O interminável duelo Hayek X Keynes segue ecoando em nossas vidas
Ricardo Bordin*
O quase centenário debate entre o britânico John Maynard Keynes e o austríaco Friedrich Hayek ganha contornos de uma contenda de gigantes neste excelente livro de Nicholas Wapshott. Este choque de visões influenciou os rumos da humanidade e persistiu além das vidas de seus perpetradores, representando muito mais do que um mero confronto entre convicções econômicas opostas.
E a constatação mais relevante que emerge desta narrativa histórica é, sem dúvida, como as circunstâncias sócio-políticas influenciam, até os dias atuais, na decisão dos líderes mundiais sobre qual receita adotar em cada momento – e como, portanto, tal ingerência deveria, a todo custo, ser evitada. Vejamos os highlights desta luta memorável, e quais lições podem ser aprendidas por aqueles que, hoje, advogam suas teses.
Agentes econômicos manipulados por governantes ou livres para tomar seus próprios rumos: O cenário mundial após a primeira guerra mundial, com diversos países europeus amargando altos índices de desemprego, causava apreensão em Keynes. Ele considerava que as forças naturais do mercado não seriam suficientes para alavancar o renascimento de economias devastadas pelos conflitos armados. Além disso, prevenia que os termos do Tratado de Versalhes, os quais impunham pesadas sanções às nações derrotadas, levariam tais povos a um estado tal de penúria que deixaria o caminho aberto para que ditadores populistas se apresentassem como salvadores da pátria.
Tendo isto em conta, ele arguia que seria tarefa dos Estados estabelecer como meta o atingimento do pleno emprego, por meio, especialmente, da realização de obras de infraestrutura – ainda que a custo de forte endividamento estatal e a despeito da geração de inflação – pois tal medida canalizaria a energia dos cidadãos para o trabalho, tornado menos provável, destarte, a conflagração de novas batalhas entre nações.
Keynes discordava da linha de pensamento de antigos liberais, tais como John Locke e David Hume, segundo os quais “indivíduos que perseguem o próprio interesse com esclarecimento e condições de liberdade sempre tendem a promover o interesse geral”. Ao contrário, ele afirmava que “não é verdade que o autointeresse geralmente seja esclarecido; com mais frequência, os indivíduos que agem separadamente para promover seus próprios fins são ignorantes demais ou fracos demais para sequer alcança-los”.
Acreditava, pois, que o capitalismo “sabiamente administrado” poderia tornar-se mais eficiente. Combater a escassez crônica de demanda que, segundo Keynes, causava redução da atividade econômica e, portanto, desemprego, seria missão primordial dos governos, adotando medidas tais como a redução artificial da taxa de juros. A “ordem natural” da economia (o laissez-faire) era, assim, negada pelo britânico, e muita gente comprou a ideia, especialmente com o advento do crash do mercado de ações em 1929 e a decorrente Grande Depressão.
Hayek, a seu turno, considerava que tal metodologia produziria “demanda artificial”, adiando, tão somente, o dia do ajuste de contas. Conforme seus ensinamentos, não havia caminho fácil para sair de uma recessão, e que mascará-la com empréstimo fácil gerava “poupança forçada”, não poupança real. Quando o capital emprestado aos produtores retornasse ao seu nível anterior aos estímulos estatais, os recursos investidos em equipamentos e demais bens de capital seriam perdidos. Segundo o austríaco, tal conjuntura era propícia à formação de uma crise econômica, e ele viria mais tarde, em seu clássico Road to Serfdom, a vincular as soluções propostas por Keynes à tirania.
Ou seja, as soluções propostas por cada um dos gurus não apenas apontavam em direções diametralmente opostas, como também sugeriam que fazer diferente implicava em flertar com o totalitarismo. O tempo se encarregaria de mostrar que Hayek estava correto, mas seria tempo demais – o suficiente para elevar Keynes ao status de Deus, durante o período de boom provocado pela injeção de liquidez nos mercados, e relegar o austríaco ao esquecimento por décadas.
Quando veio o bust, ironicamente, Keynes já havia falecido, sendo que ele costumava afirmar, diante dos alertas de hiperinflação a que seus métodos costumavam ser associados, que “no longo prazo todos estaremos mortos.” Bom, ele, de fato, já não estava entre nós quando veio a estagflação (inflação alta convivendo com desemprego, algo impensável para os keynesianos até então, e muito familiar aos brasileiros da era PT).
