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O santo da Mangueira e a confusão entre censura e crítica

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Com um enredo sobre o sincretismo religioso popular do Brasil, a tradicional Estação Primeira de Mangueira levou para a Sapucaí um tripé mostrando uma imagem típica de Jesus Cristo – outras escolas recentemente levaram imagens do Cristo Redentor – com uma imagem representando Oxalá por trás, simbolizando a mistura entre santo e orixá construída por algumas religiões afro-brasileiras. Classificada para o Desfile das Campeãs, a Mangueira não levou o tripé novamente para a Sapucaí. O motivo? Segundo os noticiários, a pressão da Arquidiciocese do Rio junto à Liga das Escolas de Samba e à escola teria determinado a decisão.

Pronto. As mais diversas reações surgiram. Indignação com a “censura”, críticas ao que supostamente seria uma afronta ao Estado laico, agressão contra a cultura popular; do outro lado, aqui e acolá, algumas vozes celebrando a “justiça” feita em nome da Igreja contra a sua profanação. Onde a razão nisso tudo?

Dividamos o tema por partes. Em primeiro lugar, mesmo sendo folião e sambista, jamais deixei de reconhecer que o desfile das escolas de samba tem um “vício de origem”: ainda que não majoritariamente, a presença de recursos públicos na festa, sob a forma de subvenções oferecidas pela Prefeitura diretamente às escolas. “Ah, mas esse investimento é comparativamente pequeno e a cidade tem um enorme retorno”. Sim; mas isso não muda o fato de que ele tem origem em pessoas que podem não gostar do evento, e talvez não gostariam de ver o seu dinheiro investido nele. Sustento ainda – contra grande parte dos formadores de opinião no Carnaval – que seria perfeitamente possível manter a festa com recursos privados, e que o fato de a origem dos recursos ser privada, com bom planejamento, não faria com que o acontecimento fosse menos “cultural”. Estado e cultura não são sinônimos imperativos, e por vezes o primeiro atrapalha e limita a segunda.

No meu antigo texto Parada gay ou micareta cristofóbica?,  comentei que os cristãos tinham decuplicadas as propriedades para criticar a encenação de uma transexual crucificada na Parada Gay (como se fosse o Cristianismo a grande fonte de hostilidade aos homossexuais nos dias de hoje), uma vez se sentindo ofendidos, porque o dinheiro público era usado para financiar aquele evento. Só porque, desta vez, se trata de um evento de que eu gosto, não posso ser incoerente de negar o mesmo direito.

Se concordo com a crítica? Pessoalmente, não. É claro que não sou católico e para mim tanto a imagem de um santo quanto a imagem de um orixá não passam de obras de arte com significado cultural, sem qualquer sacralidade para a minha fé particular; acredito, porém, posta de lado essa ressalva, que a escola tão-somente reproduziu um fato cultural e social, sem qualquer caráter ofensivo. Não vejo no tripé nenhuma agressão ao Catolicismo ou à comunidade católica e considero o incômodo exagerado.

Ainda não é esse, porém, o ponto principal, concordemos ou não com o que disse a Igreja, e houvesse ou não verba pública no desfile. O fato é que, em notícia posterior, a própria Igreja disse que não “exigiu” coisa alguma; não houve, o que é ainda mais evidente, nenhuma imposição judicial para que a LIESA e a Mangueira tomassem a decisão que tomaram. Quem bateu o martelo para não levar o tripé foram a entidade representativa e a escola de samba, não a Igreja Católica ou a Justiça. Caras pálidas, se você diz que não gostou de alguma coisa, e a outra parte resolve acatar a sua reclamação – supondo que ela efetivamente aconteceu -, essa outra parte acatou a contestação por sua livre vontade. Em que dicionário isso poderia ser chamado de “censura”, se não houve imposição? O que houve, se houve, foi uma crítica, e duas entidades teriam resolvido então fazer uma política de boa vizinhança e levá-la em consideração.

“Ah, mas Lucas, a Igreja é poderosa. Você não pode ignorar o poder que ela tem para pressionar”. Bla, bla, bla. Acho isso um tremendo de um exagero; contudo, se a Igreja conquistou, pelo próprio desenvolvimento histórico da sociedade, alguma posição social e cultural, se ela tem muitos adeptos, se ela tem muita influência, se há que considerá-la como representante de uma corrente de pensamento popular relevante, qual é a sugestão dos que veem nisso motivo para temer pelo “Estado laico”? Impor a força do Estado sobre a Igreja para conter essa suposta “influência” natural? Não é isto sim o cúmulo do autoritarismo?

Quando entidades do agronegócio se manifestaram contra uma ala da Imperatriz Leopoldinense que julgaram ofensiva ao seu ofício, ouvi coisa semelhante: “precisamos nos mobilizar contra a censura dessas elites”. Uma estranha mentalidade vitimista e coitadista parece ter alterado a concepção dos termos, a ponto de a crítica, a manifestação livre de posicionamentos e opiniões, se ter transformado em uma censura.

Amo o samba. Adoro a Mangueira. Ocorre que as pessoas, instituições religiosas, entidades representativas de grupos organizados, têm o direito de dizer o que pensam e sentem, de expressar seus incômodos, assim como eu tenho o direito de dizer que discordo e os sambistas têm o direito de levar o que quiserem para a avenida. Uma sociedade em que a discordância e o desagrado ainda são vistos como sinônimo de censura, me desculpem, não é uma sociedade madura.

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Lucas Berlanza

Lucas Berlanza

Jornalista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), colunista e presidente do Instituto Liberal, membro refundador da Sociedade Tocqueville, sócio honorário do Instituto Libercracia, fundador e ex-editor do site Boletim da Liberdade e autor, co-autor e/ou organizador de 10 livros.

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