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O discurso do imperador

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Por incrível que pareça, em um país devastado por flagelos de décadas, como a farra dos privilégios estatais, a infraestrutura precária, as epidemias há muito debeladas no mundo civilizado e a educação pífia, a vedete do noticiário da semana passada foi um discurso. Poucos dias após a votação unânime, no Supremo Tribunal Federal (STF), do reajuste dos já exorbitantes salários de seus membros[1], em inadmissível espoliação do bolso dos pagadores de impostos, a opinião pública vibrou com a fala do ministro Alexandre de Moraes, em sua posse à frente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), durante a qual o togado foi erigido, pelo mainstream, a arauto da nossa democracia. Mais uma vez, os artifícios retóricos se sobrepuseram aos fatos da realidade objetiva.

Em meio aos cumprimentos protocolares, Moraes fez duas saudações que merecem destaque por serem o retrato da hipocrisia de um sistema corroído e desacreditado. A primeira foi dirigida ao atual presidente da Câmara, o deputado Arthur Lira, até bem pouco tempo réu perante a Suprema Corte, mas que, devido a uma suposta insuficiência de provas, teve a ação penal movida contra ele trancada pelo tribunal[2]. A segunda, ainda mais cínica, foi endereçada ao ex-presidente e ex-presidiário Lula da Silva, que, apesar de jamais absolvido, recebeu a graça suprema da anulação de suas condenações, por mero malabarismo jurídico tantas vezes discutido neste espaço.

Na sequência, o togado passou a louvar o nosso sistema eleitoral, afirmando que, nas últimas eleições gerais de 2018, “180 milhões de vezes, as Brasileiras e os Brasileiros apertaram a urna eletrônica”, e que “a Democracia existe para garantir a todas as Brasileiras e a todos os Brasileiros a possibilidade de periodicamente escolherem seus representantes[3]”. Contudo, o ministro em momento algum demonstrou preocupação com os vícios dos mecanismos de escolha dos nossos mandatários, em particular com os efeitos deletérios do voto proporcional para a nomeação de deputados, que, no pleito de 18, fez com que apenas 27 dos 513 deputados federais tivessem sido eleitos por seus próprios votos[4]. Ou seja, os ínfimos 5,26% de representatividade efetiva não incomodaram Moraes a ponto de levá-lo a encorajar publicamente a realização de estudos para a propositura, ao Legislativo, de projetos para a introdução, entre nós, de institutos destinados à correção de tamanha distorção, como, por exemplo, o voto distrital, onde cada partido político apresenta um candidato por circunscrição eleitoral e o mais votado é o eleito[5].

Muito menos cogitou o togado fornecer subsídios técnicos para ajudar os legisladores a trazerem, para o país, a figura do recall (deseleição), relevante mecanismo de participação popular nas decisões políticas. Porém, no dicionário do ministro fascinado pelas filas de Brasileiros teclando dígitos nas urnas, expressões como “voto distrital” e “recall” devem estar fora do espectro semântico de “democracia”.

Prosseguindo, Moraes asseverou que o livre exercício do direito ao voto decorre da garantia de recebimento, pelo eleitor, de “todas as informações possíveis sobre os candidatos, as candidatas, suas opiniões, suas preferências, suas propostas, seja por meio da imprensa, seja pelas redes sociais”. Porém, na prática, o togado, já no TSE, não tem assegurado um acesso tão livre aos dados do histórico de candidatos, pelo menos de certos nomes influentes, blindados até mesmo de acusações baseadas em documentos e delações. Tanto assim que, em censura recente, o magistrado determinou a remoção de qualquer conteúdo alusivo ao suposto elo entre o pole position na corrida presidencial e uma certa facção criminosa[6]. Exemplo nítido de transparência ma non troppo

Após afirmar que “a livre participação política não florescerá onde a liberdade de expressão for ceifada”, Moraes, em final apoteótico, enfatizou que a Constituição não tolera o uso da liberdade como escudo protetivo para “discursos de ódio e antidemocráticos” e que a “atuação da Justiça Eleitoral será célere e implacável no sentido de coibir práticas abusivas”. Ora, em menos de cinco minutos, o togado nos brindou com uma enxurrada de conceitos indeterminados que, de tão vagos, dão margem a qualquer tipo de arbítrio, não por parte dos tais iracundos que escrevam ou divulguem vídeos críticos ao establishment ou ao funcionamento das instituições, mas sim de Moraes e seus pares, que infringem princípios básicos do nosso Estado de Direito, ao instaurarem inquéritos por sua própria iniciativa e acerca de fatos que não configuram crimes!