Esta estabilidade temporária propiciada pela metodologia de Keynes, recomendada para momentos de grave recessão, viriam a servir, aliás, como uma luva a outros propósitos menos decentes: campanhas eleitorais.
Os políticos amam Keynes – especialmente em ano eleitoral: o remédio proposto pela Escola Austríaca para lidar com graves colapsos financeiros costuma ser amargo e de efeito retardado. Um medicamento assim não pode ser administrado ao paciente às vésperas de uma campanha de reeleição, sob o risco de entregar a vitória de bandeja ao desafiante. Assim sendo, a expansão monetária irresponsável tornou-se uma arma poderosa na mão de oportunistas que só visualizam no horizonte mais quatro anos de mandato – e danem-se as consequências.
Um caso concreto típico foi o governo do republicano Richard Nixon, o qual, em 1971, mesmo sob o aconselhamento de Milton Friedman (que recomendava manter a oferta de moeda em rédea curta), requisitou ao presidente do FED um crescimento monetário considerável. Friedman advertiu que tal providência poderia levar (e levou) a um cenário de deterioração dos índices econômicos, mas a resposta de Nixon foi emblemática: concordou com o professor de Chicago, mas relevou que, como primeiro viria o crescimento econômico e a economia estaria se expandido durante a eleição de 1972, “nos preocuparemos com isso quando acontecer”.
Eis aí a razão para relegar a possibilidade de intervenção do Estado na economia ao mínimo possível. Na verdade, política e economia deveriam ser tão imiscíveis quanto Estado e Religião, como bem ponderou Ronaldo Carneiro em artigo recentemente publicado pelo Instituto Liberal¹. Diante do clamor popular por soluções imediatistas, os políticos sempre irão ressuscitar o espírito de Keynes. Que o próximo eleito descasque o abacaxi – lançando mão, no caso, da austeridade proposta por Hayek e seus predecessores. E pagando o preço por isso, claro.
Nesta sucessão de ciclos econômicos, quem pariu Matheus (Pibinho conjugado com inflação alta e desemprego) sai correndo e deixa o sucessor embalar. Toma que o filho feio é teu! Como Robert Skidelsky bem explicou: “acho que Hayek foi derrotado por Keynes nos debates de 1930 não porque esse tenha provado que estava certo, e sim porque, com a queda da economia mundial, ninguém estava interessado em saber o que a havia causado”.
O carisma de Keynes e o temperamento sisudo de Hayek: A vantagem do britânico sobre o austríaco no quesito simpatia sempre foi uma das suas principais armas na disputa pela atenção do público. Enquanto Keynes era um sujeito popular e que encantava com sua habilidade comunicativa, Hayek era um sujeito mais fechado e que falava inglês com um sotaque muito carregado. Dizem que suas palestras eram quase incompreensíveis. Ou seja, não mudou muita coisa nestas décadas todas: a propaganda dos adeptos do modelo estatizante costuma ser mais agradável aos sentidos do que a daqueles que pregam a liberdade econômica. Neste contexto, restou provado que não basta ter razão para vencer o debate. Dar uma roupagem adequada ao “produto” pode fazer toda a diferença.
Contribuiu ainda, para que as teorias de Keynes se sobressaíssem, a sua estratégia de demonstrar sua tese de forma prática, ao passo que Hayek argumentava quase que estritamente de forma abstrata. Enquanto o primeiro conseguia ser compreendido até mesmo pelas donas de casa da Inglaterra, o segundo precisava esforçar-se para se fazer entender até mesmo entre seus correligionários. A didática, portanto, desempenhou (e ainda desempenha) papel fundamental nesta batalha ideológica.
A relação promíscua entre guerras e gasto público: Keynes procurava demonstrar a eficácia de suas técnicas com a conjuntura gerada durante as guerras, pois o gasto estatal em defesa costumava fazer girar a roda da economia e estimular todos os setores produtivos. Questionava ele, então, porque não se podia proceder da mesma forma em tempos de paz, até mesmo para evitar a guerra.
