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Pensadores Brasileiros – José Osvaldo de Meira Penna (1917-2017)

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Este estudo foi originalmente publicado no site do autor. 

Neste ensaio serão desenvolvidos dois itens: I – Breve síntese biobibliográfica de Meira Penna; II – A crítica do autor ao Estado Patrimonial.

I – BREVE SÍNTESE BIOGRÁFICA

José Osvaldo de Meira Penna nasceu no Rio de Janeiro a 14 de março de 1917. Concluiu o Curso de Direito na Universidade dessa cidade, em 1939. Ingressou por concurso na carreira diplomática em 1938, tendo permanecido nela durante mais de quarenta anos, até sua aposentadoria, ocorrida em 1981. Cursou estudos complementares na Universidade de Columbia (New York), no Instituto Jung de Psicologia (Zurich) e na Escola Superior de Guerra (Rio de Janeiro).

Os primeiros anos de sua vida diplomática foram vividos em Calcutá, Xangai, Ankara e Nandjing. Quando da sua primeira permanência na China, foi surpreendido pela guerra (1942) e assistiu, posteriormente, ao colapso do regime nacionalista chinês. Desempenhou funções diplomáticas, também, em Costa Rica, no Canadá e na Missão Brasileira junto às Nações Unidas, de onde regressou ao Ministério das Relações Exteriores do Brasil, onde chefiou a Divisão Cultural, no período compreendido entre 1956 e 1959. Foi embaixador na Nigéria, Secretário-Geral Adjunto do Ministério das Relações Exteriores para a Europa Oriental e a Ásia e embaixador em Israel, no período compreendido entre 1967 e 1970. Ocupou, também, o cargo de Assessor do Ministro da Educação e Cultura. Desempenhou as funções de embaixador na Noruega, no Equador e na Polônia, cargo com o qual encerrou a sua carreira diplomática.

Depois de aposentado, Meira Penna ingressou no magistério, como professor vinculado ao Departamento de Relações Internacionais e Ciência Política da Universidade de Brasília. Desde fins da década de sessenta, desenvolveu ampla e combativa atividade jornalística, sendo colaborador de importantes diários brasileiros como O Estado de São Paulo, Jornal da Tarde (São Paulo), Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) e outros. Em 1986 criou, junto com alguns intelectuais de inspiração liberal, a Sociedade Tocqueville, entidade da qual foi presidente. Presidiu, também, o Instituto Liberal de Brasília e foi membro ativo da Sociedade Mont Pélérin.

Meira Penna foi um dos mais importantes e polêmicos ensaístas brasileiros. Os seus livros, ensaios e artigos cobrem ampla gama de assuntos. A sua produção intelectual pode ser aglutinada ao redor de três grandes centros de interesse: a história, a filosofia (notadamente a dedicada à reflexão sobre a política e a ética pública) e a sociologia. No campo da história, sobressaem as seguintes obras: Shangai, O sonho de Sarumoto e Quando mudam as capitais. No terreno da filosofia, pode-se mencionar vários títulos, como: Elogio do burro, O Evangelho segundo Marx, Opção preferencial pela riqueza, Decência já, O espírito das Revoluções e A Ideologia do século XX. No campo sociológico, as suas obras mais representativas foram: Política externa: Segurança & Desenvolvimento, Psicologia do subdesenvolvimento, Em berço esplêndido, O Brasil na idade da razão, O Dinossauro e Utopia brasileira.

Parte significativa da obra de Meira Penna inseriu-se, como já foi apontado, no terreno da filosofia política, com a discussão do problema das relações entre epistemologia e poder. Nesse contexto situam-se obras como O Evangelho segundo Marx, A Ideologia do século XX, Opção preferencial pela riqueza e O espírito das Revoluções. O autor adotou a defesa do ponto de vista neoliberal, seguindo a tradição da escola austríaca de Friedrich Hayek (1899-1992) e Ludwig von Mises (1881-1973). Participou do debate acerca da problemática do estatismo, defendendo a tese do “estado mínimo” e da máxima liberdade para a iniciativa privada e o mercado. Com a finalidade de analisar criticamente a realidade do Estado patrimonial brasileiro do ângulo neoliberal, o autor escreveu vários artigos e ensaios em revistas especializadas, que foram compilados na sua obra intitulada O Dinossauro, que constitui, como destacarei no item seguinte, uma das mais importantes contribuições à análise crítica das relações de poder no Brasil.

II – A CRÍTICA DE MEIRA PENNA AO ESTADO PATRIMONIAL.

Para Meira Penna, o Brasil não chegou, ainda, à idade da razão. O cogito ergo sum cartesiano foi substituído, na nossa sociedade presidida pelas relações afetivas, pelo coito ergo sum macunaímico. Essa seria a primeira caracterização que Meira Penna formula em relação à nossa realidade. Não se trata, evidentemente, de atitude puramente negativista em face do país. A atitude do nosso autor é crítica, não perdoando incoerências nem dando trégua ao bom-mocismo; mas trata-se de uma atitude crítica construtiva. Se quisermos sair do marasmo secular em que estamos confinados, como eterno país do futuro, devemos olhar com claridade para dentro de nós mesmos, conhecermos a fundo as nossas potencialidades e mazelas, a fim de remediar as segundas e fazer crescerem as primeiras. É nesse contexto de ética intelectual weberiana em que se situa a crítica de Meira Penna ao Patrimonialismo.

A análise de Meira Penna acerca do Estado patrimonial inspira-se, basicamente, na crítica de Tocqueville (1805-1859) ao centralismo francês. Meira Penna, aliás, inicia o seu livro O Dinossauro [1988] com a seguinte paráfrase, tirada de A Democracia na América [cit. por Meira Penna, in 1988: II]: “Sobre essa raça de homens opera um poder imenso e tutelar que se atribui a obrigação exclusiva de gratificá-los e presidir sobre seu destino. Esse poder é absoluto, minucioso, regular, providente e suave. Seria como uma autoridade de pai se, como essa autoridade, fosse seu propósito preparar os homens para a idade adulta; mas ele procura, ao contrário, mantê-los em perpétua infância: contenta-se em que o povo se divirta, contanto que não pense em outra coisa senão divertimento. Para sua felicidade, tal governo trabalha com prazer, mas deseja ser o agente único e árbitro exclusivo dessa felicidade (…). Assim, cada dia torna menos útil e menos frequente o exercício da livre capacidade do homem; circunscreve a vontade num âmbito cada vez mais estreito e, gradualmente, priva o homem de todos os usos que, de si mesmo, pode fazer. O princípio da igualdade preparou os homens para essas coisas, os predispôs para suportá-las e, frequentemente, para considerá-las como bens”.

Não podia ser outra a fonte de inspiração do nosso autor na sua crítica ao patrimonialismo, levando em consideração que o seu livro O Dinossauro constitui, no sentir dele, “(…) a minha primeira contribuição para a Coleção do pensamento neoliberal ou liberal-conservador, que a Sociedade Tocqueville pretende editar” [Meira Penna, 1988: III, nota]. Lembremos que a mencionada Sociedade tinha sido criada em 1986, sob a inspiração de Meira Penna, por alguns intelectuais (entre os quais eu próprio me encontrava) do Rio de Janeiro, Brasília, São Paulo, Florianópolis, Porto Alegre e Santa Maria, com o propósito, como frisava a Carta de Princípios e Programa de Atuação [in Meira Penna, 1988: III], de “contribuir, pelo seu exemplo, no sentido de que as diversas correntes em que se divide a opinião nacional sejam levadas a explicitar corretamente os princípios em que se louvam”, a fim de que fiquem claras as diferenças entre socialistas e liberais, no que se refere à construção do Estado. Este, pelos primeiros, sempre foi entendido como realidade mais forte do que a sociedade, enquanto, para os segundos, deve estar a serviço da mesma. Segundo rezava, mais adiante, a Carta de Princípios da Sociedade Tocqueville, “a realidade do Estado patrimonial burocratizado configura ainda (…) o complexo de clã (Oliveira Vianna), em que predominam as funções afetivas e os critérios concretos de simpatia ou antipatia, no relacionamento pessoal privilegiado, em detrimento dos princípios abstratos de obediência à lei, de ordem, de responsabilidade e de justiça. Ainda existimos em berço esplêndido, sob a proteção do clã familiar. Quem não tem pai, padrinho ou patrono não tem vez. Só entramos parcialmente na Idade da Razão. A nossa modernização se processou a médias. O anacronismo e defasagem de nosso desenvolvimento cultural e mental é o que abre as portas à tentação totalitária”.

