ser tratados como bibelôs para turistas.

Não é curioso, também, reparar que muitas manifestações de ativistas contra o racismo, a homofobia e o machismo acontecem exatamente nos países em que esses grupos mais desfrutam de respeito? Entretanto, se nos deixarmos iludir pelo “plim plim” do noticiário convencional, é provável que passemos a acreditar que, de fato, o Ocidente é o grande responsável pelo que existe de pior no mundo e que nos sintamos culpados pelo Holocausto e pela escravidão, ao mesmo tempo que ignoramos a existência nos dias atuais de campos de concentração, de escravidão e de torturas a cristãos e a outras minorias em nações não ocidentais.

É espantoso observar a inércia e a toxidade da culpa com que a cultura que mostrou maior capacidade de fornecer progresso econômico, qualidade de vida e segurança recebe o bombardeio diário a que é submetida por uma infinidade de porta-vozes das ideias que mais produziram pobreza, miséria, más condições de vida e insegurança, além de guerras e êxodos. É digno de nota também que os arautos da nova ordem mundial, embora sejam livres para viver em qualquer lugar do planeta, prefiram continuar a morar nos Estados Unidos e na Europa, ou seja, nas nações mais representativas da cultura ocidental.

É ponto pacífico que os valores em que acreditamos servem de guias para nossas condutas. Uma das características dos inimigos do Ocidente foi a alteração paulatina, ao longo do século passado, da ordem de importância de quatro valores fundamentais (dos quais ninguém, supõe-se, discorda), a saber: liberdade individual, soberania nacional, justiça e paz. Para os progressistas do século 19 essa era, rigorosamente, a ordem; depois, até mais ou menos os anos 1930, a justiça ascendeu ao primeiro posto, e a ordem passou a ser justiça, liberdade individual, soberania e paz; da Segunda Guerra aos anos 1960, a escala de prioridades passou a ser justiça, liberdade individual, paz e soberania; em seguida, desde que as armas nucleares deixaram de ser monopólio dos Estados Unidos, a nova ordem adotada passou a ser paz, justiça, liberdade individual e soberania; e, atualmente, a ordenação inclui um novo elemento com precedência sobre os demais e passou a ser meio ambiente, paz, justiça, liberdade individual e soberania. É a primazia da “Mãe Terra”.

Essas trocas de posições mostram resumidamente o crescimento nas hostes progressistas da importância relativa das ideias de reformas sociais e do Estado provedor, assim como a passagem da ênfase da soberania para o internacionalismo. Malgrado os dois maiores inimigos atuais do Ocidente a saber, o progressismo e o globalismo não sejam o mesmo fenômeno, é muito difícil encontrar alguém que aceite ser chamado de progressista, mas que não goste de ser chamado de globalista ou vice-versa. Um se alimenta do outro.

Quanto ao conservadorismo, embora não enfatize prioridades dentro dos quatro valores, podemos dizer que, muito provavelmente, nos dias atuais, atribua maior realce à liberdade individual e à soberania nacional do que no passado, até para que possa sobreviver. Conservadores, em princípio, não são contra mudanças, a não ser que sejam radicais e impostas de cima para baixo por meia dúzia de cabeças iluminadas o que, sem dúvida, é exatamente o que vem acontecendo. A própria civilização ocidental nada mais é do que o fruto, permanentemente renovável, de um longo processo de mudanças, porém sempre baseadas na prudência. Além disso, parece óbvio que a trajetória evolutiva do Ocidente sempre contemplou mais mudanças do que a dos outros países e regiões, muitos dos quais ainda mantêm hábitos pré-medievais. Para o conservador de 2024, é impossível duvidar que os maiores perigos que rondam a nossa civilização sejam exatamente as ameaças às liberdades individuais e à soberania nacional.

Cada vez mais a tradição ocidental vem sendo acusada de ser ultrapassada e de ser causadora de vergonha, deixando de ser festejada como um arranjo superior e passando a se tornar motivo de constrangimento. Seus inimigos recorrem a um procedimento que tem se mostrado infalível: criticam praticamente tudo que faz parte da ordem social do Ocidente, mas condenam principalmente o que é mau dentro dessa ordem, gerando estados de alarmismo, mas sem proporem nada de concreto em substituição, a não ser uma vaga sociedade do futuro, em que reinarão a paz, a harmonia, a satisfação das necessidades materiais e a justiça “social”. Assim, de tanto ouvir que os colonizadores foram malvados, o sujeito acaba sentindo vergonha de ser descendente de europeus; de tanto escutar que as mulheres sempre foram maltratadas, termina manifestando vergonha pelo simples fato de ser homem; e, de maneira geral, as maiorias são levadas a se sentirem culpadas perante as minorias, sem qualquer razão racional e moral para isso.

A guerra contra a cultura ocidental está em todos os lugares, o tempo inteiro: nos jornais impressos e eletrônicos, nas estações de TVs e rádios, nas escolas e universidades, do maternal ao pós-doutorado, nos estádios e quadras, nos palcos e telas de cinema, em casa, nas ruas, nos escritórios, em muitas igrejas e ONGs, em cima e embaixo, na cidade, na praia, no campo, na chuva e no sol. Todas as instituições culturais do Ocidente, em especial o seu principal fundamento, que é a tradição judaico-cristã, enfrentam enormes pressões para se afastarem de seu passado e, muitas vezes, para simplesmente abandoná-lo.

Se não reagirmos a tempo e continuarmos permitindo que os críticos deturpem e reescrevam à sua maneira o nosso passado, teremos que aceitar trocá-lo pelo futuro que eles planejam para todos nós, um amanhã sombrio, em que não seremos donos de nada, mas seremos muito realizados e felizes, simplesmente porque eles querem que nos sintamos assim e porque só assim é que pagaremos as nossas “culpas”.

*Artigo publicado originalmente na Revista Oeste.

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Ubiratan Jorge Iorio

Ubiratan Jorge Iorio

É economista, professor e escritor.

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