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Ministro do STF em Harvard: o prosélito veste uma Suprema Toga

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Durante recente evento promovido na Universidade de Harvard sob o título Brazil Conference e noticiado com pompas e circunstâncias pela nossa mídia nacional, o ministro Luís Roberto Barroso do Supremo Tribunal Federal (STF), em colóquio com a deputada federal Tábata Amaral (PDT/SP), manifestou sua visão conjuntural sobre a democracia brasileira. Após várias considerações acerca do golpe militar de 64 e menções aos ataques à integridade do processo eleitoral, em clara alusão aos comentários do atual presidente da República sobre supostas fraudes nas urnas eletrônicas, Barroso encerrou seu discurso com as seguintes frases: “(…) eu não gostaria de ter uma narrativa de que tudo está desmoronando. Precisamos de compreensão crítica de que há coisas ruins acontecendo, mas é preciso não supervalorizar o inimigo. Nós somos a democracia. O mal existe e precisamos enfrentá-los, mas o mal não pode mais do que o bem.”[1]

De modo a evitar leituras açodadas, capazes de enxergar no presente texto um panfleto propagandista em prol de certas lideranças, friso que o raciocínio ora proposto poderia ser aplicado a qualquer grupo político que viesse a ser alvejado pelas sentenças acima. Até porque, caro leitor, em uma coluna como esta, destinada a comentar distorções produzidas pelo viés personalista de muitos julgadores, não faria sentido deixar de lado a preocupação com o bom funcionamento das instituições para incorrer no vício que tanto tenho criticado.

Ressalva feita, começo com uma premissa básica, cujo delineamento tem sido deturpado com o firme propósito de levar boa parte dos nossos compatriotas a banalizarem e até a demonstrarem simpatia em relação a frases como as reproduzidas acima. O que é um juiz e até onde pode ele externar, em ambiente público, suas opiniões pessoais?

Agente do Estado, o juiz togado é encarregado, segundo regras processuais de cada país, de dirimir conflitos entre partes em litígio. Contrariamente ao que ocorre em processos arbitrais, restritos à discussão de direitos patrimoniais, e onde as partes escolhem livremente os árbitros, no sistema de jurisdição estatal (onde se insere o ministro Barroso) o magistrado nada mais é senão o braço julgador do Estado, razão pela qual só pode atuar em ações envolvendo partes que com ele não apresentem vínculos emocionais, sob pena de um visível comprometimento em sua isenção.

Como qualquer outro ser humano, o juiz possui convicções próprias, assim como um rol de amigos e desafetos, e, obviamente, suas paixões políticas, que, a priori, não impedem o exercício de suas funções. Contudo, como bem frisado pelo mestre Pontes de Miranda, “a aversão política, teórica ou partidária, não impede o juiz, desde que a sua incompatibilidade não o leve a odiar ou querer vingar-se das partes, fazendo-se inimigo capital.”[2]

Chega a arrepiar a citação de Pontes que, há tantas décadas, parecia ter previsto a recente fala de Barroso. Ora, considerando que, segundo a nossa Constituição[3], a eventual prática de crimes comuns pelo presidente da República só pode ser julgada pelo STF e que a constitucionalidade de várias medidas do Executivo tem sido questionada junto à Suprema Corte, a alusão, ainda que um tanto implícita, do Supremo Togado ao atual ocupante do Planalto como “inimigo” denota uma parcialidade inaceitável, cuja manifestação pública é mais um atentado à solidez das nossas instituições.

Em uma nação que se pretendesse civilizada, veríamos ministros da mais alta Corte examinando, caso a caso e nos autos, as controvérsias que lhes fossem submetidas, e guardando para si e para o seu círculo mais íntimo suas opiniões subjetivas sobre outras figuras políticas, em respeito à continência imposta pela dignidade do cargo. Já no Brasil, deparamos com a patética declaração, pelo detentor de uma toga, de um elo de inimizade pública com o representante de outro poder, e, ainda pior, alardeado com enorme orgulho salvacionista!