A crítica de Meira Penna ao Estado patrimonial insere-se, portanto, nessa finalidade mais ampla (encampada pela Sociedade Tocqueville), de contribuir para o ingresso do Brasil na idade da razão. Segundo o nosso pensador, a sua primeira crítica ao Estado patrimonial data de 1972. A sua convicção viu-se reforçada pela débacle do estatismo na Europa e nos Estados Unidos, ao longo dos anos 80. “Universalmente, – frisa a respeito Meira Penna – o público descobriu, como uma revelação súbita, que a culpa dos nossos males atuais cabe ao Estado forte e açambarcador, ao Estado burocrático repressivo” [1988: 9].

Em que consiste a essência do Patrimonialismo? Meira Penna considera que foi Max Weber quem melhor a definiu. “Nesse sistema – frisa o nosso autor – poderes particulares e as vantagens econômicas correspondentes são apropriados, isto é, tornam-se propriedade particular do Chefe. Weber discute, com certo pormenor, a maneira como se processa essa apropriação. Vemos, no caso do Brasil, que a descrição se enquadra, com bastante exatidão, no que ocorre em nosso regime clientelista (…)” [1988: 142]. Neste, segundo Meira Penna, consolida-se a confusão entre as esferas pública e privada. A respeito, frisa: “O coronelismo, o clientelismo, o compadrio, o empreguismo, esse emaranhado extremamente confuso de relacionamentos e obrigações personalistas, ao nível municipal, que se associam à estrutura patrimonial do país, consistem, essencialmente, no aproveitamento privado da coisa pública. O coronelismo representa a forma local de domínio personalista. O patrimônio privado é, ao mesmo tempo, o patrimônio público. A privatização concreta se traduz pela incapacidade de conceber o governo como oriundo de um pacto social abstrato, em que, segundo Hobbes (1588-1678), Locke (1632-1704) e Rousseau (19712-1778), o Estado utiliza as leis como instrumento de sua autoridade. Um antigo governador do Ceará, o ministro Parsifal Barroso (1913-1986), contou-me que, quando visitava uma aldeia do interior, a população acudia para recebê-lo, aos gritos de lá vem o governo: a pessoa do governador é confundida com o próprio governo, sem distinção entre o corpo concreto do homem e a ideia abstrata de uma instituição” [1988: 144].

Analisarei neste ensaio a crítica de Meira Penna ao Estado patrimonial, em seis itens: 1) Patrimonialismo, o mal latino; 2) Patrimonialismo e familismo clientelista; 3) Patrimonialismo e formalismo cartorial; 4) Patrimonialismo e estatismo burocrático; 5) Patrimonialismo e mercantilismo; 6) Patrimonialismo e corrupção. Concluirei mostrando quais são, do ponto de vista brasileiro e na perspectiva do nosso autor, as alternativas em face do Patrimonialismo.

1) Patrimonialismo, o mal latino.

Para Meira Penna, o vício do Patrimonialismo não é, apenas, caraterística culturológica que acompanhou a formação do Estado no Brasil. É herança, também, dos povos latinos. Franceses, italianos, espanhóis, portugueses e latino-americanos, em geral, viram consolidarem-se as suas instituições políticas de forma patrimonialista.

Em relação à França, o nosso autor alicerça-se, diretamente, na obra de Tocqueville, L’Ancien Régime et la Révolution. Os franceses acostumaram-se a enxergar os seus chefes como tutores, após séculos de centralismo paternalista do monarca sobre a nação. Meira Penna cita as palavras de Tocqueville a respeito: “Quando penso nas pequenas paixões dos homens de nossos dias, na frouxidão dos costumes, na potencialidade de suas luzes, na pureza de sua religião, na condescendência de sua moral, em seus hábitos metódicos, no apego que experimentam em relação ao vício, não creio que eles vejam seus chefes como tiranos, mas, antes, como tutores” [cit. por Meira Penna in 1988: 223-224].

Comentando as palavras do pensador francês, Meira Penna escreve: “Tocqueville acentua, ainda, enfaticamente, como o novo regime democrático, longe de favorecer o desenvolvimento da liberdade individual, proporcionou o crescimento do poder estatal centralizador. Tocqueville é, sem dúvida, o primeiro pensador que caracterizou, concretamente, o antagonismo entre o puro democratismo e o conceito de liberdade. Escreve ele: Por debaixo da superfície aparentemente caótica, se desenvolvia um poder vasto e altamente centralizado que atraía para si e moldava, num todo orgânico, todos os elementos de autoridade e influência que, até então, se encontravam dispersos entre uma multidão de poderes menores e não coordenados (…). Nunca, desde a queda do Império Romano, o mundo contemplou um governo tão altamente centralizado. Tocqueville salienta, desde logo, que foram o aumento da burocracia estatal, juntamente com sua crescente ineficiência e corrupção, muito mais que as guerras, os magníficos palácios e o luxo da corte, que determinam o colapso financeiro da França, motivo imediato da Revolução. Versailles e as aventuras bélicas dispendiosas arruinaram, sem dúvida, o final do reino de Luís XIV (1638-1715). Mas a segunda metade do século XVIII foi relativamente pacífica e Luís XVI (1754-1793) não se excedeu em construções extravagantes. A estrutura econômica do país era basicamente saudável. O que estava acontecendo é que um número realmente excessivo de indivíduos da nobreza e da burguesia mamavam nos úberes fartos do Tesouro. O Estado se depauperava. A França estava falida” [1988: 224].

A figura centralizadora e onipresente de Colbert (1619-1683) é, no contexto francês, o exemplo do superbarnabé que faria as delícias do cartorialismo lusitano rejuvenescido sob Pombal. A respeito desse arquétipo e dos nefastos efeitos da sua ação cartorial sobre a França, escreve Meira Penna: “Colbert é uma espécie de primeiro modelo do superburocrata. O Leviatã absolutista que Luís XIV impusera sobre a França incluía esse funcionário típico que trabalhava dezesseis horas por dia, que era tão frio, inflexível e cruel que madame de Sévigné (1626-1696) o apelidara Le Nord, e que esfregava as mãos de volúpia quando chegava ao escritório, às 5:30 da madrugada, e encontrava a mesa apinhada de processos para despachar. De fato, tudo despachava. Despachava, também, para as galeras os comerciantes que ousassem importar do exterior, em concorrência às manufaturas estatais, tecidos de algodão. E tudo regulamentava, disciplinava, obstruía, ordenava, coibia com suas famosas Ordonnances. E multiplicava os decretos criando empresas públicas, manufaturas reais, tecelagens reais, forjas reais, arsenais reais e milhares de outras companhias reais, sempre na crença de que cabia ao Estado incentivar a indústria. A iniciativa privada era a priori suspeita. A economia era desenhada geometricamente, à la française como os jardins, mas o resultado final é que, em todos os terrenos, a França começa a ficar para trás, já a partir de 1800. Uma por uma, as repúblicas e monarquias capitalistas de religião protestante, com exceção da Bélgica, ultrapassam os índices de produtividade e de renda ostentados pela França” [1988: 229].

