Golpe ou trama de folhetim?
No país da promiscuidade generalizada e da corrupção na gestão pública, nos hábitos e na linguagem, substantivos abstratos como “democracia” e “golpe” vêm sendo prostituídos para adquirirem os significados convenientes ao establishment. Por uma “pedra falsa, um sonho de valsa ou um corte de cetim”, cortesãs da mídia e até do universo jurídico tornaram a fazer as vontades de potentados e transformaram conversas à espera de táxi e minutas de documentos em atos executórios de uma autêntica quartelada.
Em mais uma canetada histriônica, o “supremo dos supremos” determinou o encarceramento de militares de alta patente e de um policial por supostos indícios de tentativa de abolição do estado de direito, tentativa de golpe de estado e associação criminosa. Ao assim proceder, requentou fatos do final do ano de 22 e decretou prisões preventivas irregulares. Afinal, ninguém minimamente razoável há de crer que pseudo-golpistas, fracassados em seu suposto intento no passado, e distantes da atual estrutura de governo ainda possam representar qualquer ameaça à ordem pública.
Ademais, antes mesmo de um debate sobre o teor das provas trazidas pela PF, as gravíssimas irregularidades processuais, passíveis de serem constatadas por qualquer bom estudante de curso jurídico, não permitiriam a manutenção da decisão por uma hora sequer – a menos que os operadores do Direito e a sociedade em geral já tivessem conferido ao ministro um “salvo-conduto” implícito para violar a Constituição e as leis, conforme necessário à contenção da escalada de um imaginário golpismo bolsonarista. Em prol da preservação da sanidade mental de todos nós, prefiro descartar essa hipótese extrema.
Como é de amplo conhecimento, supremos togados só podem apreciar condutas de pessoas dotadas de prerrogativa de função, razão pela qual a decretação de prisão por juiz incompetente é nula. Trata-se, aqui, da chamada nulidade absoluta, irregularidade irremediável, bem distinta da pretensa nulidade relativa invocada pelo mesmo Supremo, em 2021, para a anulação da condenação de Lula. Ora, se, devido à firula sobre o local da tramitação do processo (aspecto sanado pelo TRF-4 e pelo STJ), a corte reverteu uma condenação em três instâncias, como explicar que, anos depois, o mesmo tribunal mantenha uma deliberação tomada por ministro absolutamente incompetente? Pergunta retórica, por óbvio.
Ao longo de suas mais de 70 páginas, o togado em questão fez referência a si mesmo como pretenso alvo dos “golpistas”, em um discurso em terceira pessoa, por exaustivas 44 vezes. Assumiu, mais uma vez, os papéis de juiz e vítima a um só tempo e sequer se envergonhou de ter cavado o seu impedimento. Sob circunstâncias normais, o fato escancarado pelo próprio magistrado motivaria, por si só, a imediata retirada dos autos de suas mãos. Em nosso cenário de banalização das anomalias, leva seus pares supremos à manifestação de “solidariedade” ao dito magistrado e à manobra de artifícios retóricos para advogar o indefensável.
Ainda sob a ótica da ritualística, nada desprezível é a possível competência da justiça militar para a apreciação do caso, pois o artigo 9, inciso II, alínea c) do Código Penal Militar prevê, como crime militar, a prática, por fardado em serviço (ou atuando em razão da função), de delitos previstos no CPM e no código penal comum contra civis (no caso, contra togado, presidente e vice-presidente da República). Por caber apenas aos legisladores a prerrogativa de dispor sobre as atribuições dos tribunais brasileiros, uma corte suprema não pode, a seu bel prazer, apagar norma da lei penal militar para avocar para si uma competência de que não dispõe.
Quanto aos fatos suscitados pela PF e invocados pelo togado como supostos indícios do tal golpismo, um exame lúcido das condutas não aponta fumaça de ilicitude, pois não indica qualquer início de execução de delitos. Embora as dezenas de páginas do ministro sejam recheadas de alusões bem mais próprias a um novelão com toques de paranoia que à justificativa de decretos prisionais, analisemos apenas alguns trechos mais aberrantes de todo esse enredo.
Uma das espinhas dorsais do conjunto probatório sobre o tal golpismo consistiria em uma planilha encontrada de posse do tenente-coronel do Exército Hélio Ferreira Lima, documento que, de acordo com o relatório da PF, “faz um detalhamento pormenorizado de plano de operação cuja missão seria “restabelecer a lei e a ordem por meio da retomada da legalidade e da segurança jurídica e da estabilidade institucional”” (pg. 28 da decisão). Conforme outro trecho na mesma página, o plano do militar seria implementado mediante linhas operacionais por ele mesmo designadas como “ELEIÇÕES LIMPAS, LEGALIDADE e INFORMACIONAL”; essas linhas-mestras residiriam basicamente no acesso amplo a todos os eventos do processo eleitoral de 22, na designação de uma nova eleição, na elaboração de um decreto presidencial com apoio do congresso, e na divulgação, tanto à população brasileira quanto à comunidade internacional, dos eventuais indícios sobre fraudes eleitorais e das bases legais para uma nova corrida às urnas, dessa vez mais transparente.
