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O mais perigoso dos três poderes

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Na série de artigos publicados pelos “pais fundadores” da Constituição americana em apoio à sua ratificação, James Madison celebremente escreveu no Federalista n. 51 que, caso homens fossem anjos, não seria necessário nenhum controle interno ou externo aos agentes públicos. A partir dessa ideia fundamental, é consenso que o Estado de direito em uma democracia constitucional pressupõe a existência de mecanismos que confiram a cada agente público os incentivos corretos para agir nos limites de suas atribuições, bem como para obedecer à Constituição e às leis – o que se veio a chamar de “freios e contrapesos”. Por consequência, não se admite que, em um regime democrático, algum agente público possua, na prática, o poder de decidir sobre os seus próprios poderes, como se pudesse reescrever a Constituição a seu gosto para abolir os limites da sua atuação.

Curiosamente, no mesmo texto, Madison cita o exemplo do Judiciário, alertando que, na ausência de controle pelos demais Poderes, o caráter vitalício das nomeações para os Tribunais pode destruir todo o senso de dependência que seus integrantes devem ter na autoridade da Constituição. Logicamente, por não se sujeitarem periodicamente ao batismo das urnas, os juízes da mais alta Corte de um país podem ver-se tentados a abusar dos poderes que lhes foram conferidos pela ordem constitucional, sem que possam ser removidos pelo povo, de quem emana em última análise toda a autoridade democrática.

Como, então, definir freios e contrapesos eficientes para evitar a usurpação do poder pelos membros da cúpula do Judiciário? Recentemente, um editorial do Estado de São Paulo defendeu que apenas um modelo pode ser aceito – que os próprios integrantes do Judiciário controlem uns aos outros. Nas palavras do editorial, “o caminho para corrigir equívocos judiciais é dado pela lei processual, que prevê a possibilidade de diversos recursos”. Para avaliar a razoabilidade dessa proposta, basta imaginar o exemplo trivial de uma determinada escola que deseja implementar um novo método de supervisão dos exames em classe: o autocontrole pelos próprios alunos. Por esse sistema, as provas escritas seriam aplicadas sem a supervisão por qualquer professor ou fiscal, mas qualquer aluno poderia se dirigir à direção acusando um colega de ter colado. Não é preciso muito esforço para concluir que essa metodologia cria incentivos para que nenhum aluno denuncie outro por trapacear na prova. A uma, porque cada aluno tem interesse em colar para obter uma nota maior. A duas, não há qualquer benefício pessoal ao aluno que denunciar uma trapaça. Na verdade, a denúncia pode gerar prejuízo ao acusador, sujeito a retaliações dos demais colegas por atrapalhar o interesse geral de obter uma nota maior com menos esforço.

A lógica de funcionamento de uma Suprema Corte sem supervisão externa é semelhante ao de uma turma escolar. Nenhum juiz individualmente possui incentivos para corrigir abusos de outros colegas, seja porque não deseja limitar seus próprios poderes, seja porque prefere evitar represálias dos pares. O resultado ficou muito claro no caso brasileiro: violações patentes à Constituição são diuturnamente praticadas pelos ministros do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral com a aprovação do colegiado.

Assim é que o ministro Dias Toffoli, então Presidente Supremo Tribunal Federal, determinou a instauração de um inquérito a ser presidido pelo ministro Alexandre de Moraes para investigar supostos “ataques” à Corte. Não há na Constituição ou no Código de Processo Penal norma que autorize esse procedimento, pois, em uma democracia, como se sabe, não é possível escolher o juiz da causa nem eleger a própria vítima como julgadora e, muito menos, promover o julgamento sem qualquer acusação. Esses supostos “ataques”, vale lembrar, consistiam, na realidade, em uma matéria da revista Crusoé que apontava indícios de corrupção na relação entre Toffoli e a empreiteira Odebrecht. A Corte, então, passou uma borracha nos limites que a Constituição lhe impõe para promover a censura pura e simples da imprensa. A partir daí, o Tribunal tomou gosto pela atuação sem amarras e passou a atropelar todas as liberdades públicas garantidas pela Carta Magna, sem qualquer controle pelos demais poderes.

