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“O Liberalismo Francês”: um resgate necessário

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Entre inúmeros legados registrados em sua vasta obra, o professor Ricardo Vélez Rodríguez se tem destacado por seu esforço por realçar os méritos do liberalismo francês. Erroneamente, muitos de nossos liberais e conservadores, em virtude das vastas contribuições francesas ao democratismo rousseauniano, ao jacobinismo, ao socialismo e a ideologias correlatas, alimentam a falsa conclusão de que a França não nos legou nada de valioso em matéria de pensamento político. Os brilhantes trabalhos do professor Vélez no sentido de demonstrar o contrário ganham novo capítulo em sua mais nova publicação editorial, O Liberalismo Francês – A tradição doutrinária e a sua influência no Brasil, livro lançado pela editora Educação, Direito e Alta Cultura.

Com apresentação do saudoso professor Antonio Paim (1927-2021), que nela elogia a maturidade da obra, este trabalho foi escrito originalmente há vinte anos, embora não tenha sido acolhido à época para publicação. O autor fez circularem alguns de seus capítulos e trechos anteriormente, o que me permitiu reconhecê-los durante a leitura, mas trata-se de um trabalho fundamental de compilação que atende àqueles que desconhecem não apenas as brilhantes elaborações de liberais franceses entre os séculos XIX e XX como a importância de suas ideias para o liberalismo brasileiro da mesma época.

O eixo do esforço de Vélez é detalhar tanto quanto possível a tradição dos liberais doutrinários, grupo político que, na França pós-revolucionária, tentou pôr ordem ao caos sem renunciar às reformas liberais da modernidade, abdicando de qualquer retorno ao Antigo Regime, através da adoção do figurino da monarquia constitucional. Igualmente, os doutrinários se distinguiam por, ao mesmo tempo em que pensavam o país, engajar-se na luta política direta pelas transformações de que necessitava e pelo enraizamento de instituições sólidas que as garantissem sem o mergulho na subversão crônica. Essas teses pareceram muito atraentes à elite política imperial brasileira, que, conforme Vélez aponta, vivia situação mais semelhante à francesa dos doutrinários que à britânica: estava sanduichada entre os restos do absolutismo e a afobação dos exaltados rousseaunianos.

Aliás, em sua introdução, o professor ressalta que a influência dos doutrinários era muito bem-vinda para liberais conservadores de todo o mundo ibérico naquele século, incluindo-se aí a América Hispânica, ainda que, no caso do novo continente, não tenha prevalecido em outros lugares tanto quanto no Brasil, o que talvez ajude a explicar o sucesso da construção de nosso sistema institucional monárquico e da manutenção de nossa integridade territorial. De início, o professor delineia as características centrais dos doutrinários: sua condição de homens de ação moderados, ressaltando que, não obstante defendessem o voto censitário, temerosos da política de massas, também defenderam e aplicaram a paulatina ampliação do sufrágio; seu foco em “identificar as raízes históricas da civilização ocidental e, no contexto dela, da cultura francesa, a fim de pensar as novas instituições em consonância com as próprias tradições”, adotando a moderação em matéria de religião e separando a Igreja do Estado; sua adesão à filosofia do ecletismo espiritualista francês do século XIX, contrário ao excessivo materialismo dos ideólogos pregressos; a defesa de uma ética pública do “intelectual-homem de ação”, que admitia a união da teoria e da prática, sustentando “que o intelectual deve iluminar o político e que o político deveria fazer pousar na terra o intelectual”; e a inspiração nos ingleses para a apologia de uma monarquia constitucional com Parlamento bicameral.

A tese principal do livro, entretanto, transcende os doutrinários propriamente ditos: sustenta que eles constituem uma tradição que não se reduz a eles próprios, tendo tido precursores e continuadores, os quais, sem serem exatamente equivalentes aos pensadores que constituíram historicamente o grupo, estão vinculados aos seus valores e à sua concepção do intelectual politicamente engajado. É à reconstrução dessa assim chamada tradição e de suas influências no mundo político e intelectual brasileiro que se dedicam os seis capítulos.

