Uma breve biografia intelectual de Ludwig von Mises
Introdução
O texto a seguir é fruto de um esforço para reunir informações bibliográficas anteriormente dispersas sobre a biografia intelectual de Ludwig von Mises, com o intuito não apenas de organizá-las de forma sistemática, mas também de apresentá-las com maior riqueza de detalhes, oferecendo uma modesta, mas significativa contribuição para o entendimento da vida e obra deste grande autor.
Mais do que simplesmente sanar curiosidades, acredito que este texto cumpre uma função bibliográfica importante para todo estudante ou pesquisador interessado na obra de Mises. Primeiro, facilita o acesso a informações que antes se encontravam dispersas e pouco detalhadas. Depois, contribui para desfazer suposições e concepções implícitas sobre sua obra, que muitas vezes diminuem a relevância da evolução no interior de seu pensamento.
A questão da evolução do pensamento de Mises é complexa, e não cabe explorá-la a fundo em um texto que também busca celebrar sua vida e obra. Ainda assim, é importante que o leitor perceba, por exemplo, que Mises não foi imediatamente reconhecido pelos membros da Escola Austríaca de sua época, e que seu pensamento não girava desde o início em torno da ideia de uma praxeologia, que aparece em sua obra — e ainda não em sua forma mais completa — apenas vinte e oito anos após o início de seus trabalhos teóricos.
Vida e Obra de Von Mises
Ludwig Edler von Mises nasceu em 29 de Setembro de 1881, na então cidade de Lemberg,[1] pertencente ao Império Austro-Húngaro, tendo iniciado seus estudos em Direito na universidade de Viena no ano de 1900 e obtendo o seu doutorado em 1906. Na época, esse era o único caminho para quem desejasse perseguir carreira em Economia no interior da academia, quando a disciplina ainda atendia pelo título de “Economia Política.”
Sua aproximação com a Economia se deu no final de 1903, a partir da leitura de Princípios de Economia Política,[2] escrita por Carl Menger e tida como a obra seminal da Escola Austríaca de Economia. Por volta de 1904, passou também a frequentar o seminário conduzido pelo notório economista austríaco Eugen von Böhm-Bawerk, discípulo de Menger.
Durante seu tempo frequentando o seminário, Mises passou a escrever artigos sobre questões técnicas relativas à economia de seu país, destacando-se Die Wirtschaftspolitischen Motive der Österreichischen Valutaregulierung[3] em 1907, e Das Problem gesetzlicher Aufnahme der Barzahlung in Österreich-Ungarn[4] em 1909, quando já atuava como conselheiro na Câmara Austríaca do Comércio.
Em 1912, prestou sua primeira contribuição teórica relevante à Ciência Econômica, a partir da publicação de Theory of Money and Credit,[5] onde, além de introduzir inovações terminológicas expandindo o conceito de crédito, integrou os estudos em Teoria Monetária à estrutura ampla das questões relativas à Economia como um todo, superando uma lacuna teórica que assolava a economia desde a sua origem, oferecendo o caminho para o fim do apartamento teórico entre os estudos da Microeconomia (relação entre oferta e demanda de bens específicos, atividade empresarial etc.) e da Macroeconomia (taxa de juros, inflação, emprego e desemprego etc.). É também nesta obra que aparece pela primeira vez a Teoria Austríaca dos Ciclos Econômicos.
Böhm-Bawerk e os colegas de Mises no seminário enxergaram valor na obra, que estabeleceu contribuições terminológicas ao conceito de crédito, bem como apresentou uma teoria cíclica sobre o padrão das crises econômicas, baseando-se na expansão da base monetária. Entretanto, o que Mises considerava como sua principal contribuição teórica, a unificação metodológica entre análises micro e macroeconômicas, não foi bem recebida, sendo criticada unanimemente por seus pares.
Talvez por isso, Mises iniciou o seu próprio seminário na universidade de Viena no ano de 1913, onde lecionou para um grande número de estudiosos que também vieram a se tornar bastante celebrados. Entre os destaques, estão Friedrich Hayek, Fritz Machlup, Oskar Morgenstern, Alfred Schütz, Erich Voegelin e Lionel Robbins. O sucesso acadêmico desse distinto grupo de intelectuais contribuiu decisivamente para o prestígio que a obra de von Mises adquiriu posteriormente – a exemplo de Hayek, que, ao lecionar na London School of Economics levou a influência misesiana para além da Áustria.
Suas atividades intelectuais sofreram uma pausa abrupta em 1914, quando foi convocado para servir no front da Primeira Guerra Mundial como capitão de artilharia na cavalaria austro-húngara, posteriormente retornando a Viena, onde, ainda em serviço, trabalhou resolvendo questões relacionadas à economia de guerra.
