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Livre iniciativa na colisão: uma defesa constitucional

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Constituição Federal de 1988 inovou, frente às anteriores, no sentido de adotar uma postura econômica e política mais liberalizante. Não obstante, essa mesma constituição trouxe outros princípios que, como corre a interpretação usual, serviriam de limitador ao princípio da livre iniciativa.

Não havendo hierarquia a priori entre princípios constitucionais, faz-se necessário, na colisão, algum critério de sopesamento. Este texto tem como objetivo demonstrar a base econômica e constitucional para que, na colisão com a livre iniciativa, outros princípios possam ceder espaço.

É fato conhecido entre os doutrinadores constitucionais que a Carta de 88 trouxe um ar liberalizante que havia se perdido nas constituições brasileiras desde 1934, escolhendo um sistema econômico capitalista, marcado pelo reconhecimento da legitimidade da apropriação privada dos meios de produção e “pela declaração do postulado da liberdade e, em especial da livre-iniciativa privada” (TAVARES, 2011).

Uma característica notável dessa mudança é o impedimento do legislador ordinário de ampliar as hipóteses de monopólio estatal previstas pela Carta, só podendo realizá-lo mediante poder constituinte derivado reformador.

É um tom bastante diferente do adotado na constituição anterior, a de 1967, em que o Art. 157, § 8º permitia a criação de monopólios pela União mediante Lei Federal sempre que necessário por motivos de Segurança Nacional ou de ineficiência em algum setor do mercado. Longe de ser uma característica isolada da Constituição de 1988, a retomada dos pressupostos da livre iniciativa marca uma tendência global depois da experiência soviética e os crescentes custos em termos de endividamento do estado decorrentes do Estado de Bem-Estar Social. Como acertadamente pontua Celso Bastos (2000):

“O século XX assistiu a agravos muito grandes à livre-iniciativa, na medida em que viu o surgimento de revoluções com ideologias inteiramente opostas, como é o caso da Revolução Socialista Soviética e depois a sua expansão por diversos outros países. Mas este mesmo século XX assistiu à decadência e extinção de quase todos os Estados regidos por economias de modelo comunista. (…) Hoje, a rigor, não se pode admitir a existência de um país que se guie inteiramente por princípios opostos à livre-iniciativa.”

Não obstante essa mudança, a lei maior veio acompanhada de uma variedade de outros princípios que, conforme apregoam o senso comum e parte da doutrina, serviriam de limitadores ao princípio da livre iniciativa, dentre estes alguns princípios da ordem econômica e financeira, tais como os princípios da soberania nacional, da função social da propriedade, da defesa do consumidor e da defesa do meio ambiente.

Não havendo hierarquia entre princípios constitucionais, a colisão entre estes deve ser resolvida via sopesamento, permitindo que um princípio tenha ênfase enquanto se mitigam os danos a outro. Uma investigação cuidadosa dos incentivos de mercado, entretanto, seria capaz de evidenciar o caráter meramente aparente de boa parte dos conflitos que emergem com o princípio da livre iniciativa.

Em sua fábula das abelhas, Bernard de Mandeville foi um dos primeiros autores a entender que o combate aos interesses privados nem sempre produz o bem comum da sociedade, pensamento que depois seria aprofundado por Adam Smith (1776), imortalizando-o em sua “mão invisível”, popularizada na sua magnum opus Uma investigação sobre a natureza e causas da riqueza das nações. A ideia de que as pessoas, mesmo agindo em seu pior estado – o vício – gerariam o bem comum na condição de que fossem deixadas livres, ensejou a defesa da livre iniciativa pela teoria econômica já de berço.

Posteriores avanços na teoria econômica mostraram que problemas como a poluição, monopólios ou preços considerados abusivos eram na verdade consequência de uma má definição ou enforcement de direitos de propriedade (COASE, 1960), de uma regulação de mercado capturada pela indústria (STIGLER, 1971), expansão da base monetária ou simplesmente algo natural e necessário para uma eficiente realocação dos bens de produção em direção às necessidades sociais (HAYEK, 1945).