O problema é que justificar para os pagadores de impostos tanto endividamento desmesurado nem sempre é fácil, e muitos governantes resolveram aproveitar certas oportunidades que se apresentaram para mandar, sem muita necessidade, soldados para o fronte, pensando, exatamente, nos efeitos benéficos de curto prazo do Keynesianismo. Quando vieram os ataques da Al Qaeda em 2001, o objetivo declarado de Osama Bin Laden era levar os Estados Unidos à bancarrota, da mesma forma que havia afetado a União Soviética com a ocupação do Afeganistão.
Bush enfrentou esta ameaça com uma grande homenagem a Keynes, aprovando, junto ao congresso, gastos maciços para fortalecer as fronteiras da América, aumentar a segurança nos aeroportos, dentre outros dispêndios do gênero. Como o pacote de impressão de dinheiro parecia estar demorando a fazer efeito – o crescimento era lento, os lucros eram fracos, o mercado de ações estava abatido, a fila do seguro-desemprego só aumentava e o déficit orçamentário atingira US$158 bilhões – foi revogada, em 2002, uma lei de 1990 que assegurava que todo novo gasto federal teria que ser combinado com a respectiva fonte de custeio. Foi a deixa para o engajamento na guerra do Iraque, cujo custo aos cofres americanos superou os US$2 trilhões.
Ou seja, a teoria do small government costuma durar apenas até que algum evento fortuito e inesperado entrave a economia da nação. Diante da insatisfação de pessoas ávidas por um empurrãozinho estatal para sair da crise, a tentação para por em prática os princípios e valores keynesianos bate forte demais, até mesmo durante governos liberais. Ronald Reagan, a propósito, é acusado por analistas de ter, por meio dos gastos em defesa (justificados pela Guerra Fria), adotado a mesma tática, estimulando a demanda agregada e o crescimento econômico, mas de forma dissimulada. Quando Reagan Entrou na Casa Branca, os Estados Unidos eram o maior credor do mundo; após sua saída, os maiores devedores. Assim, muito embora tenha implementado reduções de alíquotas de tributos, desregulamentado substancialmente a economia e controlado quase que inteiramente a inflação, o ex-ator terminou por legar um assombroso passivo a seu sucessor.
Desnecessário dizer que Obama deve dormir utilizando como travesseiro um exemplar de general theory of employment interest and money, a julgar pelo tempo em que o FED vem mantendo a política de juros baixos, na esperança (vã) de eleger a companheira Hillary.
Ademais, não se pode olvidar que guerras, no mais das vezes, são provocadas por governantes que possuem poder demais em suas mãos. Como dizia Friedman, “o poder para fazer coisas certas é o mesmo poder para fazer coisas erradas”. E como afirmava Bastiat, “por onde passam comerciantes, não passam soldados”. Livre comércio e Estado mínimo, portanto, são ótimos para prevenir conflitos armados entre países – os quais, invariavelmente, irão dar origem à crises econômicas. Vejamos o caso da Suécia, que se absteve de participar do esforço para derrubar Hitler e viu seu desenvolvimento atingir níveis muito acima da média europeia na época – não que tenha sido a atitude mais corajosa e solidária de todos os tempos, mas serviu para demonstrar que não ter bombas caindo sobre suas indústrias ajuda a alavancar a economia local. Bastante, por sinal.
Keynes “salvou” o capitalismo duas vezes (1930 e 2007): Eu posso concordar com essa conclusão ao final do livro se o autor consentir com a seguinte afirmação: se eu ateio fogo em uma casa e corro com um extintor para apagá-lo, eu salvei a casa. Caso contrário, vai ficar difícil corroborar com esta ilação. Nas duas ocasiões, tornou-se lugar comum na academia alegar que a Grande Depressão tenha sido resultado de políticas baseadas em mercados desimpedidos, concorrência desenfreada, especulação, direitos de propriedade e a simples busca pelo lucro, o que teria motivado, como solução, intervenção governamental, controles burocrático e político, e assistencialismo estatal – Roosevelt e seu New Deal, em suma. Também se costuma ponderar que a bolha financeira de 2007 teria sido insuflada pelo “espírito animal” dos investidores, que só querem saber de seus bônus e deixar a sujeira para o governo limpar a posteriori.