Em 1918, Mises retornou à vida civil e, consequentemente, às suas atividades no seminário e na Câmara de Comércio. No mesmo ano, auxiliou no projeto de reconstrução da Sociedade Austríaca de Economia.[6] No ano seguinte, publicou o seu segundo livro: Nation, State and Economy,[7] que marca uma primeira incursão pela filosofia política.
Em 1920, publicou O Cálculo Econômico sob uma Comunidade Socialista,[8] artigo polêmico, que, em 1922, foi integrado à obra Socialismo: Uma análise Econômica e Sociológica.[9] O artigo destaca o papel dos preços como fatores cruciais de calculabilidade, sendo a possibilidade desse cálculo econômico o fator determinante da viabilidade de qualquer sistema de alocação de recursos. Do modo como o argumento corre, sem que possam ser livremente determinados, os preços não mais cumprem seu papel em definir como, quando e onde alocar os recursos econômicos de modo racional, e aí está o fator que invariavelmente resulta no fracasso de qualquer experimento socialista, cedo ou tarde.
O leitor contemporâneo pode perceber, ao observar os diversos fracassos dos regimes socialistas na segunda metade do século XX, como os argumentos de Von Mises se confirmaram. No entanto, os interlocutores de Mises nos anos 1920 viviam outra realidade: viam, com certo entusiasmo, a União Soviética se industrializando como nunca antes. Economistas renomados de todo o mundo visitavam o país para estudar seu modelo econômico, sendo, é claro, alvo de intensa propaganda soviética. Na época, muitos nos círculos políticos e intelectuais passaram a considerar a ideia de que o socialismo poderia ser uma alternativa viável à economia de mercado.
Esse contexto reforça o brilhantismo singular da observação de Mises acerca da impossibilidade do cálculo econômico sob o socialismo, pois posiciona-o perspicazmente contra a tendência sedutora da época de identificar em saltos de crescimento econômico uma tendência positiva para o longo prazo.
Transcorridos doze anos e uma guerra mundial desde a sua publicação, Theory of Money and Credit ganhou uma segunda edição em 1924, na qual o texto revisado passou por algumas alterações estruturais. Mais notadamente, a adição de três seções: sobre a política bancária no entreguerras, o expediente teórico e prático de intervenções estatais na moeda e sobre a classificação taxonômica de teorias monetárias.
Na segunda edição, encontram-se também pequenas adequações terminológicas e adições de passagens, frutos da preocupação de Mises em garantir que a evolução em seu pensamento, em especial com relação à natureza do juro e das crises econômicas, fosse devidamente aplicada à sua teoria. A essência do trabalho, suas conclusões e contribuições à Economia, no entanto, permaneceram inalteradas.
Em 1927, Mises fundou o Instituto Austríaco Para Pesquisa em Ciclos Econômicos,[10] publicando no mesmo ano Liberalismo.[11] No anos seguintes, lançou um manifesto anti-inflacionário intitulado Monetary Stabilization and Cyclical Policy[12] (1928), e também Crítica ao intervencionismo[13] (1929) e The Causes of Economic Crisis[14] (1931).
Publicou Epistemological Problems of Economics[15] no ano de 1933, compilando uma série de artigos nos quais vinha trabalhando desde 1928. Sua publicação marca o momento em que as questões relativas à Epistemologia e ao método das Ciências Sociais passaram a ser abordadas de forma central na bibliografia de Von Mises.
Essa obra torna explícita a sua adesão filosófica ao neokantismo dos autores da Escola de Baden;[16] ao menos no que diz respeito à aceitação de um dualismo metodológico entre ciências naturais e ciências humanas,[17] colocando-se também ao lado de Max Weber, à medida em que sua Sociologia Compreensiva[18] aprofunde este projeto, aplicando-o às Ciências Sociais. Mises representou assim um marco na história do pensamento econômico, a partir da proposta do que poderíamos chamar de princípios epistemológicos de uma Economia Pura, no sentido kantiano do termo, encontrando no apriorismo a chave para o entendimento das questões próprias à Ciência Econômica.
A obra em questão é, portanto, fundamental para situar Mises com relação à Filosofia e pensamento sociológico de sua época, destacando suas raízes intelectuais e, com isso, sendo instrumental à devida compreensão do desenvolvimento de seu sistema de pensamento.
Por fim, a obra clarifica o ponto de cisão entre o pensamento de Mises e o de seus predecessores da Escola Austríaca de Economia: Menger e Böhm-Bawerk, destacando a singularidade que já se observava de forma tácita em Theory of Money and Credit, mas que então foi incorporada a um panorama epistemológico explícito.