Mas o que significa, à luz constitucional, a livre-iniciativa? Barroso (2015) ensina que há 4 elementos essenciais a este princípio:

1. A existência da propriedade privada, que permite a apropriação particular dos bens e dos meios de produção.

2. A liberdade de empresa

3. A livre concorrência, que garante a liberdade para que o empreendedor estabeleça seus preços.

4. A liberdade de contratar, que deriva do princípio da legalidade, segundo o qual ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer qualquer coisa senão em virtude de lei.

Esses elementos encontram-se ajoujados em diversos dispositivos na carta vigente.

A propriedade privada está disposta no Art. 5º, XXII e Art. 170, II; enquanto a liberdade de empresa se encontra no Art. 170, parágrafo único; a livre concorrência, por sua vez, tem guarida também no Art. 170, mas dessa vez no inciso IV; por fim, a liberdade de contratar é um eco do princípio administrativo da legalidade, esculpido no segundo inciso do Art. 5º. Na jurisprudência pátria, o princípio da livre iniciativa é por vezes invocado contra a ingerência do Estado no controle de preços sob o argumento da abusividade deste. Colhamos de exemplo um julgado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em 2020:

“2. Análise do conjunto probatório que não indica a prática de conduta abusiva que poderia configurar ofensa às regras econômicas ou de consumo. Embora pelo ente público tenha havido conclusão pela abusividade na ampliação da margem de lucro, o que apurou nos 03 (três) meses que antecederam a autuação, ao fixar o preço dos combustíveis, o comerciante deve levar em conta diversas outras circunstâncias, tais como salário de funcionários, preço de compra, despesas com a atividade comercial, e os tributos incidentes, não havendo como, tão somente pela diferença entre o preço da aquisição do combustível (com novas alíquotas) e o preço de revenda, desconsiderar os demais fatores para concluir pela aplicação de sanção. 3. A par da inexistência da ilegalidade e de vantagem manifestamente excessiva, a afastar a incidência do que dispõe o artigo 39V, do CDC, impõe-se observar que, dentre os fundamentos adotados pela República Federativa do Brasil, nos termos do art.  da Constituição Federal, encontram-se os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, considerado como um dos pilares da Ordem Econômica Constitucional Brasileira.”

Precedentes deste TJ/RS. APELAÇÃO DESPROVIDA, UN NIME. (TJ-RS – AC: 70083328500 RS, Relator: Ricardo Torres Hermann, Data de Julgamento: 19/02/2020, Segunda Câmara Cível, Data de Publicação: 03/03/2020)”

Barroso elege, junto com este princípio, o princípio da razoabilidade como limitador da discricionariedade legislativa e administrativa do governo no âmbito econômico.

O princípio da razoabilidade veda o comportamento desmedido por parte da administração pública, reagindo a um problema com tamanho excesso que os estragos provocados pelo remédio superam os custos do problema inicial. Trata-se de um princípio constitucional implícito, estando expressamente reconhecido na Lei Nº 9.784/99, caput, que disciplina o processo administrativo na Administração Pública Federal.

Este é constituído de dois elementos, quais sejam: a razoabilidade interna e a razoabilidade externa, sendo aquela concernente à adequação racional, na norma, entre seus motivos, meios e seus fins, enquanto que esta se refere à adequação racional entre a norma e os meios e fins constitucionais.