Meira Penna considera que o centralismo francês, em muito, se assemelha ao centripetismo do Estado patrimonial português, no período colonial. A semelhança alicerça-se num ponto específico: manter inalterada a dominação do centro, aniquilando qualquer tentativa de atividade organizada e de solidariedade espontânea. É o que Weber (1864-1920) diz quando afirma que, para o patrimonialismo, é intolerável qualquer pretensão de dignidade por parte dos dominados [Weber, 1944: IV, 175 seg.].

Em relação a essa semelhança, afirma Meira Penna: “Tocqueville também explicou, com muito acerto, como a política municipal e, principalmente, a política fiscal dos monarcas absolutos dos séculos XVII e XVIII, acabaram, definitivamente, com qualquer veleidade de iniciativa e qualquer possibilidade de atividade organizada espontânea, particularmente nos escalões inferiores. Nesse sistema de impostos, afirma Tocqueville, cada contribuinte tinha, efetivamente, um interesse direto em espionar seus vizinhos e denunciar aos coletores os progressos de suas fortunas: todos eram instruídos para a delação e o ódio. Vemos, assim, a semelhança com o que ocorreu no Brasil colonial, em virtude das mesmas causas. A rigidez, a centralização e o controle opressivo do sistema francês se sustentam na necessidade de manter a ordem, numa sociedade por natureza rebelde” [1988: 231].

Esse centripetismo produziu o atraso das colônias francesas, segundo Tocqueville. Meira Penna destaca, com as seguintes palavras, a semelhança no atraso produzido, nas suas respectivas colônias, pelas políticas ultramarinas patrimonialistas francesa e ibérica: “A experiência canadense constituiu uma espécie de caso-limite, alguns de cujos aspectos mais lamentáveis deviam reproduzir-se mais tarde, na segunda grande experiência de colonização realizada pela sociedade francesa, a experiência argelina. O ponto importante é que Tocqueville salienta a rigidez e centralização burocrática extrema do sistema colonial francês, em condições que muito lembram o ocorrido no Brasil e no resto da América Latina. O fracasso desse tipo de colonização e o subdesenvolvimento deixado como herança no Québec, testemunham o fato de que as mesmas causas tiveram o mesmo efeito lamentável. É nesse sentido que as observações de Tocqueville são relevantes” [1988,: 233].

O mal latino do patrimonialismo afetou, também, aos italianos. Eles teriam herdado da ocupação espanhola dos séculos XVI e XVII, os preconceitos contra o trabalho produtivo, que constituem o caldo de cultura apropriado para o espírito orçamentívoro. Em relação a esse ethos do não trabalho (que é típico, também, da cultura brasileira), o nosso autor comenta com as seguintes palavras os estudos de conhecido ensaísta italiano: “Luigi Barzini (1908-1984) começa aceitando, em parte, a explicação de alguns escritores, seus compatriotas, que atribuem ao longo domínio espanhol, na Itália meridional, alguns dos males administrativos aparentemente incuráveis do país. A culpa caberia, diz ele, ao desprezo feudal dos espanhóis pelas ocupações úteis e produtivas. O galantuomo consideraria sinal de distinção o não fazer nada. A ociosidade representaria um status symbol. Barzini (…) denomina preconceitos barrocos o conjunto de características que Gilberto Freyre (1900-1987) e Oliveira Vianna (1883-1951), entre nós, estudaram e classificaram como complexo do gentleman. A forma principal é o desdém pelo trabalho manual, pelo comércio, o dinheiro e a atividade produtiva. Dizia-se, no Brasil colonial, o ócio vale mais do que o negócio. Hoje, a vingança do burocrata preguiçoso, que não é promovido, e do intelectual ocioso, que está na miséria, é pôr a culpa em cima do capitalismo e do imperialismo yankee” [1988: 237].

O mal latino também está presente na América espanhola. A mais acabada manifestação dele é o patrimonialismo telúrico da ditadura científica mexicana, tão bem estudado por Octavio Paz. Segundo Meira Penna, para o mencionado Prêmio Nobel de Literatura, “O Estado patrimonial mexicano constitui uma sociedade cortesã, pois no regime patrimonial o que conta, em última análise, é a vontade do príncipe e de seus clientes e agregados” [1988: 247]. O nosso autor antecipava, na época da publicação de O Dinossauro, em 1988, os dissabores que a bem comportada ditadura científica do Partido Revolucionário Institucional enfrentaria em Chiapas, nos anos 90. Estas são as suas palavras a respeito: “(O governo mexicano) sustenta o regime marxista da Nicarágua e as guerrilhas vermelhas da América Central e não seria de admirar se um dia o feitiço se virasse contra o feiticeiro: afinal, poucos países na América Latina continuam a oferecer um espetáculo mais deprimente de tamanhas massas de miseráveis desempregados, alimentados com tortilla e propaganda. Um dia poderá ocorrer que eles se decidam a passar da ingestão passiva da theoria para o exercício mais ativo da praxis revolucionária” [1988: 251].

Traço comum aos patrimonialismos ensejados pelo mal latino é o clericalismo, que constitui uma manipulação da variável religiosa, com a finalidade de preservar a dominação de uma elite que privatizou o poder em benefício próprio. Essa é uma caraterística geral dos países que incorporaram a mentalidade tridentina. Esse caráter culturológico estende-se, no plano histórico, desde o século XVI até os nossos dias. Espírito contra-reformista e Teologia da Libertação seriam dois momentos dessa evolução. A respeito, escreve Meira Penna: “O Estatismo absolutista está implícito na Contra-Reforma: a Igreja apelara para o Estado, no sentido de suprimir a heresia. A Igreja conclamara os soberanos temporais para a luta contra o liberalismo dito protestante, anglo-saxão e modernizante. Os reis absolutistas, Felipe II (1527-1598) na Espanha, Luís XIII (1601-1643), com Richelieu (1585-1642), na França e Luís XIV se aproveitaram da oportunidade para hostilizar os primeiros anseios de liberdade que se faziam sentir. Um liberalismo nascente que implicava a liberdade de julgar problemas morais ou liberdade de consciência e que seria fruto, segundo argumentava a Igreja, das detestáveis heresias de Lutero (1483-1546) e Calvino (1509-1564). Em última análise, o liberalismo seria diabólico. O Catolicismo da Contra-Reforma é que, por tradição, transmite o autoritarismo, o qual se transmuda hoje, naturalmente, no social-estatismo dos marxistas e dos teólogos da libertação” [1988: 230]. Convém destacar que o nosso autor dedicou dois trabalhos à crítica da Teologia da Libertação: O Evangelho segundo Marx [1982] e Opção preferencial pela riqueza [1991].

2) Patrimonialismo e familismo clientelista.

Para Meira Penna, as sociedades estruturadas de forma patrimonialista são, antes de mais nada, organizações não puramente racionais, mas portadoras de uma racionalidade afetiva. O nosso autor alicerça em Weber e Jung (1875-1961) essa sua apreciação, destacando, de um lado, o distanciamento das organizações patrimoniais em relação ao puro modelo racional-legal weberiano, mas identificando nelas, ao mesmo tempo, uma modalidade especial de legitimação, alicerçada no sentimento [1988: 149-150].