Aliás, o uso do termo “inimigo”, em visível referência a confrontos violentos, demonstra a postura belicista de Barroso sobre a política, que ele não enxerga como a composição de interesses em choque pela arte do diálogo e de concessões recíprocas lícitas, mas sim sob a perspectiva simplista do binômio amigo/inimigo, ou, nas suas próprias palavras, do bem/mal.  Como decorrência lógica, para quem vislumbra a política como continuação da guerra – em uma perversa inversão da famosa fórmula de Clausewitz -, todos os meios passam a ser legítimos para a consecução do fim último, que é a aniquilação do inimigo, do mal que ameaça a humanidade.

Ao agir desse modo, sequer parece um juiz, mas um senhor feudal que arregimenta suas tropas, ou, no caso, sua caneta e sua visibilidade midiática, contra um determinado rei, tão somente em demonstração de fiel vassalagem a um outro monarca que anseia por ocupar o trono. Nada mais antirrepublicano e grotescamente extemporâneo!

E não para por aí o achincalhe às nossas instituições. Ao prosseguir seu discurso, sustentando, quase às lágrimas, que “nós somos a democracia” – com um perturbador plural de majestade! -, Barroso revela falta de apreço pelo sistema democrático, que sequer consegue conceber com clareza.

De fato, se tivesse a menor noção do conceito, o togado entenderia que não é dado a quem quer que seja incorporar o espírito da democracia, pois esta compreende tanto “nós” quanto os “outros não abrangidos por nós”, pressupondo a pluralidade de indivíduos e, por óbvio, os conflitos entre estes, que, em regimes democráticos, são solucionados por instituições, à luz de normas aplicáveis igualmente a todos. Portanto, a frase acima, notável pela sua contradição em termos e pelo seu tom messiânico, descortina a índole nada democrática de seu autor, mais afeito a sistemas de governo que menosprezem as individualidades em prol do suposto bem comum de uma massa homogênea, liderada exatamente por aqueles que se acham representantes do Bem sobre a Terra.

Pavoroso é pensar que, para além do mero desconforto causado aos entusiastas das liberdades, o discurso ora analisado trará consequências bem mais gravosas. Para o sistema judicial, tamanho indicativo de parcialidade acarreta um descrédito ainda maior em relação aos tribunais como um todo, e ao Supremo em particular, transmitindo ao cidadão comum a impressão de que nossos magistrados elegem, com antecedência, seus “amigos” e seus “inimigos”. Mais uma vez, prevalece o personalismo em detrimento da institucionalidade.

No plano eleitoral, a grande vedete do debate público no ano em que iremos escolher mandatários para os executivos estaduais e federal e para as assembleias locais e o parlamento, o proselitismo do Supremo Togado enseja riscos ainda maiores, sobretudo se tivermos em mente que Barroso, ex-presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ainda integra a corte eleitoral. Assim, é claro que a parcialidade de sua fala nos Estados Unidos só vem corroborar desconfianças, dando verossimilhança a questionamentos em torno da lisura do processo eleitoral, incluindo-se aí narrativas suscitadas por certos grupos extremistas, imbuídos de má fé.

Muita insegurança jurídica, polarização, violência desenfreada e caos. Esses são os frutos venenosos da deslegitimação das nossas instituições, promovida, em boa medida, pelo Judiciário. Do modo como vêm atuando, nossos togados parecem contribuir bastante para transformar o Brasil em um inferno dantesco, em cujo pórtico de entrada a inscrição prenuncia o desalento do nosso amanhã: ó vós que entrais, abandonai toda a esperança.

[1] https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2022/04/11/interna_politica,1359121/barroso-diz-que-brasil-e-mundo-estao-sob-ataque-do-populismo-autoritario.shtml

[2] “Comentários ao Código de Processo Civil” com atualização legislativa de Sérgio Bermudes, Tomo II, 3ª. Edição – Ed. Forense, 1996, página 425

[3] Art. 86. Admitida a acusação contra o Presidente da República, por dois terços da Câmara dos Deputados, será ele submetido a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal, nas infrações penais comuns, ou perante o Senado Federal, nos crimes de responsabilidade. § 1º O Presidente ficará suspenso de suas funções: I – nas infrações penais comuns, se recebida a denúncia ou queixa-crime pelo Supremo Tribunal Federal (…) (grifamos)

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Judiciário em Foco

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Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.

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