Barroso ensina que é permitido ao Judiciário invalidar atos dos outros poderes, via princípio da razoabilidade, quando:

“(a) não haja adequação entre o fim perseguido e o meio empregado;

(b) a medida não seja exigível ou necessária, havendo caminho alternativo para chegar ao mesmo resultado com menor ônus a um direito individual;

(c) não haja proporcionalidade em sentido estrito, ou seja, o que se perde com a medida tem maior relevo do que aquilo que se ganha”

Assim, não basta ao governo agir de forma bem intencionada para solucionar as práticas “abusivas” no sistema econômico; este deve provar a racionalidade de suas soluções, isto é, a adequação delas aos fins, que foram inspirados pelo motivo de preservar certos direitos. Um caso prático e desastroso de intervenção governamental na seara econômica foi o controle de preços. Nos anos 80, a violação sistemática ao princípio da razoabilidade foi chancelada pela ânsia paternalista de proteger o consumidor do aumento arbitrário dos lucros. O resultado foi o desabastecimento generalizado. Giambiagi e Villela (2011), explicam que:

“Produtos que foram congelados com defasagem em relação à média do período anterior foram os primeiros a desaparecer das prateleiras. Esse foi o caso dos produtos que, no dia 28 de fevereiro, estavam em promoção. Além desses, surgiam problemas no preço de produtos da cesta básica, ficando a margem de comercialização (diferença entre os preços de varejo e de atacado) praticamente nula. Por fim, aço, combustíveis, tarifas públicas e outros produtos também mostraram defasagens dos preços em relação aos custos. Começaram a surgir filas e, com cada vez maior frequência, o fenômeno do ágio”

Alexy (1986, Pp. 94) aponta para a necessidade de, quando verificada a tensão entre direitos fundamentais e, portanto, a necessidade de um sopesamento, a relação de precedência a ser estabelecida ser condicional, de tal maneira que um condicional (C) atue como condição sine qua non para que um princípio (Px) preceda um outro princípio (Py).

Uma vez que as circunstâncias observadas em um caso concreto conformem com uma condição C, um dado princípio precede um outro princípio, daí decorrendo uma consequência jurídica R.

Assim, à luz do que foi exposto, temos que o conflito de um princípio qualquer (Py) com o princípio da livre iniciativa (Px), pode se valer do critério da razoabilidade como condicionante (C).

Destarte, o princípio da livre iniciativa se preserva quando a medida violadora tiver algum dos três elementos seguintes:

i) For inadequada ao fim perseguido, pois tem como consequência a escassez do bem que se quer preservar;

ii) For não exigível ou necessária, havendo caminho alternativo para chegar ao mesmo resultado com menor ônus a um direito individual (que seria o estímulo ou, pelo menos, a retirada dos impedimentos à competição, remédio que protegeria o consumidor sem ferir a livre iniciativa) e

iii) Não for proporcional em sentido estrito, exigindo muito mais perda do que ganho.

Referências

ALEXY, R. Teoria dos Direitos Fundamentais: Teoria & Direito Público. Tradução Virgílio Afonso da Silva. [S.l.]: Malheiros, 1986.

BARROSO, L. R. A ordem econômica constitucional e os limites à atuação estatal no controle de preços. Revista de Direito Administrativo, 2015.

BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 1998.

___________________. Direito econômico brasileiro. São Paulo: IBDC, 2000.

COASE, R. H. The Problem of Social Cost. The Journal of Law and Economics, 1960.

GAMBIAGI, F.; VILLELA, A. Economia Brasileira Contemporânea Lev, 2011.

HAYEK, F. A. The Use of Knowledge in Society F . A . Hayek. The American Economic Review, 1945.

HORTA, Raul Machado. Constituição e ordem econômica e financeira. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 28, n. 111, p. 5-20, jul./set. 1991.

LENZA, P. Direito Constitucional Esquematizado. 20. ed. [s.l: s.n.].

STIGLER, G. J. The Theory of Economic Regulation. The Bell Journal of Economics and Management Science, 1971.

TAVARES, A. R. Direito Constitucional Econômico. 3. ed. São Paulo: Editora Método, 2011. Adam Smith (1776) SMITH, A. An inquiry into the wealth of nations. Strahan and Cadell, London, 1776.

*Willian Pablo Pereira Reis é graduando em economia (UFPB) e direito (UNIESP).

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