Meira Penna define a sociedade legitimada pela racionalidade afetiva como Coisa Nossa ou Patota. Eis a forma em que o nosso autor aplica esses conceitos à sociedade patrimonialista brasileira, seguindo, nesse ponto, a análise que Oliveiros Ferreira (1929-2017) desenvolveu em relação à Máfia siciliana: “A Coisa Nossa brasileira não é, necessariamente, uma organização criminosa porque é tradicional. A Máfia siciliana também não é, na Sicília, considerada criminosa. Considera-se, ao contrário, uma honrada sociedade. Ela constitui tão somente (…) uma coterie. Uma teia de relações sociais, às vezes centrada no que se poderia chamar de estruturas de parentesco, o mais das vezes tecidas na intimidade, primeiro, das experiências comuns nos bancos acadêmicos, depois na compartilha de iguais vicissitudes do início da vida profissional, dos mesmos desejos de fugir às responsabilidades do trabalho assalariado (…). A Coisa Nossa é uma coterie, ou se se quiser, no sentido da gíria brasileira, uma patota, isto é, grupo ou bando que, até se poderia dizer, faz patotadas. Os membros do sistema burocrático ou o que mais recentemente também se designa como Nova Classe ou Nomenklatura, vivem de e para o aparelho de Estado. Não diria que são corruptos ou cínicos, quando aceitam favores deste ou daquele a quem um dia favorecerão (…). Eles têm esses favores (de) que são cumulados como coisa natural: é parte inerente da função, receber presentes!” [1988: 148].

O patotismo, no entender de Meira Penna, constitui a privatização do poder por uma minoria que se assenhoreia do Estado em benefício próprio. Na nossa tradição sociológica, esse fenômeno recebeu, também, os nomes de clientelismo, coronelismo, compadrio. Tratando de caracterizá-lo mais detalhadamente, o nosso autor frisa: “O coronelismo, o clientelismo, o compadrio, o empreguismo, esse emaranhado extremamente confuso de relacionamentos e obrigações personalistas, ao nível municipal, que se associam à estrutura patrimonial do país, consistem, essencialmente, no aproveitamento privado da coisa pública. O coronelismo representa a forma local de domínio personalista. O patrimônio privado é ao mesmo tempo o patrimônio público. A privatização concreta se traduz pela incapacidade de conceber o governo como oriundo de um pacto social abstrato em que (…) o Estado utiliza as leis como instrumento de sua autoridade.” [1988: 144].

Seguindo as análises feitas sobre a nossa realidade patrimonialista por Riordan Roett (1938), o nosso autor destaca o caráter minoritário da nomenklatura que empolgou o poder no Brasil. A respeito, afirma: “Seria uma minoria, mas, assim mesmo, uma minoria ponderável pois, com sete ou oito milhões de funcionários públicos e suas respectivas famílias, os parasitas do Estado não constituem parcela pequena da nossa sociedade” [1988: 146]. Esses parasitas são, no entender de Meira Penna, os identificados por Raymundo Faoro (1925-2003) como donos do poder [1988: 147].

O vício do familismo clientelista é tão antigo quanto o Brasil. Estende-se por gerações e gerações, desde os tempos de Pero Vaz de Caminha (1450-1500), que pedia ao Monarca, na sua carta, sinecuras para familiares, até o dia de hoje. Meira Penna ilustra essa tendência com muitos exemplos tirados da sua longa experiência no serviço público. Citemos apenas três casos dos muitos apresentados pelo autor.

O primeiro foi vivido pessoalmente por ele, quando do início da sua vida diplomática. Ele era concursado, com todas as exigências legais para ingressar no serviço diplomático. Mas teve alguns felizardos, amigos do Homem, que entraram pela janela. Eis as suas palavras a respeito: “O testemunho de minha experiência pessoal, como burocrata do Serviço Exterior brasileiro, pode contribuir para reforçar esses conceitos (…) sobre o patrimonialismo do sistema administrativo brasileiro. Em 1938, com vinte anos de idade, ingressei, por concurso, na carreira diplomática. Nem meu pai, nem qualquer outro membro da minha família, mantinham qualquer relação de amizade ou clientelismo com os donos do poder da época. A própria instituição do concurso, com todos os cuidados que a protegem da intervenção de fatores afetivos relacionados com o personalismo, constitui uma expressão do sistema burocrático funcional, democraticamente aberto e concebido como instrumento da autoridade racional-legal. A instituição do Mandarinato na China confuciana já o admitira, há quase dois mil anos! Pois bem, na véspera do dia em que eu e mais cinco colegas, aprovados no concurso, fomos nomeados para a carrière a que fazíamos jus, automaticamente, por aquele instrumento legal, dez outros simpáticos personagens locupletaram-se, igualmente, do decreto presidencial: eram todos filhos ou parentes de autoridades, ou amigos gaúchos do ditador. Nenhum deles preenchia as condições mínimas exigidas para a candidatura, por concurso, ao cargo inicial do Itamaraty. Chamava-se então àquilo de entrar pela janela… Queiram imaginar o estímulo que, para nós, concursados, representou aquele ato estupendo de privilégio patrimonialista!” [1988: 152].

Os outros dois exemplos que mencionaremos a seguir, ilustram como o vício do clientelismo familístico é próprio da nossa estrutura patrimonialista, tanto em tempos de autoritarismo (como no caso anteriormente mencionado), quanto em épocas mais brandas de abertura democrática. A respeito, Meira Penna escreve: “Quando (…) o Presidente do Supremo Tribunal Federal, o mais altamente colocado magistrado do país e aquele de quem mais se poderia exigir o cumprimento rigoroso das Leis, quando esse juiz, dizia eu, exerceu, interinamente, a presidência da República, em 1945, após a primeira derrubada de Getúlio Vargas por um golpe militar, sua primeira preocupação, senão única, consistiu em nomear todos os parentes para cargos públicos, inclusive o próprio filho, para a carreira diplomática. Em outras palavras, considerou, imediatamente, que a presidência da República era seu patrimônio particular. Por que não dela se locupletar enquanto houvesse tempo? Estou seguro de que nenhuma compunção moral o deteve. Criticado, o aludido magistrado achou suas iniciativas perfeitamente legítimas, não podendo mesmo compreender o sentido da crítica… Quarenta anos depois, terminou o regime militar e a chamada Nova República se inaugurou com uma verdadeira maré de nomeações e promoções da enorme clientela respectiva, em praticamente todos os Estados da Federação e em Brasília. O governador de São Paulo, em que pese sua sofisticação, discretamente colocou em posições no Palácio dos Bandeirantes toda a sua família. O resultado do sistema é que a classe privilegiada, que se apropriou das alavancas do governo graças a mecanismos representativos imperfeitos, e, em muitos casos espúrios, mantém indefinidamente seu poder, quaisquer que sejam as peripécias da vida política da nação. As revoluções ocorrem. Mudam os regimes. Os governos se sucedem. Mas os mesmos políticos, ou seus clientes, conservam o poder de controle absoluto sobre a Cosa Nostra…” [1988: 150-151].

O mecanismo para ingressar na estrutura do Estado Patrimonial brasileiro, acabamos de ver, não é, certamente, o concurso, embora estes aconteçam como exceções que confirmam a regra. O mecanismo normal de ingresso e promoção, no seio do patrimonialismo, é o conhecido pistolão, que é definido pelo nosso autor como “a relação de um empregado (nomeado ou promovido) com alguém na organização hierárquica, por força de laços de sangue, casamento ou amizade” [1988: 213].