Como pode ser concebido por qualquer criança, uma planilha não é prova válida de que seus autores tenham colocado em prática o que haviam rascunhado no papel. Outrossim, indago: em que regime uma eventual exigência de prestação de contas sobre a lisura de um processo eleitoral pode ser tida como crime? Que tipo de autoridade é capaz de punir a mera cogitação em torno da elaboração de um decreto constitucional de estado de defesa a ser endossado pelo parlamento? Que espécie de policiais e de juízes classificam como “planejamento de ruptura” uma intenção de restauração da legalidade mediante a eventual realização de novas eleições caso as anteriores tivessem sido comprovadamente viciadas por fraude?
Em outro trecho igualmente alusivo às “polêmicas” eleições de 22, o togado afirma que o general por ele investigado e preso “defendeu a necessidade de cobrar um prazo para que o TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL autorizasse o acompanhamento das eleições, ressaltando que, caso isso não ocorresse, o Governo teria que agir após as Eleições, com um risco maior de conturbação e possível uso da força” (pg. 36 da decisão). Mais uma suposta evidência extraída do simples domínio da retórica, demonstrando a preocupação do militar em pressionar o TSE em prol de uma maior transparência no acompanhamento dos resultados eleitorais. Longe de configurar “golpismo”, a fala atribuída ao general revelava uma inquietação pertinente, após aquela árida campanha eleitoral marcada por uma leva inédita de mordaças impostas simultaneamente pelo tribunal eleitoral e pela corte suprema a quaisquer figuras identificadas como forças de oposição ao lulopetismo.
Risíveis são os longos parágrafos (páginas 37 e 38) referentes ao envolvimento do general detido com “ações de natureza antidemocrática”, que não passavam do apoio do militar à proliferação de acampamentos montados em frente a quarteis do exército, em seguida à divulgação do resultado da corrida de 22. Por mais que se possa discordar do modusoperandi dos então manifestantes, a realização de protestos nas portas das dependências militares não é conduta tipificada como crime em qualquer lei penal brasileira.
Chegando ao cúmulo do grotesco, o despacho faz referência a um pretenso plano de homicídio de três figurões da república, inclusive mediante o suposto envenenamento de Lula (pg. 52), sem exibir uma prova sequer do início da execução de crime de tamanho potencial ofensivo; sem especificar qual teria sido a substância venenosa utilizada, sua porção e o modo como ela teria sido tornada acessível ao planaltino a ponto de representar uma ameaça iminente de aniquilação de sua vida. Em resumo, mais cinco pessoas foram lançadas à masmorra por juiz incompetente, impedido e, como de hábito em nosso sistema distorcido, sem uma evidência concreta de tentativa de “golpismo” ou de assassinato. Muito menos se comprovou a tal associação criminosa imputada aos militares e ao policial, pois nenhum dos indícios da PF se mostrou robusto o bastante para demonstrar que aqueles servidores públicos fizessem do crime a sua verdadeira atividade profissional.
Em artigo publicado na coletânea intitulada De Marx a MaoTsé-Tung, o sociólogo e jornalista Theodore Draper descreve, em detalhes, as insistentes manobras militares coordenadas por Fidel Castro para a instauração de seu regime comunista em Cuba, nos anos 50. Em 26 de julho de 1953, a tomada frustrada da caserna de Moncada – que rendeu ao guerrilheiro dois anos de encarceramento – é apontada por Draper como marco histórico do surgimento do castrismo como movimento político levado adiante pelas armas. Uma vez posto em liberdade, em 55, Fidel permaneceu seis semanas em Cuba para, em seguida, dirigir-se ao México, onde prepararia a sua invasão. Em paralelo a uma série de manifestos contendo programas de governo, que culminaram no Manifesto de Sierra Maestra, redigido e assinado por Fidel em 57, o guerrilheiro não hesitou em implementar uma série de operações militares, até assumir as “chaves” da ilha.
Nas palavras de Draper, Fidel “escolheu, em 1953, atacar na província mais afastada da capital, no campo militar de Oriente, segundo do país em importância, assim como em um posto secundário sediado em Bayamo ”. Derrotado, Fidel colocou em prática seu segundo plano militar, no qual “pretendia desembarcar de seu meio de transporte, o Granma, perto do porto de Niquero, sempre na província de Oriente, onde esperava reforços ”. A partir de então, deu início ao que, segundo Draper, viria a ser o seu maior diferencial em relação aos demais conspiradores contrários ao então presidente Fulgêncio Batista: a guerra de partisans, mediante o uso de táticas de guerrilha. Conforme descrito pelo autor, após o fiasco de uma greve geral fomentada por Fidel, Batista lançou uma última ofensiva para exterminar o bando castrista em Sierra Maestra, onde Fidel “dispunha então de apenas trezentos homens, dentre os quais uns sessenta tão fracamente armados que eram quase inúteis .” No entanto, graças ao esfacelamento moral das tropas de Batista, e à possível deserção de seus líderes militares, foi “tão brusca a queda de Batista, que surpreendeu o próprio Castro .” Na ilha da América Central, nada de fofocas ou questionamento sobre lisura de processo eleitoral. A troca disruptiva do comando veio pelas armas, em anos seguidos de campanhas militares.
Se nossos fardados efetivamente pretendiam desferir um golpe de estado, deveriam ter consultado a cartilha de Fidel e de toda a “companheirada”. Se nossos togados desejavam investigar e punir pretensos atos golpistas, deveriam ter lido a Constituição, as leis e alguns livros de história. Se nossa grande mídia tencionava levar a verdade ao seu público, deveria ter se prendido à procura dos fatos e não a uma bajulação barata de figurões togados, que, cedo ou tarde, poderão até cansar das cortesãs midiáticas e descartá-las de seu folhetim