O elo rentável entre Russell Kirk e T. S. Eliot: uma defesa da ordem e da tradição
“Que raízes são essas que se arraigam, que ramos se esgalham
Nessa imundície pedregosa? Filho do homem,
Não podes dizer, ou sequer estimas, porque apenas conheces
Um feixe de imagens fraturadas, batidas pelo sol,
E as árvores mortas já não mais te abrigam, nem te consola o
canto dos grilos,
E nenhum rumor de água a latejar na pedra seca. Apenas
Uma sombra medra sob esta rocha escarlate.
A Terra Desolada (1922)
– O enterro dos mortos –
- S. Eliot
Russell Kirk (1918-1994), um dos principais expoentes do pensamento conservador norte-americano, encontrou na obra de T. S. Eliot (1888-1965) fonte de inspiração fundamental. Eliot, poeta, dramaturgo e crítico literário, compartilhava com Kirk a preocupação com a preservação da tradição e da ordem em uma época de grandes mudanças e desorientação.
Para Kirk, a civilização ocidental se baseia em três premissas essenciais: justiça, ordem e liberdade. Essas ideias são interconectadas e se reforçam mutuamente. A justiça garante a cada indivíduo receber o que lhe é devido, enquanto a ordem estabelece um conjunto de leis naturais regentes da sociedade. A liberdade, por fim, é aquele princípio inerente ao homem titular da própria vida e existência.
Eliot, em seus poemas, destacava a importância da “comunicação dos mortos”, i.e., a proeminência da transmissão das “coisas permanentes” que definem nossa humanidade. Essa concepção é semelhante à “democracia dos mortos” de G. K. Chesterton (1874-1936), onde se enfatizada a necessidade de respeito à sabedoria, à experiência das gerações passadas e àquilo que essencialmente compreendemos como civilização.
A tudo isso, Eliot conferiu o nome de cultura: um continuum baseado em tradições (hábitos e costumes) que merecem ser experienciadas no presente, com suporte no passado, e transmitidas intergeracionalmente como laços de sangue de um mesmo povo vivendo no mesmo lugar.
A ideia-força de Eliot era a de que as coisas permanentes garantem uma cultura superior e estável. Sua poesia fragmentária incorporou estritamente o sentimento de que uma tradição literária, focada em múltiplas raízes e experiências, não está atrelada a um todo simétrico, mas a uma complexa e irregular acumulação de mitos, formas, sensações e imagens, fruto da comunhão articulada – temporal e espacialmente – de maneiras, meneios e costumes de um povo.
Kirk e Eliot compartilhavam a crença na imaginação como elemento fundamental da compreensão do mundo. A imaginação, segundo eles, permite vislumbrar a ordem transcendente capaz de reger a sociedade e manter o equilíbrio e a sinergia entre intelecto e mito, no sentido eliadeano[i] de mito, enquanto narrativa da origem do mundo e de todos os acontecimentos primordiais (Eliade, p. 16).
A quebra dessa harmonia leva inexoravelmente à falência de elementos imagéticos, à inação da sociedade e à condenação de uma gente a viver em terra desolada: i) devastada pela relativização e pela incompreensão da realidade; ii) destroçada pela desordem, injustiça e tirania; iii) desprovida de amor ao próximo, lealdade, fé e confiança em Deus.
Na literatura, especialmente a poesia tem o poder de formar e alterar consciências, restaurando a ordem perdida da alma e da comunidade. Kirk acreditava na reconstrução da ordem através da imaginação e daquilo que os poetas poderiam (e ainda podem) fazer funcionar como antídoto contra o alto risco de desorientação moral e de desconsideração por parte dos cidadãos dos costumes testados historicamente.
A função da poesia, desse jeito, foi apresentada por Northrop Frye (1912-1991), segundo as palavras do próprio Eliot em On poetry and poets:
“Deve haver uma elite daqueles para os quais a cultura e a tradição tornam-se conscientes. Isto inclui os poetas, pelo menos por duas razões. Primeiro, ‘a poesia difere de qualquer outro tipo de forma de arte, pois tem um valor para o povo da raça do poeta e sua linguagem que não é a mesma para nenhum outro’. Segundo, ‘a menos que tenhamos alguns poucos homens que combinam uma excepcional sensibilidade com um excepcional poder sobre as palavras, nossa própria habilidade, não meramente de exprimir, mas até mesmo de sentir qualquer emoção senão as mais cruas, degenerará’. (…) A elite de Eliot são os intérpretes de sua sociedade e serve para mostrar que o que é mais deliberada e conscientemente cultivado em qualquer sociedade é também central e ela, e orienta sua corrente principal” (Frye, p. 22).
O conservadorismo kirkiano/eliotiano não é reacionário. Visa a reconhecer a dinâmica cultural a ser permanentemente sustentada no equilíbrio entre as coisas permanentes e a inovação. Essa abordagem enfatiza a virtude da prudência e o critério da precaução, evitando a arrogância racionalista que deseja fundar uma nova ordem moral, cultural e social baseada no cientificismo e na negação da fé.