Entre os muitos exemplos de pistolão apresentados pelo nosso autor, citemos este, tirado da carreira diplomática: “O critério do pistolão adquiriu, outrora, uma complexidade prodigiosa. Houve um Presidente da República que se queixava de serem as promoções do Itamaraty (…) um dos atos mais difíceis de sua administração. Os candidatos à promoção de embaixador ou a ministro ou ao posto de conselheiro da Embaixada, em Paris, se apresentavam armados, como num jogo de pôquer, de um par de senadores e um par de arcebispos; ou de uma trinca de generais; ou de uma sequência parlamentar (a bancada do Estado); ou de um pôquer de ministros, acrescido da diretora do Museu de Arte Moderna. Em outros ramos do serviço público, o sistema não atingia tal sofisticação, mas o mecanismo é o mesmo” [1988: 214].

Aspecto deveras paradoxal do familismo é o chamado, por Meira Penna, de nacionalismo uterino, que constitui “uma combinação indecente de burocracia e ideologia nacionalista”, que “se rebela contra uma política necessária, urgente e nacional de controle da natalidade” e que, ao mesmo tempo, “age no sentido de dificultar o processo de adoção”. Trata-se, para o nosso autor, de um caso de cruel ignorância das elites política e eclesiástica, acerca desse gravíssimo problema, cuja essência é assim identificada: “O espetáculo nacional apresenta curiosidades e incoerências que, às vezes, nos enchem de grande perplexidade. Vejam, por exemplo, o seguinte caso: nascem aqui cerca de quatro e meio milhões de crianças por ano. O índice de natalidade, talvez, ainda ultrapasse os 4%, elevadíssimo e próprio de país subdesenvolvido (…). Dos quatro e meio milhões de bebês nascidos vivos, mais de 300.000 morrerão antes de alcançar cinco anos. Milhões serão abandonados. Milhares se transformarão em trombadinhas e, eventualmente, em marginais, assaltantes e assassinos (…)” [1988: 176-177].

3) Patrimonialismo e formalismo cartorial.

Alheia à racionalidade weberiana, a burocracia tupiniquim terminou se fossilizando num vácuo formalismo cartorial, que tudo paralisa e que inferniza a vida do cidadão comum. Se o monstro patrimonial é bonzinho com os seus, com o resto é autêntico ogre. O Estado Patrimonial, como aliás destacou, acertadamente, Octavio Paz (1914-1998), é um ogre filantrópico [Paz, 1983], ou, como se diz nestes tempos de máfias previdenciárias, um ogre pilantrópico.

A caracterização que desse irracional formalismo faz Meira Penna é deveras rica e ampla, porquanto abarca aspectos os mais diversos da vida social brasileira. Eis as suas palavras a respeito: “O Brasil é o país das certidões, dos documentos carimbados com firma reconhecida, dos processos tão pesados e lentamente elaborados quanto o Antigo Testamento, das filas intermináveis no suplício medieval dos guichets. É o país onde o processo de aposentadoria de um velho e cansado funcionário, que tudo deu pelo Estado, sofre a via dolorosa de, pelo menos, 193 encaminhamentos (se devemos dar crédito a um ministro do Planejamento), antes de ser despachado em favor do beneficiário. Outro ministro certa vez apresentou, na televisão, dezenas de metros de formulários, colados uns ao lado dos outros, para ilustrar qual a documentação necessária a um processo de exportação: verdadeira jiboia destinada a estrangular o afoito que pretendeu vender ao estrangeiro soutiens de senhoras. (…). Demora-se, no Brasil, quinze dias para obter um atestado de bons antecedentes, porque todo cidadão, até prova em contrário, é considerado mentiroso e salafrário. (…). Neste nosso país um doente, à morte, que dá entrada no hospital, (…), tem previamente de apresentar contracheque, fotografia e certidão de casamento. Um candango que precisa obter uma carteira de identidade do INI de Brasília, tem de tirar fotografia com paletó e gravata: só assim se identifica. (…). Um cadáver de brasileiro, embarcado no exterior para ser enterrado no abençoado torrão natal, deve ser legalizado, pagar emolumentos consulares e ser despachado com a classificação espécimen de história natural, sem o que não vencerá a barreira do Aqueronte alfandegário. Nessa barreira, uma escultura metálica de Mary Vieira (1927-2001) foi, certa vez, embargada, porque classificada como sobressalente de automóvel com similar nacional, sem licença de importação. Dois elefantes doados pela Índia para o jardim zoológico do Rio não atravessaram o Styx. Pudera! Enorme esforço é empreendido pelo Estado para o desenvolvimento das nossas inesgotáveis potencialidades turísticas, e, no entanto, este mesmo Estado ergue, em suas repartições, uma barreira de desconforto, impolidez e terror, destinada a afugentar o mais entusiástico admirador de Copacabana e das Cataratas do Iguaçu. Barreiras fiscais internas, denominadas Barreiras do Inferno, compartimentam, ainda, o país, semelhantes às que dividiam a Europa antes da Idade da Razão (…)” [1988: 164-165].

Mas este mal, como o familismo, não é recente. Confunde-se com as nossas origens. Alexander von Humboldt (1769-1859) e Charles Darwin (1809-1882) já sofreram, no passado remoto, com essas mesmas barreiras da nomenklatura tupiniquim. A respeito, escreve Meira Penna: “Mal de muitos consolo é: visitando o Brasil, em 1832, (uma experiência inolvidável, para ele e para a ciência, pois aqui se inspirou antes de escrever A Origem das Espécies), Charles Darwin teve que obter um passe, a fim de penetrar no interior. Sua experiência foi semelhante à de outro famoso colega, um tal barão de Humboldt, que também, no alto rio Branco, se deparou com a desconfiança do burocrata brasileiro. Eis o que escreve Darwin em seu Diário: Passou-se o dia procurando obter passaporte para minha expedição pelo interior. Não é nada agradável a gente submeter-se à insolência de funcionários públicos; mas se submeter aos brasileiros, que são tão desprezíveis, no espírito, como miseráveis, no corpo, chega a ser intolerável. A perspectiva, porém, de ver uma floresta que é habitada por belas aves, macacos, preguiças e lagos onde moram jacarés, fará qualquer naturalista lamber o pó que acaba de ser pisado, até mesmo pelo pé de um brasileiro.(…). Como explicar esse caráter agressivo da burocracia patrimonialista, num país que se orgulha de ser tolerante e ambiciona desenvolver-se racional e legalmente, segundo o modelo democrático?” [1988: 165-166].

O formalismo cartorial brasileiro é estetizante, no sentir de Meira Penna, pois constitui uma espécie de liturgia dos donos do poder, destinada a manter os seus privilégios e a sua preeminência sobre a sociedade. A respeito frisa o nosso autor: “Na burocracia brasileira o que vale é o status. O mandarim tem que se dar ares de importância. A Persona é importantíssima! O conceito de manter a face. Carro oficial com chapa branca, casa na península ou apartamento funcional na Asa Sul, esposa bem vestida pela moda francesa, casamento com a presença do senhor Presidente da República. Reina, sobretudo em assuntos de interesse financeiro, uma atmosfera de solenidade, de mistério: os menores problemas se transformam em enigmas insondáveis. Cria-se uma barreira intransponível, se não existe um mínimo de intimidade pessoal entre os interessados” [1988: 189].

Outra nota do nosso cartorialismo é a ineficiência. Alicerçado na ética macunaímica do menor esforço, o burocrata, além de se dar ares de importância, age com mentalidade de elevador: empurra todos os processos para cima. Em relação a esse ponto, frisa Meira Penna: “A combinação do desejo de se dar ares de importância com a relutância em tomar decisões, em seu próprio nível, tem, como consequência, a pressão tremenda exercida no sentido de empurrar todos os expedientes para cima, para os ministros de Estado e para o Presidente da República” [1988: 190].

