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“Linguagem neutra”: a bandeira que seduziu um juiz da Suprema Corte

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Na mesma semana em que o ministro Dias Toffoli instituiu o semipresidencialismo à brasileira e se proclamou membro do Poder Moderador da República, em alusão a duas figuras jurídicas inexistentes entre nós e afrontosas à nossa Constituição Federal (“CF”), seu colega de Corte, o Ministro Fachin, atuou como verdadeiro interventor em um estado da Federação. Em mais uma decisão monocrática, Fachin suspendeu a vigência da Lei do Estado de Rondônia no. 5123/21, aprovada pela Assembleia Legislativa local e devidamente sancionada pelo governador, que vedava o uso da chamada “linguagem neutra”, tanto em instituições de ensino quanto em editais de concursos públicos.

Para fundamentar seu entendimento, Fachin invocou uma suposta usurpação de competência privativa da União, pois o Art. 22 da CF reservaria a esta a prerrogativa exclusiva de legislar sobre educação. No entanto, o fato que o Ministro tentou maquiar, em discurso superficial e confuso, é que, logo em seguida, a própria Constituição, em seu Art. 24 , contempla uma competência concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal, ou seja, a possibilidade de emissão concomitante, por todos esses entes públicos, de normas referentes à educação. Teria, então, o legislador constituinte incorrido em uma contradição nessa matéria?

Obviamente não. As Constituições, longe de serem meras declarações de direitos ou normas sobre a organização do Estado, consistem em conjuntos de princípios e determinações, que devem manter uma harmonia entre si, sob pena de desintegração do sistema constitucional como um todo. Por isso mesmo, cumpre aos ministros da Suprema Corte, guardiões da nossa CF, a adoção de uma interpretação sistemática, que efetivamente apreenda o significado dos diversos dispositivos sobre um mesmo tema e busque alcançar a compreensão mais exata possível do sistema descortinado pelo conjunto de normas.

No caso prático em exame, a leitura conjunta dos supramencionados Artigos 22 e 24 revela que, no Brasil, a União, por meio de leis federais, é o único ente investido de poderes para traçar a espinha dorsal da educação ministrada em todo o país, por meio da Lei de Diretrizes e Bases (“LDB”). A seu turno, cabe aos estados e ao Distrito Federal legislar sobre matéria educacional, definindo o modus operandi do ensino das disciplinas e outros aspectos da rotina pedagógica, desde que tais normas estaduais e distritais não infrinjam os preceitos da LDB.

Por imperativo lógico, a Lei Estadual submetida à apreciação de Fachin apenas poderia ser tida como inconstitucional se violasse a LDB. Contudo, o Ministro não conseguiu demonstrar em que medida a vedação ao uso da “linguagem neutra” seria atentatória à liberdade no processo de aprendizado e ao pluralismo de ideias, ambos consagrados nas Diretrizes Federais . Afinal, seria inimaginável, pelo menos para seres humanos integrados em sociedades civilizadas, que liberdade e pluralismo, apesar de conceitos indeterminados, pudessem adquirir uma acepção tão absoluta a ponto de abrir as portas para toda a espécie de sandice de que a mente humana é capaz.

Portanto, comprovada a debilidade técnica dos fundamentos da decisão, fica a pergunta: o que teria levado um ministro da cúpula do nosso Judiciário a interferir, pela via monocrática, no âmbito da autonomia de um estado? Em outras palavras, quais são os fatores que costumam motivar a tomada de uma decisão judicial? Seria ela fruto de uma análise estritamente técnica, ou levaria em conta elementos aleatórios como, por exemplo, preferências pessoais, ou pressão de grupos sociais? Questão intrigante, sobretudo neste país chamado Brasil…

Em busca de esclarecimentos, vale recorrer à lição de J.J. Canotilho sobre os critérios para a fundamentação de decisões judiciais. Segundo o eminente constitucionalista português, “a exigência de fundamentação das decisões judiciais ou da “motivação de sentenças” radica em três razões fundamentais: (1) controle da administração da justiça; (2) exclusão do carácter voluntarístico e subjetivo do exercício da atividade jurisdicional e abertura do conhecimento da racionalidade e coerência argumentativa dos juízes (…)”

No universo do “dever ser” concebido por Canotilho, o julgador, no exercício de seu ofício, teria de, mediante muito esforço, convenhamos, fazer abstração de suas vontades, seus desejos e até de suas opiniões para aderir à racionalidade diante do litígio a ser por ele solucionado. Aplicando o ensinamento ao nosso assunto, deveria o ministro Fachin, à luz da Ciência do Direito, ter delimitado o escopo da sua deliberação à mera verificação da constitucionalidade ou não da norma atacada.

Contudo, no lugar de uma apreciação técnica e racional, extremamente salutar aos Estados de Direito baseados, por definição, na previsibilidade de condutas, o que vemos nas frases de Fachin é uma defesa apaixonada da “linguagem neutra”, que, a seu ver, “visa a combater preconceitos linguísticos, retirando vieses que usualmente subordinam um gênero em relação a outro.” Eis aí um juiz que se despe da toga, deixa a sede do Juízo para vestir trajes de militante em prol de uma determinada bandeira, e lança mão do poder da caneta não para “dizer o Direito”, mas para fazer prevalecerem as suas teorias sobre engenharia social.

Na prática, a realização de mais um desejo de um ministro da Suprema Corte permite, desde já, a impressão de livros didáticos e editais no tal “idioma inclusivo”, embora eu mesma não saiba quem são os indivíduos da tal população “incluída”, pois, até onde vão meus parcos conhecimentos de biologia, são apenas dois os gêneros de todas as espécies animais. De toda forma, mais cedo ou mais tarde, a decisão monocrática de Fachin poderá vir a ser revertida em Plenário, o que implicará custos adicionais para o estado de Rondônia, pelo menos com a reimpressão de todo o material didático redigido no curioso idioma.

E assim, no país da insegurança jurídica, da gastança desenfreada de dinheiro público e do ativismo judicial, nossas crianças e nossos jovens, pelo menos os de Rondônia, seguirão confusos por não saberem se e quando usar “TODOS, TODAS ou TODES”.

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Judiciário em Foco

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Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.

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