O primeiro, iniciando a abordagem dos precursores dos doutrinários, é protagonizado por Madame de Staël (1766-1817), cujas ideias liberais, durante a Revolução Francesa, encontravam maior correspondência na facção moderada dos girondinos que no radicalismo de consequências despóticas do jacobinismo. Intitula-se Madame de Staël, precursora do liberalismo doutrinário. Nele, Vélez entende que essa pensadora demonstrava extrema atualidade ao professar uma “consciência clara da defesa incondicional da liberdade e do reconhecimento de que é possível conciliar os interesses individuais com os da comunidade”. O autor destaca o apaixonado combate de Staël ao autoritarismo napoleônico, sua defesa resoluta da agenda liberal – com fortes raízes kantianas – e seu entendimento da necessidade de atrelar a liberdade a instituições sólidas como aspectos que permitem considerá-la uma precursora dos doutrinários. Desenvolve ainda nesse primeiro capítulo os fundamentos da percepção otimista da autora sobre a perfectibilidade humana.

Além de uma rica descrição biográfica da ilustre pensadora, o capítulo também enfoca seu pai, Jacques Necker (1732-1804), banqueiro genebrino que foi ministro das Finanças de Luís XVI (1754-1793), em quem Ricardo Vélez também enxerga um precursor dos liberais doutrinários que abraçou a tentativa de implementação de uma política econômica reformista calcada na contenção de gastos públicos e na extinção de privilégios, conquanto fosse contrário à política econômica fisiocrata de Jacques Turgot (1727-1781). No pensamento de Necker, Vélez ressalta o apreço pela experiência como fonte de conhecimento, a defesa da necessidade de o governante merecer a confiança nacional, a importância de inserir as transformações políticas no contexto do processo histórico e sua preferência por uma monarquia temperada à maneira inglesa. Também destaca sua tese de que o livre mercado deve ser relativizado em determinados contextos de comércio interno ou exterior, embora seja positivo em princípio.

O segundo capítulo, Benjamin Constant de Rebecque e a sua influência no Brasil, traz o terceiro precursor dos doutrinários, exatamente Benjamin Constant (1767-1830), de origem suíça, que foi amante de Madame de Staël e impactou decisivamente o pensamento político brasileiro desde o Primeiro Reinado e a Constituição de 1824, tendo sido um dos fatores de inspiração para a concepção do Poder Moderador, que era privativo do monarca durante o Império, através da intermediação da obra de Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846). Conforme Vélez, a vida agitada e o caráter pouco sistemático da obra de Constant podem ter contribuído para que seu pensamento tardasse a ser intelectualmente resgatado na própria França onde atuou, bem como o afastamento daquele país dos pilares liberais que preconizava.

O texto traça o perfil biográfico e bibliográfico de Constant, elencando depois os alicerces de seu liberalismo. Pontua sua defesa ardorosa da liberdade de imprensa, sua inspiração lockeana e sua asseveração de que a soberania política deve ser limitada, em consonância com a defesa dos direitos inalienáveis à vida, à liberdade e à propriedade. Para além disso, enaltece em Constant a crença em que “o interesse geral, expressão do conjunto de interesses dos cidadãos, não era mais do que a resultante da negociação entre os interesses individuais. Para ele, a representação política, essencial para o funcionamento de um país moderno, era a instituição que possibilitaria esse processo de negociação entre os interesses individuais”. Também o pensador franco-suíço concebia esse sistema representativo sob a forma de um Legislativo bicameral, defendia a eleição direta e criticava acerbamente o democratismo rousseauniano. Compõe ainda o capítulo uma rica análise da obra de Pinheiro Ferreira e da interpretação que, na consolidação do Poder Moderador, deram à proposta de Benjamin Constant os estadistas que implantaram a monarquia do Brasil independente.