Mais uma nota do cartorialismo brasileiro: as leis não possuem entrelaçamento racional. Consequentemente, o povo não acredita nelas. O único cimento que as cola é a interpretação voluntariosa delas, feita pelos próprios funcionários, de acordo com os seus interesses. A respeito, o nosso autor cita o testemunho do diplomata húngaro Peter Kellemen (autor do conhecido livro Brasil para principiantes, Rio: Civilização Brasileira, 1963), para quem o brasileiro “é um povo onde as leis são reinterpretadas; onde regulamentos e instruções do governo já são decretados com um cálculo prévio da percentagem em que são cumpridos; onde o povo é um grande filtro das leis e os funcionários, pequenos ou poderosos, criam sua própria jurisprudência. Ainda que esta jurisprudência não coincida com as leis originais, conta com a aprovação geral, se é ditada pelo bom senso” [cit. por Meira Penna in 1988: 191].

4) Patrimonialismo e estatismo burocrático.

A ausência de racionalidade fez com que a estrutura burocrática do Estado patrimonial brasileiro crescesse adiposamente, sem nenhuma preocupação de eficiência. O nosso autor ilustra, de forma plástica, esse mostrengo, que cresceu, com o correr dos séculos, como uma espécie de pirâmide inamovível, em cujo vértice repousam, inatingíveis, os nobres da nomenklatura, “duques e marqueses poderosos” servidos por um exército de intermediários, uma classe média visceral identificada com a “Maria Candelária”, que vive sentada e fofoca durante o expediente e uma base ampla de ineficientes funcionários de baixo escalão, os contínuos.

Eis a fotografia de corpo inteiro do Leviatã brasileiro: “Monstro antediluviano, foi a burocracia brasileira erguida como instituição patrimonial com seus castelos, cercados de bastiões, fossos e pontes-levadiças. Neles habitam os grandes barões do Estado cartorial, a aristocracia soberba dos altos funcionários, duques e marqueses com sua enorme clientela de gordas escriturárias e magricelas serventes famintos, que suplementam o salário-mínimo com gorjetas e comissões. Sobrevivem o foro, a enfiteuse e o laudêmio. Sólidos como o Pão de Açúcar, resistem ao sopro de renovação os direitos adquiridos, que são muitos: o direito ao cargo para o qual foi nomeado sem concurso, por ser filho de fulano ou primo de dona Carmen; o direito à promoção por ser amigo de beltrano; o direito à reclassificação, por ser amante de sicrano” [1988: 188].

No corpo médio da pirâmide burocrática do Estado patrimonial brasileiro encontramos os intermediários, que possuem duas caraterísticas visceralmente unidas: servir de dique aos chatos, que pretendem perturbar o repouso remunerado da cúpula, se beneficiando, nessa sua função patrimonialista, da privatização das vantagens que lhes garante a indústria de oferecer dificuldades para vender facilidades. Em relação a este estamento, escreve Meira Penna: “Para defender o status dos altos funcionários, a burocracia criou uma série de intermediários, o principal dos quais é o chefe de gabinete. A função desse é essencialmente a do Cão Cérbero: barrar a entrada. Sobretudo aos chatos. Ai daquele que não possa colocar com suficiente ênfase e força de convicção, para penetrar no augusto recinto, a clássica pergunta: O senhor sabe com quem está falando?… Uma outra classe de intermediários é o despachante. Trata-se de um prodígio biológico: o parasita dos parasitas. Quando não se pode recorrer a esse espécime burocrático, há que utilizar uma das técnicas especiais de penetração na burocracia. O funcionalismo criou o que já foi chamado a indústria de dificuldades para vender facilidades. Contra essa indústria, o recurso é o jeito. O trêfego e vivo Macunaíma, manhoso e cheio de velhacarias, aparece com seu saco de surpresas que sugerem a saída com uma brilhante sugestão salvadora. Toda a técnica pegajosa e açucarada do Eros é então utilizada para impô-la à situação, sobrepujando o obstáculo. A relação pessoal que se estabelece entre o funcionário e a parte sobrepõe-se ao dispositivo legal ou à inércia burocrática. Eros vence Anankê, a necessidade. É o jeitinho…” [1988: 190-191].

A base da pirâmide cartorial é formada pela arraia miúda da burocracia patrimonialista, as Marias Candelárias e os Contínuos, que constituem, respectivamente, a classe média visceral do sistema e a sua classe baixa. Eis a descrição desses personagens: “A massa passiva do funcionalismo, que se poderia chamar o tecido adiposo formado de glicerina e ácido grasso do nosso Dinossauro, é a Maria Candelária. Constitui a classe média visceral da burocracia. Sentada o dia inteiro, notável pela sua esteatopigia, conversa ela com as colegas sobre as peripécias da última novela de rádio e as fofocas da repartição, enquanto se estende a fila do público desesperado pelos corredores da repartição e até o portão do Ministério. Abaixo de todos, na escala hierárquica, temos a figura melancólica do contínuo. Sua missão é difícil de definir em qualquer sociedade que acredite em desenvolvimento e eficiência. Ele simplesmente existe. É expressão do subemprego generalizado com que o social-estatismo caritativo procura liquidar com esse horroroso crime do capitalismo que é a concorrência e o desemprego. O contínuo aparece num corredor ou numa portaria, ao lado de um gabinete, geralmente sentado com um olhar vago de indiferença. Às vezes fica de pé, respeitosamente, quando passa um alto funcionário. Abre-lhe a porta. Carrega papéis e mensagens de um lado para outro. Tem o importante encargo de fazer café, levar a aposta da loteria esportiva, comprar cigarros e, ocasionalmente, o de receber propinas para desencravar processos perdidos em alguma gaveta ou obter assinaturas do chefe. Em troca, pede emprego para o filho…” [1988: 191].

5) Mercantilismo e patrimonialismo.

Como se financia o Dinossauro Patrimonialista? Certamente não mediante o empreendimento capitalista teorizado por Adam Smith (1723-1790) na sua clássica obra A Riqueza das Nações (1776). O Patrimonialismo afina-se com uma concepção mercantilista das relações econômicas, que parte do pressuposto de que a riqueza já está feita e que o problema reside em como se apropriar dela, ou como realizar, segundo dizia Karl Marx (1818-1883), a “acumulação primitiva”. A concepção macroeconômica de Adam Smith, segundo a qual a riqueza não precisa ser roubada de ninguém, porquanto pode ser produzida mediante o trabalho, arrepia o lombo do rebanho burocrático, que sente calafrios quando lhe mencionam o termo tarefa ou produtividade. O mercantilismo, para Meira Penna, “(…) foi uma forma econômica que dominou a Europa, na fase preparatória da Revolução Industrial desencadeada pelo Capitalismo. Ele precede, portanto, o sistema de autoridade que Max Weber qualifica de racional-legal, correspondendo, antes, à fase final do modelo de autoridade dito tradicional patrimonialista” [1988: 140].

É longa, na nossa história, a tradição mercantilista aliada ao Patrimonialismo. Os prolegômenos desse modelo deram-se em Portugal. A propósito, frisa o nosso autor: “O mercantilismo que inspirou a conquista da Índia transformou o Estado português em gigantesca empresa de tráfico. Esse crescimento prematuro do poder do Estado, consolidado, subsequentemente, e modernizado com o despotismo de Pombal, teria consequências ominosas. Ele impediu o desenvolvimento do capitalismo industrial que é, essencialmente, fruto da iniciativa privada. A península ibérica e suas colônias não conheceram as relações capitalistas na sua expressão industrial íntegra. O atraso ocorreu, em virtude dessa ausência de raízes feudais profundas e da permanência teimosa de estruturas patrimonialistas centralizadas. O poder perene do príncipe português sobre o comércio e a economia está na origem do social-estatismo burocrático e paternalista (ou seria maternalista?) que, hoje, descobrimos no Estado brasileiro. A herança é o Dinossauro (…)” [1988: 156-157].