A lista de arbitrariedades praticadas pela cúpula do Judiciário é extensa e sequer conhecida em sua inteireza, pois diversos atos são praticados de forma sigilosa – contrariando a norma constitucional que impõe a publicidade dos atos judiciais. Em nome da defesa da democracia, o Supremo Tribunal Federal: prendeu jornalistas; prendeu parlamentares em razão de suas palavras, o que é expressamente proibido pela Constituição; prendeu manifestantes e ativistas políticos que protestavam na Praça dos Três Poderes e em outros locais frequentados pelos ministros; determinou o afastamento de servidores públicos estáveis da Receita Federal sem remuneração; instaurou, sem qualquer pedido do Ministério Público, investigação contra o presidente da República por suposto genocídio; compeliu o referido presidente a prestar depoimento, nada obstante as prerrogativas legais e constitucionais do cargo; bloqueou bens de empresários em razão de conversas privadas em grupo de WhatsApp; removeu da internet notícias da imprensa inquestionavelmente verdadeiras que ligavam o então candidato de oposição, Lula, a regimes autoritários e à facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC); censurou o canal televisivo de notícias Jovem Pan em pleno período eleitoral; suspendeu, sem prazo final, as contas na internet de diversos parlamentares em pleno exercício do mandato; censurou um ex-ministro do STF e do TSE por suas críticas a essas instituições; promoveu censura prévia, proibindo a divulgação de um documentário crítico ao Partido dos Trabalhadores no período eleitoral; qualificou como grupo armado atentatório à democracia uma suposta organização criminosa composta pelo cantor sertanejo Sérgio Reis; proibiu o presidente da República de dizer que seu opositor foi contrário ao programa social bolsa-família etc. Essa é apenas uma breve lista de muitas decisões do STF e do TSE que desobedeceram à Constituição não apenas pelo seu conteúdo, mas também pela forma, já que diversas delas foram decididas sem pedido da acusação, sem respeito à ampla defesa, em sigilo e até mesmo sem direito dos prejudicados a um advogado.

Quando outro “pai fundador” da Constituição americana, Alexander Hamilton, escreveu no Federalista n. 78 que o Judiciário seria o “Poder menos perigoso”, porque não teria “influência sobre o poder da espada ou o da carteira”, mal poderia imaginar que no Brasil o Judiciário viesse a possuir tamanha capacidade de subjugar os membros dos demais poderes pela força, sem contar a sua ingerência sobre o orçamento público. Jamais ocorreria aos iluministas do século XVIII que um presidente da República pudesse submeter-se até mesmo a decisões do Judiciário que lhe determinassem divulgar o conteúdo de seu hemograma ou a desbloquear seguidores “haters” nas redes sociais. A alegada “ameaça democrática” oriunda do Executivo brasileiro, convenhamos, não pareceu tão ameaçadora assim – a menos que alguém possa recordar algum exemplo histórico semelhante de deferência aos tribunais por Hitler, Mussolini, Stálin, Castro, Chávez ou Pol Pot.

Parecendo claro que a autocontenção judicial não tem funcionado por aqui, deve-se retornar à indagação original sobre quais os freios e contrapesos adequados para coibir a arbitrariedade dos juízes. A resposta está em um livro clássico, não tão antigo quanto os Federalistas, mas que infelizmente parece ter caído em esquecimento: a Constituição brasileira. Pois o próprio texto constitucional consagra o dever do Legislativo de fiscalizar a atuação dos ministros do Supremo Tribunal Federal, investigando possíveis abusos (art. 58, § 3°) e processando os membros do Judiciário por crimes de responsabilidade quando for o caso (art. 52, II).

O editorial do Estadão, ao acusar de “golpismo” centenas de parlamentares que atuam nos estritos limites de suas atribuições constitucionais, constrói um discurso que entrará para a história como mais uma “jabuticaba” brasileira: o golpe praticado pelo Legislativo. Contudo, é natural que se observe na imprensa uma postura condescendente com os desmandos dos ministros das Cortes Superiores, pois todo jornalista é um alvo em potencial de censura, bloqueio de contas bancárias ou até mesmo a prisão. Em terras brasileiras, o Judiciário se tornou “the most dangerous branch”. Está na hora de corrigir esse problema antes que seja tarde demais.

*Este artigo foi escrito sob o pseudônimo Tácito. 

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