O terceiro capítulo, François Guizot e sua influência no Brasil, se dedica ao liberalismo doutrinário propriamente dito, com ênfase para seu maior líder político, François Guizot (1787-1874), notável por sua posição de proeminência como ministro da Educação e das Relações Exteriores durante o período conhecido como Monarquia de Julho na França, inaugurado com a Revolução de 1830. Descrevendo a trajetória de Guizot como estadista, historiador e pensador, bem como suas relações com seus correligionários e opositores, Vélez dá amplo destaque à natureza de sua reforma de ensino, calcada na descentralização e preocupada em generalizar a instrução primária e dar condições estruturais e morais para que “as classes médias acordassem para a sua responsabilidade histórica de configurar a estabilidade política”, favorecendo o desenvolvimento de uma opinião pública e de um espírito associativo.

Curiosamente, Vélez revela o conceito de “luta de classes” como uma concepção já presente na obra de Guizot antes de ser apropriada pelo Marxismo, conquanto a classe prestigiada pelo estadista francês tenha sido a classe média, identificada com a burguesia, que se deveria encarregar da maior responsabilidade na condução dos negócios públicos. O autor também relaciona as elaborações de Guizot na esfera da representação, demonstrando que, a despeito de ter sido inimigo declarado do sufrágio universal, o líder dos doutrinários trabalhou pela ampliação paulatina dos sufragantes. O capítulo descreve ainda como Guizot posicionava a Revolução de 1830 como a Revolução Gloriosa da França, cabendo aos doutrinários dar ao seu país o substrato filosófico de que as instituições e encaminhamentos políticos careciam, tal como John Locke (1632-1704) havia feito pelos britânicos. Conclusivamente, Vélez explicita as impressões colhidas de Guizot pelo liberalismo conservador brasileiro, particularmente na obra de Paulino José Soares de Sousa, o Visconde de Uruguai (1807-1866), icônico teórico do Partido Conservador de nosso Império.

Os três capítulos finais do livro se dedicam aos dois pensadores que o professor Vélez considera os principais continuadores dos doutrinários: Alexis de Tocqueville (1805-1859), no próprio século XIX, e Raymond Aron (1905-1983), no século XX. Nesses casos, o livro adota uma preocupação maior em esmiuçar seus pontos de vista que, essencialmente, permitem considerá-los um prolongamento dos doutrinários, do que em detalhar suas biografias; entrega-se, porém, a essa tarefa com o costumeiro brilhantismo. Em A problemática da democracia em Tocqueville e Aron, o autor aponta os dois personagens como pensadores que caminharam adiante dos doutrinários no sentido da admissão do aprofundamento da democracia como um figurino político inevitável a que a liberdade moderna se deveria moldar.

Conforme Vélez, o grande Tocqueville – que ele nos mostra como tendo, de certo modo, prenunciado, tanto tempo antes, não apenas a Guerra Fria, mas também a Guerra civil norte-americana e a independência da Índia – foi discípulo de Guizot, de muitas maneiras, mas questionou-o, e aos demais doutrinários, quanto ao voto censitário, suscitando o alargamento mais abrangente do sufrágio. Tanto nele quanto em Aron, Vélez enxerga o espírito atuante dos doutrinários, isto é, a recusa a aceitar uma posição unicamente teórica. Aponta a forma pela qual Tocqueville se convenceu da inevitabilidade da democracia e o ardor de Aron pelo Iluminismo, bem como seu desentendimento com Jean-Paul Sartre (1905-1980), a quem julgava “paracomunista”; dá enfoque também à concepção de História dos dois autores, a seu tributo à pré-sociologia de Montesquieu (1689-1755) e à sua ética pública, bem como à reflexão tocquevilliana sobre a pobreza. Acerca de Aron, ressalta que “a separação weberiana entre o político e o científico decorre”, de acordo com aquele pensador francês, “da índole abstrata e puramente formal em que o sociólogo alemão pensa os seus tipos ideais”, tendo-lhe faltado “considerá-los inseridos na concreção do mundo da vida. É o que o pensador francês tenta fazer ao pensar a ciência social e a política, do ângulo dos seus atores, o cientista e o político, encarnados na mesma pessoa”, seguindo a orientação dos doutrinários.  Segue-se uma farta resenha de A Democracia na América e uma reflexão sobre a relação entre democracia e liberdade no entendimento de Tocqueville e Aron.