Essa tradição se fortaleceu, portanto, no período pombalino, quando o Estado começou a ser definido como fonte da riqueza da Nação e passou a alicerçar os hábitos econômicos da sociedade, de forma que até os atores econômicos passam a esperar do Estado tutor o lucro subsidiado. É uma espécie de colbertismo caboclo, que tira da empresa econômica o caráter de risco, para transformá-lo em sujeição ao poder político. A respeito, afirma o nosso autor: “Tão fortemente entrincheirado na tradição e nos hábitos empresariais é o fato de que o próprio setor privado não se julga, muitas vezes, inclinado a enfrentar os árduos riscos do empreendimento, recorrendo ao Estado quando as coisas andam mal (…). Existe uma velha definição da empresa privada, como uma empresa controlada pelo governo, sendo a empresa pública aquela que não é controlada por ninguém, mesmo se, na aparência, é administrada por coronéis reformados, tecnocratas profissionais, amigos do presidente da República ou políticos fisiológicos” [1988: 145].

O Brasil, atrelado, ainda, ao modelo mercantil-patrimonialista herdado do ciclo pombalino, está defasado historicamente em relação ao mundo desenvolvido. Vivemos, efetivamente, um modelo muito mais próximo das monarquias absolutistas dos séculos XVII e XVIII. A respeito, escreve Meira Penna: “Ora, a filosofia econômica desse sistema político foi articulada pelo que os entendidos (…) tendem a descrever como expressão econômica da monarquia absoluta e da autoridade patrimonialista: o Mercantilismo. No fundo, como aponta Antônio Paim (1927), é ainda o espírito do marquês de Pombal que aqui impera” [1988: 158].

Esse modelo econômico de mercantilismo patrimonialista em que o Estado, através das empresas do setor público, garante a riqueza da nação, empolgou no Brasil sobretudo o pensamento da esquerda, que terminou formulando uma proposta de social-estatismo ou de nacional-socialismo, em que se insere, inclusive, a chamada opção preferencial pelos pobres dos chamados setores progressistas da Igreja. O nosso autor destaca o caráter retrógrado de tal política, que deixa as coisas como sempre estiveram, em mãos do Estado patrimonial e da sua burocracia. A respeito, escreve: “Não estou seguro de que uma revolução marxista no Brasil modificaria fundamentalmente a situação: a apropriação pessoal das rédeas de comando continuaria como dantes, com uma simples mudança de quadros numa estrutura burocrática já toda montada. O vício fatal do socialismo é, com efeito, a concentração do poder político e do poder econômico nas mesmas mãos. Sem o controle de um poder por outro poder, sem a liberdade de crítica, não pode haver justiça, nem é possível evitar a corrupção” [1988: 151].

O efeito mais claro do mercantilismo patrimonialista é a pobreza da Nação, assim como o efeito direto do Capitalismo seria a sua riqueza. Efetivamente, o modelo mercantilista é eminentemente improdutivo e espoliativo da riqueza existente. Esse modelo ultrapassado já causou à humanidade, ao longo dos séculos XVII e XVIII, inúmeras guerras, pois como frisa Irving Kristol (1920-2009), citado por Meira Penna, “o Mercantilismo não pretendia o aumento da riqueza permanente do povo (aquilo que é o propósito da economia capitalista), mas antes aumentar a riqueza temporária do Estado, a riqueza que podia ser traduzida em poder internacional” [1988: 159].

6) Patrimonialismo e corrupção.

A soma dos fatores mercantilismo mais familismo produz um resultado concreto: a corrupção. Esta não é outra coisa do que a apropriação, pelos particulares, dos bens públicos, como se se tratasse de bens privados. Ora, essa é a essência do Patrimonialismo que constitui, portanto, uma fonte inesgotável de corrupção. O grande objetivo da burocracia é a privatização do orçamento em benefício próprio. É o fenômeno que Oliveira Vianna chamou de burocratismo orçamentívoro. Os números apresentados por Meira Penna acerca do acelerado crescimento da burocracia estatal brasileira e da sua cupidez, ao longo das últimas décadas, não mentem, e são sobejamente conhecidos por todos. Já frisava o professor Mário Henrique Simonsen (1935-1997), na sua obra Brasil, 2001, que o nosso país bateu todos os recordes de crescimento do setor burocrático estatal no Hemisfério Ocidental, ao longo do século passado.

Apenas para ilustrar o mal do burocratismo orçamentívoro, citemos um texto do nosso autor: “O mal, infelizmente, não é apenas federal. É também estadual e, sobretudo, municipal. Ele está profundamente enraizado nos hábitos do governo e do povo, penetrando por todos os poros da administração ao nível mais regional e local. No Estado de São Paulo, unidade da Federação que é a mais avançada e progressista do país, haveria cerca de 800.000 funcionários em fins de 1985, segundo revelou a Secretaria da Fazenda do Estado. Isso representaria 120.000 a mais do que em dezembro de 1982, quando eram pouco mais de 640.000. Foi um crescimento de 18% em 3 anos, ou 6% ao ano, crescimento muito mais rápido que o aumento demográfico e o do produto interno bruto do Estado. A maior parte das nomeações dos 120.000 teria ocorrido na administração de André Franco Montoro (1916-1999), mas também grande quantidade no final do governo anterior, explicando-se o exagero por motivações indiscutivelmente eleitoreiras. Os abusos do empreguismo, dos privilégios e da ociosidade parecem ser tanto maiores quanto mais pobre ou atrasado é o Estado ou o Município. Vejam o caso de Alagoas, que adquiriu uma triste notoriedade. A Assembleia Legislativa alagoana encerrou suas atividades, em 1985, criando 240 cargos de assessores para cada um dos 24 deputados. O diretor da Assembleia, Edvaldo Meira Barbosa, recebe um salário mensal equivalente a dez mil dólares, salário do mais bem remunerado executive americano, com a diferença de que o diretor brasileiro não paga imposto de renda. (…) Dessa multidão de assessores (580), pelo menos 400 não trabalham, por falta de espaço físico. Alguém se espanta com a pobreza de Alagoas? Serão as multinacionais, o capitalismo industrial, a dívida externa ou os bancos estrangeiros responsáveis pela situação? Não parece claro qual o motivo local do subdesenvolvimento? (…)” [1988: 211].

7) Alternativas ao Patrimonialismo.

Meira Penna encontra, na difusão das luzes da Razão, no seio da sociedade brasileira, a solução para as contradições e irracionalidades ensejadas pela nossa tradição patrimonialista. O de que precisamos é, com dois séculos de atraso, da entrada definitiva do Brasil na Idade da Razão. É o que o nosso autor denomina de Revolução do Lógos. A respeito, escreve: “O de que precisamos, sem prejuízo da contribuição que sempre nos darão os que sentem, é uma revolução do Lógos (do bom senso, do equilíbrio, da inteligência), coisas que são necessárias, embora difíceis de obter, pois sem elas o monstro burocrático obsoleto estará sempre crescendo desmesuradamente. É nesse ponto que se coloca uma das mais cruéis opções com que nos deparamos em nosso esforço de renovação e modernização, pois se não eliminarmos a mamãezada e substituirmos o paquiderme terciário por um organismo mais evoluído, serão vãs as nossas esperanças de desenvolvimento. A opção é essa. Só essa” [1988: 259].

