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O togado que pode conduzir o país ao terceiro turno

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Na antevéspera do 2º turno da corrida eleitoral, o protagonismo do cenário político não cabe aos postulantes ao Planalto ou demais políticos, mas a um togado. E você bem sabe, caro leitor, que, longe de ser um magistrado qualquer, admitido na carreira via concurso público e cujas decisões são sujeitas a recursos a instâncias superiores, o togado que, mais uma vez, dá título e conteúdo aos nossos textos é um “soberano” sem voto ou fuzil, aquele já referido pelo New York Times como o homem “investido de plenos poderes para ordenar a retirada de conteúdo online[1], e senhor de uma voz de mando que não conhece limites.

No início desta semana, a equipe de campanha do Presidente da República reportou, ao público e ao TSE, a grave denúncia de que emissoras de rádio da região Nordeste estariam deixando de veicular inserções de propaganda do atual ocupante do cargo, o que poderia colocá-lo em suposta desvantagem junto a seu concorrente. Como amplamente divulgado, o setor de comunicação do governo teria apresentado centenas de planilhas contendo comparativos entre os períodos de exibição dedicados a cada um dos candidatos, assim como uma pasta com material detalhado em áudio, referente a oito emissoras, a título de amostragem. Por entender que a inicial da ação careceria de provas, o ministro Alexandre de Moraes ordenou que a equipe apresentasse, dentro de 24 horas, evidências robustas de suas alegações, sob pena de instauração de um “inquérito para apuração de crime eleitoral praticado pelos autores[2]”.

Diante das novas provas, Moraes insistiu na existência de um “problema metodológico” nas evidências, que seriam formadas por “diversos documentos sem nenhuma descrição e com graves inconsistências; que não corroboram as afirmações feitas pelos autores”, inconsistências estas que teriam sido detectadas “rapidamente” em estudo realizado por um engenheiro docente da PUC/RJ, e transcrito, em parte, pelo magistrado[3]. Convém notar que tal exame não constitui uma prova pericial, pois o nome do expert não foi submetido previamente às partes, o laudo não foi confeccionado mediante respostas objetivas a quesitos, e sequer houve descrição do método empregado pelo tal perito. Ou melhor, houve, sim, uma menção, na verdade um agradecimento do aludido engenheiro à página intitulada “Desmentindo Bolsonaro”, citada como referência para o estudo. Bem se pode conceber a imparcialidade de investigação científica tão comprometida com a busca da verdade real.

Desse modo, Moraes indeferiu a petição e extinguiu a ação mediante a alegação de inépcia da inicial, ou seja, da presença de vícios irremediáveis que teriam impedido o acesso do autor à via judicial. No entanto, diante do princípio constitucional de amplo acesso à justiça, cumpre ao magistrado o dever de especificar, com clareza, todos os defeitos observados na petição, de modo a possibilitar ao autor a correção das falhas e a submissão de sua pretensão à apreciação do juiz. Não foi assim que procedeu Moraes, em seu despacho obscuro sobre os verdadeiros erros incorridos na inicial e redigido no tom dogmático de quem se sente dono da “conclusão direta e certeira”, mas não parece disposto a compartilhar com as partes os fundamentos para tamanha certeza.

Em meio a todo esse imbróglio judicial, ainda veio a conhecimento público a exoneração do servidor, que ocupava cargo em comissão de assessor da Secretaria Judiciária da Secretaria-Geral da Presidência da corte, e que, segundo depoimento por ele prestado à Polícia Federal, já teria alertado o tribunal acerca de falhas na fiscalização das inserções de campanhas. Outrossim, declarou à PF que teria recebido um e-mail de uma rádio com a confirmação de que a emissora teria deixado de fazer 100 inserções da propaganda eleitoral do candidato à reeleição.[4]

Questionada pela imprensa sobre as razões daquela exoneração, a presidência do TSE informou que estaria realizando “alterações gradativas em sua equipe durante o período eleitoral”, e, poucas horas depois, alterou sua versão dos fatos para sustentar que a exoneração teria sido motivada por um “assédio moral” praticado pelo funcionário[5]. Ou bem o setor de recursos humanos do tribunal não tem a menor noção sobre como avaliar o desempenho de seus servidores, ou bem conta com uma estratégia requintada para nos deixar a todos confusos e esquivar-se dos esclarecimentos. Em ambos os casos, sinais de desídia inadmissível na condução de um órgão público, para dizer o mínimo!