A conexão entre Russell Kirk e T. S. Eliot revela uma profunda preocupação com a preservação da tradição e da ordem, como já foi dito. Suas ideias continuam a inspirar aqueles que buscam defender os valores fundamentais da civilização ocidental e promover uma sociedade mais justa, ordenada e livre. Frye foi bastante enfático quando afirmou que a tradição, em Eliot (e, por extensão, em Kirk), “está longe de ser um culto ao fazer o que sempre foi feito antes”[ii].
Alex Catharino, em Russell Kirk: o peregrino na terra desolada[iii], desenvolveu um estudo contundente sobre o ideal conservador de Kirk, analisando não apenas sua obra e seus arquivos preservados no Russell Kirk Center for Cultural Renewal (onde esteve pesquisando por mais de dez anos), mas – o mais importante de tudo – fazendo o cotejo do trabalho intelectual do gênio de Mecosta com os poemas de T. S. Eliot nos pontos indeclináveis para os dois escritores: imaginação, fé, ordem, justiça, liberdade, amor ao próximo, lealdade, respeito às tradições, prudência e intangibilidade das coisas permanentes.
Catharino aponta o problema central das discussões kirkianas e eliotianas: a intensa preocupação em como lidar com as crises e os males causados pelos desatinos da modernidade e pela perda da referência em relação à imaginação e aos mitos primitivos da cultura ocidental.
Disse-nos Kirk, pela boca de Alex Catharino:
“O mal da desagregação normativa corrói a ordem no interior da pessoa e da república. Até reconhecermos a natureza dessa enfermidade, seremos forçados a afundar, cada vez mais, na desordem da alma e do Estado. O restabelecimento das normas só pode começar quando nós, modernos, viermos a compreender a maneira pela qual nos afastamos das antigas verdades” (Catharino, p. 18).
Eliot e Kirk compartilhavam a convicção – juntamente com Christopher Dawson (1889-1970) – da existência de uma confluência inegável entre cultura e religião, a ponto de não existir cultura alguma sem lastro em uma religião.[iv] Obviamente que, estando a religião na base cultural e moral de um povo (no caso do ocidente, as religiões judaica e cristã formaram a sua cosmovisão), crises capazes de solapar a fé necessariamente levam à desconstrução da ordem e à substituição dos valores tradicionais e da moralidade por sistemas ideologizados, utilitários e anticristãos.
Marshall Mcluhan (1911-1980)[v], quando do lançamento da primeira edição norte-americana de Understanding media (em 1964), já se mostrava preocupado com a transformação do mundo em uma vila e com a substituição da literatura e da imaginação (“fontes de civilização e marcos-padrão das realizações civilizadas”) por sombras de números, sendo esta a linguagem da ciência desarticulada da verdade.
Baudelaire (1821-1867) intuía a embriaguez como um número, parodiando a sensação de se encontrar dentro da multidão com a misteriosa satisfação pela multiplicação de números. Na verdade, os números desenvolvem apenas múltiplas sensações tipicamente visuais que afastam as pessoas das imagens e das referências primordiais, gerando desconexões com a realidade em direção à desordem e ao caos.
Também em Rosário Fusco (1910-1977), o gênio da Granjaria, a crítica ao desconcerto do mundo, que inaugura a nota preliminar de sua Introdução à experiência estética, não foge à posição conservadora defendida pelos autores de tradição francesa e anglo-saxã: “Para determinados fenômenos, o estudo das causas particulares pouco interessa. Pois há um momento em que a observação dos efeitos é que conta, sendo a ciência obrigada a ceder à metafísica o plano em que vaidosamente se colocava quando o problema foi proposto[vi]”.
O grande triunfo de Russell Kirk e de T. S. Eliot foi deixar para as futuras gerações, nos precisos termos da tradição ocidental, a visão de que modelos pré-concebidos de sociedades planejadas por burocratas subvertem o sentido natural de justiça, segurança e liberdade. Como advertiu Ricardo Dip[vii], as crises da modernidade são crises de consciência humana. A indisciplina coletiva e a queda vertiginosa do padrão moral e intelectual, eu digo, são os ossos aparentes do cadáver devorado pela tirania e pelos seus slogans.
*Rogério Torres é advogado e diretor de Cursos e Eventos do Instituto Liberal da Alta Noroeste (ILAN).
[i] ELIADE, Mircea. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 2019.
[ii] NORTROP, Frye. T. S. Eliot. Rio de Janeiro: Imago, 1998.
[iii] CATHARINO, Alex. Russell Kirk: o peregrino na terra desolada. São Paulo: É Realizações, 2015.
[iv] ELIOT, T. S. Notas para a definição de cultura. São Paulo: É Realizações: 2011.
[v] MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. São Paulo: Cultrix, 1969, p. 127
[vi] FUSCO, Rosário. Introdução à experiência estética. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional, 1952.
[vii] DIP, Ricardo. Segurança jurídica e crise pós-moderna. São Paulo: Quartier Latin, 2012, p.29.