Em 1934, Mises deixou Viena rumo a Geneva, assumindo uma cadeira como professor no Instituto de Estudos Internacionais,[19] onde permaneceu até 1940. Por sua origem judia, desde o início da Segunda Guerra, a presença de Mises na Suíça passou a ser considerada uma situação demasiadamente delicada para a segurança nacional, e, por “não mais suportar viver em um país que considerava a [sua] presença um fardo político” (MISES, 2009, p. 116), ele deixou a Suíça em julho, rumo aos Estados Unidos.[20]
Também em 1940, publicou um extenso tratado intitulado Nationalökonomie: Theorie des Handelns und Wirtschaftens,[21] a primeira obra em que utiliza o termo “praxeologia” e, portanto, um divisor de águas da maturidade de seu pensamento. Seu objetivo, agora munido do arcabouço epistemológico construído em Problemas Epistemológicos da Economia, era de superar as questões legadas por seus predecessores da Escola Austríaca, sendo as mais importantes o status epistemológico dos construtos de estados de equilíbrio e a divisão entre a Teoria Monetária e a Teoria do Valor. (SALERNO, 1999, p. 57).
Foi professor visitante na Universidad Nacional Autónoma de México durante dois meses em 1942 e na New York University a partir de 1945. Em 1946, foi membro da Comissão de Princípios Econômicos, da National Association of Manufacturers, e tornou-se conselheiro na Foundation for Economic Education, posição que reteve durante o resto de sua vida.
Em 1947, publicou Caos Planejado, sua primeira obra escrita diretamente na língua inglesa, que desde então tornou-se o idioma padrão em seus trabalhos até o fim de sua vida. No mesmo ano, esteve envolvido na fundação da Sociedade Mont Pèlerin, por onde passaram nomes desde Karl Popper até Mario Vargas Llosa.
Von Mises finalizou aquela que veio a ser largamente considerada como a sua magnum opus, Ação Humana, no ano de 1949. Interpretada por seus comentadores como a sucessora, mais robusta, de Nationalökonomie, a obra apresenta conteúdo amplo e bastante heterogêneo, contendo discussões metodológicas e epistemológicas de modo bastante abrangente, assim como discussões políticas, econômicas (em sentido tanto teórico quanto prático), culturais e muitas outas mais. Trata-se sem dúvida do maior esforço de Von Mises na construção de um sistema coeso, que se esgotasse em grande medida em si mesmo e que fosse capaz de integrar todo o corpo das ciências sociais a partir da filiação comum a uma ciência originária: a Praxeologia, cujo intuito seria de levar a cabo o estudo puro da Ação Humana.
Em 1952, publica Planning for Freedom, And Other Essays and Addresses, uma coletânea de artigos que vinha acumulando desde 1945. É nela que encontramos o ensaio Profits and Losses, onde o lucro é apresentado como decorrência de um processo de ajustes da estrutura de capital a novas configurações de demanda, enfatizando o caráter de dinamicidade que Mises confere à análise da Economia desde Theory of Money and Credit, em oposição à ênfase na ideia de equilíbrio avançada pela Escola Neoclássica, que, de acordo com Mises, ainda podia ser residualmente identificada no pensamento econômico de seus predecessores austríacos: Menger e Böhm-Bawerk.
Sua penúltima obra em vida foi lançada no ano de 1957, sob o título de Teoria e História. Nela, é retomado o diálogo estabelecido em Problemas Epistemológicos de Economia com a obra de Max Weber, abordando as especificidades teóricas presentes na interpretação de fenômenos históricos a partir de categorias típico-ideais e de fenômenos econômicos a partir de categorias praxeológico-apriorísticas. Essa dicotomia, em um certo sentido, funciona como a versão mais refinada da Methodenstreit original.
Em 1962, Mises lançou seu último trabalho: Os Fundamentos Últimos da Ciência Econômica, com o objetivo de complementar suas principais contribuições epistemológicas à Economia, que, segundo o próprio autor, estão presentes sobretudo em Ação Humana e em Teoria e História.[22] Ao destacar essas duas obras, não parece ser coincidência que ele deixe de mencionar Epistemological Problems of Economics. Provavelmente, seu entendimento era de que a verdadeira essência de seu pensamento epistemológico só se consolidou após sua adesão à Praxeologia.
Ainda em 1962, Von Mises foi laureado com a Medalha Austríaca de Honra para Ciência e Arte[23]; no ano seguinte, com o título de doutor honoris causa pela Universidade de Nova Iorque, e também em 1964 pela universidade de Friburgo. Aposentou-se no ano de 1969, aos oitenta e sete anos, e só então encerrou as atividades de seu seminário na Universidade de Nova Iorque, que até esse ponto vinha sendo conduzido semanalmente desde 1945 sem interrupções.
