No “vale-tudo” dos togados, o “vale-nada” da advocacia

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Os expedientes da justiça e, especialmente, o escrito da acusação eram inacessíveis para o acusado e seu defensor (…) Certamente que, em tais ocasiões, a defesa se achava em uma situação muito desfavorável e difícil; mas também isso era deliberado, porque, no fundo, a lei não admitia nenhuma defesa, mas tão somente a tolerava. (…) De modo que, num sentido rigoroso, não existia nenhum advogado reconhecido pela justiça; todos os advogados que atuavam nas esferas judiciais não eram, no fundo, pois, mais do que simples rábulas.” Assim F. Kafka descreveu, no romance O Processo, a inocuidade da atuação dos advogados em um universo judiciário marcado pelo sigilo, pela disparidade de armas entre acusação e defesa e pela restrição proposital ao contraditório. Afinal, em regimes kafkianos onde juízes são influenciados pela sedução carnal de lavadeiras ou pela vaidade alimentada por pintores, argumentos jurídicos se tornam irrelevantes, e a advocacia perde sua razão de ser.

Na semana passada, Alexandre de Moraes superou a própria ousadia e inaugurou prática inédita até mesmo para um tão notório violador de direitos humanos: destituiu os advogados de Filipe Martins e Marcelo Câmara, ambos réus na dita “trama golpista”, e enviou os casos aos cuidados da defensoria pública. Sem amparo legal, a medida foi decretada como retaliação a causídicos que, no fiel cumprimento dos mandatos a eles outorgados, apenas fizeram valer o amplo direito à defesa de seus clientes. Conduta profissional legítima e louvável em qualquer ordem constitucional democrática, incluindo a nossa, mas ensejadora de repressão abusiva em um ordenamento oficioso, ditado pela perversão do desejo de figurões.

Como amplamente noticiado, a PGR, após a fase de colheita de provas, havia apresentado novas evidências. Em respeito ao contraditório, os advogados, antes do oferecimento de suas razões finais, pleitearam junto a Moraes a abertura de prazo adicional, destinado à análise e aos comentários sobre os aludidos documentos. Se efetivamente exercesse jurisdição, o togado teria concedido o prazo requisitado, ou então teria removido dos autos as provas extemporâneas, pois ninguém pode ser julgado com base em evidências sobre as quais não tenha tido oportunidade de se manifestar. Porém, levando ao extremo sua lógica de autoritarismo, Moraes atribuiu aos causídicos uma pretensa “litigância de má fé” e simplesmente os varreu dos autos, como se desinfetasse o processo de insetos pestilentos. Ainda que os profissionais tivessem atuado de má fé para a postergação do caso, as únicas consequências possíveis, à luz dos cânones de um estado de direito, teriam sido a perda, para os réus, da oportunidade de manifestação em alegações finais e uma eventual representação do juízo perante a OAB para a apuração de infração disciplinar.

No entanto, alheio à razoabilidade jurídica, foi Moraes que, de má fé, impediu o exercício autônomo da advocacia e aniquilou o direito dos réus à prestação de serviços jurídicos por causídicos de sua confiança. No processo penal, o afastamento judicial de advogados é providência extrema, autorizada apenas na forma do artigo 265, parágrafo 3º do Código de Processo Penal, qual seja, na hipótese de abandono da causa pelo defensor, e, ainda assim, mediante intimação prévia do réu para a designação de outro patrono. O dispositivo em questão se destina a proteger indivíduos contra a irresponsabilidade de advogados que desapareçam dos autos e das audiências, deixando os clientes desassistidos, pois privados de uma defesa técnica capaz de contrapor os argumentos qualificados da acusação. Sob a caneta de Moraes, contudo, foi distorcido em desfavor dos réus, e como forma de banir causídicos “rebeldes” frente aos desmandos.

Naquela mesma noite, enquanto profissionais eram covardemente tolhidos em pleno exercício do ofício, a OAB publicava uma postagem jocosa versando sobre a novela global do horário nobre, na qual a entidade afirmava que, na vida real, a prestação de depoimentos sem a presença de causídicos “não valeria”, pois “a advocacia é indispensável para garantir direitos”. A publicação da Ordem escarneceu do sofrimento de todas as vítimas do autoritarismo de toga, pois teceu uma falsa dicotomia entre uma narrativa puramente ficcional, onde violações a direitos seriam “válidas” em virtude do atecnicismo da obra, e uma realidade supostamente pautada pelo império da lei. Pretextou uma normalidade institucional que, essa sim, foi tornada ficção entre nós e silenciou sobre o atentado grave que havia acabado de ser praticado não apenas contra os causídicos atingidos, mas contra a dignidade de toda uma corporação.

No dia seguinte, após a repercussão negativa do assunto nas redes e, por simples coincidência, após a renúncia súbita de seu colega Barroso à toga, Moraes reviu seu despacho para permitir a atuação dos advogados nos autos, concedendo-lhes um prazo-relâmpago de 24 horas para alegações finais. Mudou de opinião sem qualquer alteração fática capaz de justificar tamanha volubilidade e ainda manteve a situação inconstitucional de cerceamento de defesa por ter recusado acesso dos réus às provas novas juntadas pela PGR. Tratou-se de mais uma evidência de que os despachos sigilosos e iracundos de Moraes nada têm de jurídicos, sendo meros reflexos de seus momentos de força ou de fragilidade.

Inacessibilidade de defensores ao teor de acusações, criação de situações desfavoráveis às defesas e advogados reduzidos à condição de rábulas devido à impotência diante de togados inquisitoriais. O realismo fantástico de Kafka se tornou realismo puro e simples no país tropical; pelo menos, para quem tiver olhos de ver.

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Judiciário em Foco

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Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.

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