O capítulo Presença de Tocqueville no Brasil mostra como os diferentes tipos de liberais do século XIX, dos mais conservadores aos que se lhes opunham, se apropriaram em graus e elementos diferentes da obra tocquevilliana, bem como elenca as diversas instituições brasileiras que, no século XX, se dedicaram ao estudo do escritor francês. Por fim, o sexto capítulo, Alexis de Tocqueville diplomata, estrategista e estudioso das Relações Internacionais, esmiúça as dimensões do trabalho de Tocqueville – obcecado com o acesso às fontes primárias ou observação presencial dos costumes e manifestações culturais dos países que estudava – sobre as relações internacionais e a percepção estratégica que a França deveria esposar no trato com as demais nações. Nesse contexto, Tocqueville as analisava profundamente, apreciando, por exemplo, a colonização francesa na Argélia – de que, estrategicamente, ele julgava não poder a França abdicar, já que outra potência, nessa eventualidade, tomaria o seu lugar; condenava, porém, a escravidão, e apontava a capacidade que os britânicos, por sua própria tradição de uma rica vida comunal, tiveram de subjugar os indianos e estabelecer instituições permanentes na Índia por saberem dialogar com o localismo também vigente naquela cultura. Vélez sinaliza adicionalmente para a preocupação tocquevilliana em manter a Europa em paz e relaciona apreciações da lavra do pensador francês, também, quanto à América Latina, que ele acreditava não poder ser perpetuamente refém dos despotismos e caudilhismos que a transtornavam. Quanto a essa antevisão, infelizmente, ainda esperamos vê-la concretizada.

O professor Ricardo Vélez encerra seu livro com uma volumosa coleção de referências bibliográficas e indicações de fontes de estudo para quem desejar aprofundar a investigação dessa tradição do liberalismo francês, bem como uma reprodução da Carta de Princípios da antiga Sociedade Tocqueville, uma agremiação de intelectuais fundada pelo embaixador José Osvaldo de Meira Penna (1917-2017) em 1986 e que temos a honra de estar refundando. Alguns de nossos leitores podem perguntar o motivo de, em um livro sobre o liberalismo francês, Frédéric Bastiat (1801-1850), tão popular entre nossos liberais e libertários contemporâneos, não aparecer; cumpre salientar, portanto, antes de concluir, que Bastiat era essencialmente um manchesteriano francês, inspirado também na escola econômica liberal francesa de Jean-Baptiste Say (1767-1832). Seus temas centrais eram a liberdade econômica e a retração do Estado para proteger a propriedade privada, não se tendo dedicado tão diretamente ao sistema representativo, o que o situa numa posição externa à tradição doutrinária que o professor Vélez deseja apresentar neste trabalho, sem prejuízo de seus valores particulares.

O Liberalismo Francês – A tradição doutrinária e a sua influência no Brasil é um livro que o professor Ricardo Vélez precisava publicar. A peculiar contribuição que esse grande intelectual, que tenho imensa satisfação em chamar de amigo, vem prestando há décadas para realçar o papel decisivo dos autores nele referidos para a tradição liberal brasileira e, consequentemente, para pensarmos devidamente as nossas próprias questões, merecia ser demarcada e, em alguma medida, aglutinada sob essa forma. Fazemos votos de que as gerações de liberais que hoje atuam ou que estão por vir a aproveitem para tomar consciência da importância desse diálogo. Nosso resgate dos autores britânicos, norte-americanos ou mesmo austríacos não pode significar o abandono das boas luzes que, sim, indubitavelmente, vieram da França.

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Lucas Berlanza

Lucas Berlanza

Jornalista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), colunista e presidente do Instituto Liberal, membro refundador da Sociedade Tocqueville, sócio honorário do Instituto Libercracia, fundador e ex-editor do site Boletim da Liberdade e autor, co-autor e/ou organizador de 10 livros.

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