A verdade: o colapso de 1929 originou-se de cinco anos de uma imprudente e precipitada expansão creditícia gerada pelo Banco Central americano, iniciada em 1924, após um significativo arrefecimento da atividade econômica. Os bancos americanos criaram, repentinamente, US$500 milhões em crédito novo, o que, por meio das reservas fracionárias, levou a uma ampliação do crédito total de mais US$4 bilhões em menos de um ano (este sistema permite às instituições bancárias fazerem empréstimos ou investimentos em valor muito superior ao valor dos depósitos sob sua guarda, desde que mantenham como reserva uma determinada fração do valor desses depósitos).
Muito embora, no curto prazo, tal expediente tenha aparentado lograr bons resultados, o resultado final foi calamitoso, e na Grande Depressão (tal qual no Brasil após as eleições de 2014) não foi diferente: essa expansão monetária gerou inúmeros sinais falsos ao mercado, que redundaram em desajustes e maus investimentos, os quais, por sua vez, “justificavam” mais intromissão estatal na atividade produtiva, em um circuito perverso que perpetuou por quase uma década uma crise que poderia ter durado dois anos, causando muito sofrimento desnecessário – e avaliações equivocadas que iriam, inclusive, provocar novos colapsos do mesmo gênero muito tempo depois (em 2007, inclusive).
Vale dizer: o que deu início as maiores crises econômicas de nossa história recente não foi o laissez-faire. Na verdade, ele só é chamado à ação, e em doses muito tímidas, quando o circo pega fogo. Não à toa, até mesmo socialistas como Fernando Henrique Cardoso e políticos de Centro-esquerda como Michel Temer pediram socorro aos defensores do livre mercado quando o bicho pegou. Triste é ter a certeza de que, tão logo as nuvens de tempestade se dissipem no Brasil atual, bastará surgir um distúrbio qualquer em nossa economia para justificar, uma vez mais, que os ungidos do Banco Central e os clarividentes do Ministério da Fazenda arregacem as mangas e façam seu “trabalho”.
Os economistas, a seu turno, estes sim, tem um grande débito com Keynes – até mesmo Milton Friedman admitia isto. Afinal, a profissão, após a ascensão das teorias keynesianas, foi promovida do patamar de mera analista de cenários para um papel ativo, junto aos governos, ditando os rumos da economia. Mas deixar de lado o corporativismo e, pelo menos, ensinar nos cursos de Economia os princípios da Escola Austríaca seria bem mais honesto, levando em conta que a maioria dos graduados na área sequer sabe quem é Mises. Plagiando John Lenon: give liberalism a (real) chance. É o que pede, por exemplo, Trish Intel neste comentário na Foxnews:
Thomas Sowell, em sua obra Conflito de Visões, diferencia o que seria a visão irrestrita da restrita: a primeira baseia-se em uma suposta racionalidade da qual seriam dotados certos indivíduos, e que os capacitaria para tomar decisões absolutamente corretas, habilitando-os, destarte, para “salvar” o homem comum. Já a segunda tem como norte a consciência da imperfeição humana e seus limites, e entende o ser humano como alguém fadado a viver em eterno processo de aprimoramento moral. Seria salutar, pois, que os economistas restringissem sua atuação à analise, e não mais intentassem dirigir o leme de um país inteiro. Eles podem até nos conduzir por águas calmas por algum tempo, mas colidir com o iceberg logo mais a frente é um preço alto demais para este período de vacas gordas – alimentadas com alfafa estatal. E este preço não tem como tabelar…
E já que Keynes ensinou a todos que a forma da mensagem, por vezes, vale mais que o conteúdo, estes vídeos ajudam muito a entender as idas e vindas desta luta de teorias que atravessou um século inteiro:
Sobre o autor: Atua como Auditor-Fiscal do Trabalho, e no exercício da profissão constatou que, ao contrário do que poderia imaginar o senso comum, os verdadeiros exploradores da população humilde NÃO são os empreendedores. Formado na Escola de Especialistas de Aeronáutica (EEAR) como Profissional do Tráfego Aéreo e Bacharel em Letras Português/Inglês pela UFPR. Também publica artigos em seu site:https://bordinburke.wordpress.com/