O tirano que pensa ser herói
Não é inédito que, por uma razão ou outra, um personagem do Judiciário ganhe tal proeminência que muitos passem a enxergá-lo como uma figura a ser reverenciada (ou detestada). Pensemos, por exemplo, em Sérgio Moro (antes de ele se meter com política) e Joaquim Barbosa, deificado por tantos durante o julgamento do mensalão. O bom senso, entretanto, recomenda que se mostre certa modéstia, ainda que fingida; se, sendo simples humanos, somos muitas vezes reféns do nosso ego, que, ao menos na vida pública, façamos um jogo de cena e recusemos, com a devida vênia, os louros recebidos, argumentando que estamos somente cumprindo nossos deveres. Isso, é claro, pressupõe que de fato estejamos a cumprir nossos deveres funcionais e que não nos desviemos do estrito cumprimento da lei e da Constituição; já daqueles que não conseguem diferenciar a carta magna do papel higiênico, não podemos esperar nada, quanto menos modéstia.
Em sua tão repercutida entrevista à revista New Yorker, onde chegou a afirmar que, se o famoso ministro da Propaganda de Hitler, Joseph Goebbels, estivesse vivo e usando a plataforma X, tudo estaria “condenado”, e ainda que os “nazistas conquistariam o mundo”, Alexandre de Moraes conseguiu a proeza (nunca devemos subestimá-lo) de proferir sandice pior. Em certo momento, creiam se quiserem, ele disse o seguinte: “Eu brinco com a minha equipe de segurança que eu não poderia morrer, o herói do filme precisa continuar”.
Aí temos: o sujeito se vê como um herói. Não é novidade que ele pensa estar em uma cruzada contra o mal (pensa também estar do lado do bem), e que as coisas escabrosas que tem feito por seis anos à fio — que há muito não pertencem ao território do direito — só podem ser mesmo produto de um ego que transborda as proporções do imaginável, mas é, até onde sei, a primeira vez que vemos, não terceiros, mas o próprio expressar isso de forma tão clara e aberta. Em seu devaneio, Moraes pensa estar em filme da Marvel (ou DC) no papel de um herói. Claro, não literalmente, pois também sabemos que nada do que ele faz ou diz pode ser escusado pela insanidade, o que nos compeliria a inquirir sobre a saúde mental dos demais ministros da suprema corte, que têm sido seu sustentáculo. Alguém, brincando de psicólogo, talvez pudesse arriscar inferir que o herói é o alter ego criado para justificar, para si mesmo, que, a despeito do que dizem seus críticos, ele é um sujeito do bem. Tratar-se-ia de uma análise equivocada, uma vez que demandaria um exame de consciência que alguém que condena uma cabeleireira que meramente escreveu uma frase com batom em uma estátua a 14 anos de prisão é incapaz.
Mas a hipótese do herói é interessante em certa medida. Desnecessário dizer que filmes da Marvel e da DC são ficção e que, por mais que possamos ser fãs desse ou daquele herói, se alguns civis decidissem transplantar a luta “informal” contra o crime para a vida real, nós os chamaríamos de justiceiros, não como elogio. Os heróis das telas de cinema e dos gibis não raro operam à margem da lei, e alguns podem até mesmo apostar em um vale tudo contra o “mal”. Se um herói na vida real é alguém disposto a ignorar a lei, a acreditar que os fins justificam os meios, e que ele é senhor do bem e guardião da verdade, então Moraes pode muito bem ser enquadrado como tal. Mas claro que ninguém teria uma concepção tão dura da palavra herói, afinal, não usamos o termo para reverenciar pessoas que, por exemplo, se arriscam para salvar a vida de outras ou que prestam grande serviço social? Certamente, é esse segundo sentido, mais favorável, que Moraes tem em mente quando se descreve de tal forma. Eis o tirano que pensa ser herói. Ao longo da história, outros tanto pretenderam o mesmo e, em seu tempo, até lograram tal alcunha, mas, implacável como é, a história se ocupou de apagar a fantasia do heroísmo, preservando a carcaça da tirania.
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