Afinal, em que delito incorre alguém que apenas vocifere os tais “discursos de ódio”, que podem it de meras reprovações à divulgação de xingamentos contra togados? Qual o crime praticado por quem verbalize indignação ou até agressividade, sem, no entanto, atuar em busca de um resultado efetivamente gravoso como, por exemplo, mortes, lesões corporais, ou danos ao patrimônio? Na pior das hipóteses, o iracundo poderá ser enquadrado em algum dos crimes contra a honra (calúnia, difamação e injúria), considerados de menor potencial lesivo, com penas que não ultrapassam dois anos[7].

Aliás, em se tratando de ofensas à honra, as respectivas ações penais são promovidas pela parte lesada, e não pelo Ministério Público (MP), indicando que, nessas situações tão pouco ameaçadoras à ordem social, o braço acusador do Estado se recolhe, dando aso ao surgimento de um litígio criminal entre ofensor e ofendido. Portanto, ensejam, no máximo, pendengas privadas, e não questões de Estado, como pretende Moraes no tom arrogante de inquisidor, autoinvestido no poder de império de punir, a seu critério, o pecado capital da ira, e imiscuindo-se na privacidade alheia para definir, como bem entender, os pseudo-limites da liberdade de expressão de cada um de nós.

Na França do início do século XVIII, durante o período da Regência entre a morte de Luís XIV e a maioridade legal de Luís XV, começaram a circular sonetos de autoria do talentoso jovem François-Marie Arouet, com críticas pessoais ao próprio Regente e à filha deste, e que, segundo o poeta, manteriam uma relação incestuosa. Como primeira advertência aos versos difamantes, o Regente exilou Arouet bem longe de Paris, e, assim que o castigo se tornou insuportável nos dias de inverno, o jovem enviou ao seu censor versos elogiosos, cuja insinceridade visível impediu a concessão do perdão.

Contudo, farto da hipocrisia que testemunhava, o artista seguiu divulgando versos de teor calunioso, desta vez acusando o Regente de envenenar diversos membros falecidos da família real, e de tentar fazer o mesmo com o pequeno Luís XV, para tomar o poder sem obstáculos. Após diversas tentativas de fugir ao alcance do poderoso Regente, Arouet foi capturado e encarcerado na Bastilha, a temida prisão política da época, onde permaneceria por um bom tempo, dando asas à sua genialidade e passando a assinar suas obras sob o codinome Voltaire.

Teria o autor disseminado fake news e atentado contra a ordem estabelecida de seu tempo? Embora não se saiba, com exatidão, o grau de veracidade das acusações, o artista não me parece ter colocado em risco a estabilidade do reino, tendo apenas exercido sua liberdade e articulado fatos que, se inverídicos, poderiam e deveriam ter sido contestados pelos envolvidos. Isso se não estivéssemos falando de uma fase absolutista, onde pessoas inconvenientes para o sistema eram caladas na Bastilha, sem devido processo legal ou distinção entre as figuras do julgador e do acusador.

Se vivesse entre nós, as críticas destemidas lançadas por Voltaire possivelmente já lhe teriam valido a inclusão no inquérito das fake news e até mesmo alguma ordem de prisão. E você, caro leitor que porventura tiver sucumbido à sedução do discurso de Moraes, se sentiria confortável diante do confinamento de um pensador dessa envergadura? O juízo fica por sua conta.

[1] https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/ministros-do-stf-aprovam-aumento-dos-proprios-salarios-que-podem-superar-r-46-mil/

[2] https://stf.jusbrasil.com.br/noticias/534874817/2a-turma-rejeita-denuncia-contra-deputado-federal-arthur-lira-e-senador-benedito-de-lira-pp-al

[3] https://www.youtube.com/watch?v=oq91hDXcfKU&t=1285s

[4] https://g1.globo.com/politica/eleicoes/2018/noticia/2018/10/09/de-513-deputados-eleitos-na-camara-so-27-dependeram-dos-proprios-votos-para-se-eleger.ghtml

[5] https://www.tse.jus.br/eleitor/glossario/termos-iniciados-com-a-letra-v

[6] https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2022/Julho/tse-determina-remocao-de-conteudo-que-liga-lula-e-pt-ao-pcc

[7] Artigos 138 a 145 do Código Penal

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Judiciário em Foco

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Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.

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