Ludwig Edler von Mises faleceu no St. Vincent’s Hospital em Nova Iorque aos noventa e dois anos no dia 10 de outubro de 1973. Em seu obituário no New York Times, Leonard Silk destaca-o como um dos mais importantes economistas do século XX, profundamente respeitado inclusive por seus mais ferrenhos oponentes intelectuais, como o socialista Oskar Lange.
Aqui, foi ressaltada a grande importância de Von Mises na história do pensamento econômico, mas, ao celebrar sua vida e obra, é importante mencionar que sua integridade moral é frequentemente destacada como igual à sua inteligência. Ele nunca permitiu que as experiências das duas guerras mundiais que presenciou ofuscassem sua visão de mundo e lutou até o fim na batalha das ideias por aquilo que acreditava ser certo.
É um tributo final ao espírito indomável de Ludwig von Mises o fato de que ele continuou a conduzir seu seminário na NYU toda semana, sem interrupção, até a primavera de 1969, quando se aposentou como, sem dúvida, o professor ativo mais velho dos Estados Unidos, ágil e enérgico aos 87 anos de idade. (ROTHBARD, 2009, p. 44)
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Bibliografia:
GREAVES, B. B.; MCGEE, R. W. Mises: An annotated bibliography : A comprehensive listing of books and articles by and about Ludwig Von Mises. New York: Foundation for Economic Education, 1993.
MISES, L. The ultimate foundation of economic science. New York: D. Van Nostrand Company, 1962.
MISES, L. Epistemological problems of economics. Auburn: Ludwig von Mises Institute: 2003.
MISES, L. Memoirs. Auburn: The Ludwig von Mises Institute, 2009.
ROTHBARD, M. The Essential Von Mises. Auburn: The Ludwig von Mises Institute, 2009.
SALERNO, J. T. The place of Mises’s Human Action in the development of modern economic thought. The quarterly journal of Austrian economics, v. 2, n. 1, p. 35–65, 1999.
SILK, Leonard. Ludwig von Mises, economist, author and teacher, dies at 92. The New York Times [online], Nova Iorque, 11 out. 1973. Disponível em: https://www.nytimes.com/1973/10/11/archives/ludwig-von-mises-economist-author-and-teacher-dies-at-92.html. Acesso em: 02/10/2024.
[1] Cidade esta que com a dissolução da Áustria-Hungria após a Primeira Guerra Mundial, tornou-se Lwow, integrando a Polônia. Tornou-se ainda Lvov, sob o domínio da União Soviética no pós Segunda Guerra, até tornar-se Lviv, como a conhecemos hoje, parte do território da Ucrânia.
[2] Original: Grundsätze der Volkswirtschaftslehre.
[3] Em tradução livre: Os Motivos Econômicos Para os Controles Cambiais Austríacos.
[4] Em tradução livre: O Problema da Retomada Legal dos Pagamentos em Ouro na Áustria-Hungria.
[5] Original: Theorie des Geldes und der Umlaufsmittel.
[6] Nationalökonomische Gesellschaft.
[7] Original: Nation, Staat und Wirtschaft.
[8] Original: Die Wirtschaftsrechnung im sozialistischen Gemeinwesen.
[9] Original: Die Gemeinwirtschaft: Untersuchungen aber den Sozialismus.
[10] Österreichisches Institut für Konjunkturforschung.
[11] Original: Liberalismus.
[12] Original: Geldwertstabilisierung und Konjunkturpolitik.
[13] Original: Kritik des Interventionismus: Untersuchungen zur Wirtschaftspolitik und Wirtschaftsideologie der Gegenwart.
[14] Original: Die Ursachen der Wirtschaftskrise: Ein Vortrag.
[15] Original: Grundprobleme der Nationalökonomie.
[16] Nominalmente: Wilhelm Windelband e Heinrich Rickert; Cf. MISES, 2003, p. 83.
[17] O contraste entre Naturwissenschaften e Geisteswissenschaften.
[18] Verstehende Sociologie.
[19] Institut Universitaire des Hautes Etudes Internationales.
[20] A Áustria havia sido anexada pela Alemanha Nazista dois anos antes.
[21] Em tradução Livre: Economia: Teoria da Ação e da Troca.
[22] Cf. MISES, 1962, p. vii (prefácio).
[23] Österreichisches Ehrenzeichen für Wissenschaft und Kunst.
*João Martins é cofundador e presidente do Instituto Escafandristas, dedicado à difusão do liberalismo na produção acadêmica, por onde publicou a obra Ação Humana e a Teoria do Conhecimento. Atualmente, é mestrando em Teoria do Conhecimento pela PUC-SP, onde também integra o Grupo de Pesquisa “Origens da Filosofia Contemporânea” (CNPq), pesquisando sobre o pensamento epistemológico de Ludwig von Mises. Além disso, atua na Equipe de Educação do Instituto Libertas, contribuindo para a formação de quadros políticos em mais de 500 municípios em todo o Brasil.