A proposta de Meira Penna aponta para um processo educacional que modifique a mentalidade. Somente assim garantir-se-á uma solução de fundo ao problema do Estado Patrimonial, que repousa em hábitos administrativos sedimentados ao longo dos séculos. Trata-se de uma proposta de pedagogia social e política. É o ponto que o nosso pensador destaca no seguinte trecho: “A pergunta natural para quem, de frente, fita o Dinossauro anteriormente descrito é a seguinte: Que fazer? Como caçar o monstro? Como eliminá-lo? Como diminuir o empreguismo, banir o clientelismo, combater o nepotismo, selecionar os melhores, aumentar a dedicação dos servidores, apressar e simplificar os processos, suprimir as tolices, racionalizar os serviços, reduzir o poder do Estado? Não se trata tanto, a meu ver, de tomar esta ou aquela medida legal corretiva quanto de mudar a mentalidade. Algo que virá lentamente com a educação, com o esforço consciente do governo e com o próprio desenvolvimento. Uma sociedade liberal moralmente estruturada poderá superar o estágio da mamãezada patrimonialista. Mas não é o caso de debater os remédios. Todo mundo sabe quais são, sobretudo se pertence à própria classe (…)” [1988: 259].

Duas instituições o nosso autor enxerga para, a partir delas, deflagrar o amplo processo educativo de que o Brasil carece: uma Escola Nacional de Administração, destinada à formação da elite técnica civil de que o Estado carece e um Instituto Superior de Ciência Política, destinado à formação da nova classe política. Ambas as instituições foram inspiradas, a nosso ver, na experiência que Meira Penna teve no Itamaraty como diplomático de carreira. O Instituto Rio Branco representa, na burocracia brasileira, o mais bem sucedido intento de escola de altos estudos para formação de pessoal técnico a serviço do Estado. Diríamos que é uma das instâncias profissionalizantes que mais se aproximam, na nossa sociedade, do ideal burocrático-racional weberiano.

A primeira das instituições apontadas, a Escola Nacional de Administração proposta por Meira Penna, encontra outra fonte de inspiração: a École National d’Administration francesa, bem como a nossa Fundação Getúlio Vargas e a própria Escola Superior de Guerra. Essa instituição “assumiria uma função precisa e nitidamente delimitada: assegurar o recrutamento e a formação da fração superior do funcionalismo civil. A Escola apontada, como a ENA francesa, adotaria rigorosos critérios de seleção, alicerçados exclusivamente na capacidade dos candidatos, desmontando, portanto, qualquer mecanismo familístico ou clientelista. Nela, frisa o nosso autor, “(…) são os próprios alunos que, por ordem de classificação final, segundo o mérito, escolhem a carreira desejada nesse ou naquele Ministério, Tribunal ou Conselho mais procurado. O sistema cria um extraordinário estímulo, pois a escolha vai determinar o destino do rapaz nos 30 ou 40 anos seguintes. O serviço público deixa, assim, de constituir uma sinecura, alcançada a golpes de pistolão, para se tornar uma honraria dada ao mérito, e acompanhada de forte incentivo material. O serviço público adquire, em suma, o sentido mais alto de carreira, que encontramos nas armas e na diplomacia” [1988: 260].

A segunda das instituições propostas, o Instituto Superior de Ciência Política, encontrou inspiração imediata na Escola Superior de Guerra e na Escola de Governo de Harvard. O nosso pensador parte do seguinte princípio filosófico, herdado de Sócrates e Platão: “a boa política pode ser ensinada” [1988: 264]. Meira Penna formula, nos seguintes termos, o seu projeto de Instituto: “(…) o que apresento como proposta idônea é a organização de uma Escola de Altos Estudos Políticos, funcionando no quadro da Universidade de Brasília e sediada na capital. Seu propósito central seria constituir um fulcro de pesquisa e uma ponte entre a universidade, como mais alta instituição educacional, a meio caminho entre a esfera privada e a esfera pública, e o mundo da política” [1988: 266].

O Instituto apontado buscaria profissionalizar a atividade político-administrativa, pelo estudo e pela pesquisa. Na trilha do princípio de Francis Bacon (1561-1626) de que conhecimento é poder, a ciência política permite, hoje, desenvolver um treinamento sério para o serviço público. A respeito, escreve Meira Penna: “O de que se necessita, em conclusão, é de educação superior adequada de uma nova elite política. Uma profissão que incluiria as pessoas eleitas para o legislativo, nomeadas pelo executivo ou promovidas em suas carreiras estatutárias, independentemente das vicissitudes da vida partidária. Pessoas todas selecionadas na base de sua capacidade analítica, de seus conhecimentos teóricos, de sua sensibilidade aos imperativos da justiça, sua responsabilidade moral, sua competência administrativa prática e o seu sentido de fidelidade institucional” [1988: 267].

Conclusão.

Algumas breves considerações para terminar. Meira Penna, graças ao seu conhecimento aprofundado do serviço público e da máquina administrativa do Estado, desenvolveu uma das mais completas análises críticas do Patrimonialismo brasileiro. A sua contribuição coloca-o junto dos que se destacaram, ao longo dos últimos sessenta anos, no estudo da nossa tradição política: Oliveira Vianna, Gilberto Freyre, Raimundo Faoro, Simon Schwartzman, Guerreiro Ramos, Vianna Moog, Caio Prado Júnior, Miguel Reale, João Camillo de Oliveira Torres, Antônio Paim, Fernando Uricoechea, Wanderley-Guilherme dos Santos, Celso Lafer, Bolívar Lamounier e outros.

A análise efetivada por Meira Penna não faz concessões ao bom-mocismo ou ao politicamente correto. Corajosa atitude de quem, chegado aos cem anos, não perdeu a capacidade de indignação diante das irracionalidades do nosso Leviatã e dos hábitos tortos por ele estimulados no seio da sociedade brasileira.

As propostas apresentadas pelo nosso autor, como vimos, situam-se no contexto do que o saudoso Roque Spencer Maciel de Barros (1927-1999) denominava de “a ilustração brasileira” e que Meira Penna denomina de “a idade da Razão”. Na trilha da lição aprendida do mestre embaixador, com quem criei, em 1986, a Sociedade Tocqueville e de quem sempre recebi estímulo para os meus estudos sobre o liberalismo, considero que o ponto que me parece fundamental é que as medidas propostas por Meira Penna venham acompanhadas de um aperfeiçoamento da representação e da vida político-partidária, sem as quais não se renova a capacidade da nossa sociedade para domar o dinossauro patrimonialista.

Falta-nos, no Brasil atual, como dizia Tocqueville em relação à França da sua época, construir o homem político, empreendimento que tanto ele como os seus mestres doutrinários entendiam em duas etapas, intimamente correlacionadas: ilustrada e institucional. Não há dúvida que é importante a instância ilustrada, concretizada, no nosso caso, nas propostas apresentadas por Meira Penna na sua obra; mas falta-nos muito caminho para percorrer no que tange à questão do aperfeiçoamento das instituições que, no Brasil, garantam o exercício da liberdade e da democracia. Sem aperfeiçoarmos o sistema representativo e a vida político-partidária, terminarão vingando soluções aventureiras de rousseaunianismo caboclo. Neste campo não podemos deixar para depois, como filigrana jurídica, a discussão dos mecanismos institucionais e das reformas que precisam ser feitas. Este aspecto é tão fundamental quanto a Revolução do Lógos proposta pelo nosso autor.

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Ricardo Vélez-Rodríguez

Ricardo Vélez-Rodríguez

Membro da Academia Brasileira de Filosofia e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, professor de Filosofia, aposentado pela Universidade Federal de Juiz de Fora e ex-Ministro da Educação.

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