E como se já não estivéssemos atordoados o suficiente diante de um caso tão nebuloso, deparamos, no dia seguinte, com a declaração de Moraes de que a fiscalização de inserções não seria função do TSE, razão pela qual não poderia ser imputada à corte qualquer responsabilidade por eventuais ocorrências[6]. Porém, ainda que, por absurdo, o TSE, embora fiscal da legislação eleitoral, não fosse encarregado dessa atribuição, ainda assim teria havido um elemento disparador da responsabilidade das autoridades eleitorais: o alerta do servidor exonerado acerca das supostas irregularidades.

Ora, o fato reportado pelo funcionário aos seus superiores representa um sinal vermelho sobre possível anomalia no funcionamento do processo eleitoral que se acha, sim, sob a chancela do TSE. Portanto, este poderia ser um caso de omissão penalmente relevante, pois, se cabe à corte eleitoral o dever de cuidado e vigilância dos trâmites envolvidos na corrida, é óbvio que o relato do servidor gerou para as autoridades togadas uma obrigação de fazer algo para impedir iniquidades e falhas. Assim sendo, a inércia em agir pode, por si só, configurar crime daquele que é tornado, por lei, garante do funcionamento de uma certa estrutura[7].

Contudo, a despeito da possível gravidade dos eventos, nós, pagadores de impostos, não merecemos sequer uma coletiva de imprensa por parte daquele que pode até se dar ao luxo de não fiscalizar as inserções, mas não hesita em vigiar as vírgulas das nossas falas, inclusive em âmbito privado.

E por falar em vigilância, bem estrita aliás, Moraes, o mesmo que lavou as mãos no assunto atinente às rádios nordestinas, acaba de determinar que a emissora Jovem Pan divulgue que “Lula foi inocentado”, e que “Sergio Moro não era o juiz responsável pelos processos da Lava-Jato relacionados ao petista”[8]. Pouparei você, caro leitor, dos fundamentos, tão repetidos neste espaço, para a afirmação de que Lula jamais foi inocentado, pois suas condenações foram apenas anuladas por divergência sobre o local do foro, não tendo havido qualquer revisão criminal que tivesse redundado na absolvição do ex-presidente. Em português mais que claro, a nova legalidade instituída por Moraes e seus colegas consiste na obrigatoriedade de mentir, sob pena de desobediência a ordens judiciais, e na imposição das narrativas satisfatórias aos poderosos, nem que, para isso, os togados tenham de rasgar diariamente a Constituição, o Código de Processo Civil, o Código de Processo Penal, e demais leis vigentes no país.

Mais uma vez, a triste conclusão reservada para nós, habitantes da República dos Togados, consiste na constatação da profunda incerteza gerada exatamente por parte daqueles que deveriam zelar pela nossa segurança jurídica. Entre nós, os tribunais, em conflitos entre as versões A e B, não decidem nem por uma nem por outra, lançando mão de firulas procedimentais apenas para fazerem valer seus desejos e seu poder. Assim ocorreu no caso Lula, removido artificialmente da condição de “condenado”, mas nunca levado à de “inocentado” ou “absolvido”, e assim acaba de ocorrer no tocante à petição de Bolsonaro, tendo sido o TSE incapaz de afirmar se as alegações dos bolsonaristas seriam, no mérito, pura fantasia, ou se teriam algum cabimento.

Desacreditadas por sua ostensiva parcialidade e sua incapacidade de decidir as questões de fundo, nossas instituições judiciárias, devido à inépcia em compor os litígios, contribuem diretamente para o esgarçamento do tecido social, agudizando as tensões entre as partes. Com sorte, poderemos ter um 3º turno nas eleições; sem sorte, não se sabe o que virá.

[1] https://www.nytimes.com/2022/10/21/world/americas/brazil-online-content-misinformation.html

[2] https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2022/10/24/interna_politica,1411508/moraes-da-24h-para-campanha-de-bolsonaro-apresentar-provas-de-denuncias.shtml

[3]  https://veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2022/10/DecisA%CC%83o-42.pdf

[4] https://www.gazetadopovo.com.br/eleicoes/2022/assessor-exonerado-diz-a-pf-que-relatou-ao-tse-falhas-na-fiscalizacao-da-propaganda-eleitoral/?ref=link-interno-materia

[5] https://www.gazetadopovo.com.br/eleicoes/2022/tse-diz-que-exoneracao-foi-motivada-por-assedio-moral-motivacao-politica/

[6] https://www.cnnbrasil.com.br/politica/nao-e-responsabilidade-do-tse-fiscalizar-transmissao-de-propagandas-em-radios-diz-moraes/

[7] Código Penal – Art. 13 (…)

  • 2º – A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem:
  1. a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância;

[8] https://oantagonista.uol.com.br/brasil/jovem-pan-tera-de-dizer-que-lula-foi-inocentado-decide-tse/

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Judiciário em Foco

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Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.

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