Entre supremos, pecados e incertezas
Durante o julgamento, pelo STF, sobre o recebimento da denúncia contra a segunda leva dos “golpistas de papel”, chamou atenção a profusão de citações bíblicas entremeadas aos discursos jurídicos. Da parte das defesas, alusões ao profeta Jonas e a Jesus soavam como apelos desesperados a uma esfera sobrenatural, diante da inexistência de instâncias institucionais às quais recorrer. Já do outro lado da sala de julgamentos, referências ao Gênesis, e até à antiga proibição hebraica de cobrança de juros, emanavam de figuras que, no exercício do poder sem freios, zombavam, à vontade, das normas vigentes e do sofrimento humano injusto.
Se ainda dispuséssemos de mecanismos de freios e contrapesos em operação, os abusos televisionados teriam ensejado a imediata remoção dos envolvidos. Porém, os “pecados” cometidos contra o nosso ordenamento jurídico não encontraram reação à altura, nem por uma maioria de políticos acovardados nem por uma sociedade contaminada pela apatia e/ou pelo pânico de retaliações provenientes dos nossos divinos togados. Dentre as faltas, proponho a seguinte compilação ilustrativa das mais acintosas:
1 – Proibição de veiculação de imagens do denunciado Filipe Martins: na véspera do julgamento, o ministro Alexandre de Moraes vedou a circulação das imagens, ainda que captadas por terceiros, sob pena de prisão do ex-assessor de Bolsonaro. Em mais um de seus despachos arbitrários, o togado impôs a Martins novas cautelares não previstas em nosso Código de Processo Penal e impediu o rapaz de exercer atividades políticas em Brasília. Incorreu na criminalização indevida da política, assim como no reconhecimento implícito de que a “gravidade” do caso residiria tão somente na representatividade de Martins como figura política.
Não satisfeito, ainda submeteu o ex-assessor à iminência de um novo período de privação de liberdade em decorrência de condutas de outrem. Nova violação ao princípio constitucional da responsabilidade penal individual, segundo o qual, no universo dos delitos, cada um só pode responder pelas próprias práticas.
2 – Atentado à advocacia: antes do início do julgamento, o ministro Zanin, na qualidade de presidente da turma julgadora, ordenou a lacração dos celulares dos advogados em prol da pretensa segurança na corte. Contrariou a garantia constitucional e legal dos causídicos à inviolabilidade, própria e de seus instrumentos de trabalho, e o fez à margem do devido processo e sem motivação verossímil para tanto.
Em seus dias de causídico, o Dr. Zanin repudiava a prática por ele designada como “criminalização da advocacia”, representada pela expedição de mandados de busca e apreensão cumpridos em escritórios de advogados suspeitos de delitos graves, tais como lavagem de dinheiro e tráfico de influência. Após endossar a toga, porém, não hesitou em privar seus ex-colegas da posse de seus próprios telefones sem sequer esclarecer os riscos oriundos do uso dos aparelhos.
3 – Atuação de togados impedidos: a exemplo do ocorrido durante o recebimento da denúncia contra a leva anterior de “golpistas”, os ministros Dino, Zanin e Moraes rechaçaram o próprio impedimento e votaram em assunto em relação ao qual possuíam interesse direto inequívoco. Dino, ex-ministro da justiça de Lula no fatídico 08.01 e protagonista da disseminação da narrativa sobre o “golpe”, da demonização de todos os possíveis envolvidos e do desaparecimento das imagens dos eventos, deliberou em desfavor de membros de um grupo político por ele execrado em um passado bem recente. Da mesma forma, Zanin, ex-advogado do arqui-inimigo político de Bolsonaro e membro da equipe de transição do governo de seu ex-cliente, não manifestou qualquer desconforto em votar.
Mais indecorosa ainda foi a atuação de Moraes como relator de uma trama em que teria figurado como o principal alvo da sanha de “golpistas” sob julgamento. Como declarado pelo togado à maior emissora brasileira, em narrativa reafirmada pela PF e pela denúncia da PGR, os insurretos teriam seguido os passos de Moraes e chegado a arquitetar um plano de homicídio do figurão. Nessas circunstâncias, é de se esperar que o todo-poderoso togado aja dentro de padrões mínimos de isenção e imparcialidade?
4 – Apoio de Dino à nota oficial de Barroso: corroborando o tom político da sessão, o ministro Dino fez questão de endossar a nota publicada por Barroso no site oficial do tribunal contendo mentiras e falácias em resposta à revista The Economist. Bem distante dos cânones jurídicos, nossos togados não apenas “reagem” a críticas legítimas da imprensa como ainda interrompem discussões sobre casos concretos para reafirmarem posturas politiqueiras.
5 – Nova exibição de vídeo: reincidindo em conduta praticada no julgamento anterior, o ministro Moraes exibiu mais um vídeo fora dos autos, narrando as imagens no tom dramático próprio aos procuradores das partes, mas inadmissível a um dito juiz. Ao reproduzir cenas de sua própria escolha, editadas sabe-se lá como, pisoteou de vez o dever de imparcialidade para agir como acusador, em visível prejuízo à defesa dos denunciados.
6 – Prejulgamento: na toada farsesca de mais uma sessão destinada a conferir verniz de legalidade à confirmação das “verdades” dos togados, o ministro Moraes sequer se preocupou em disfarçar seus juízos apriorísticos. Impôs, em português claro, sua própria versão sobre a tentativa “inequívoca” de um golpe de estado no 08.01 e deixou a cargo da defesa de cada denunciado a produção da prova de sua não-participação.
Em julgamento onde se discutia apenas o recebimento da denúncia, fase preliminar do processo, bem anterior à formação de um eventual juízo de culpa, o togado já asseverou a materialidade (prática efetiva) dos delitos imputados aos envolvidos, e ainda incorreu em uma inversão inquisitorial do ônus da prova: enquanto, à luz do devido processo legal, cabe à PGR demonstrar a participação dos denunciados e a estes o ônus de contrapor as provas trazidas pela acusação, sob a égide das “normas” alexandrinas, são os denunciados os incumbidos de comprovar o seu não-envolvimento na tal trama.
7 – Manifestação abusiva sobre anistia: durante o seu discurso iracundo, Moraes lançou um questionamento bem usual em programas sensacionalistas de auditório, mas inusitado em uma sessão de julgamento. “E se (a quebradeira) fosse na sua casa, você daria anistia?”, indagou o togado performático, no tom patrimonialista de um figurão que enxerga a coisa pública como sendo de “sua” propriedade. O comentário configurou uma provocação ao parlamento, onde tramita um projeto sobre anistia, e mais uma intervenção indevida na atuação legislativa, em violação ao princípio da separação entre os poderes.
8 – Rediscussão de matéria eleitoral: no voto sobre os supostos indícios de participação no tal “golpe” do ex-diretor da PRF, Silvinei Vasques, Moraes procedeu a um reexame despropositado de fatos ocorridos durante as eleições de 22 e pertinentes tão somente àquele escrutínio. Para sustentar o envolvimento de Vasques na trama, Moraes aludiu ao descumprimento da ordem emanada do próprio togado, então à frente do TSE, sobre a proibição de operações policiais em veículos coletivos, no dia da eleição. Porém, a deliberação de Moraes foi proferida no âmbito de uma corrida eleitoral encerrada, há muito, com a derrota do candidato suspeito de “golpismo”, razão pela qual inexiste utilidade jurídica em ressuscitar o assunto. Tal rediscussão só pode ser enxergada como mais uma manobra intimidatória por parte de um togado que, mesmo após ter deixado a justiça eleitoral, se sente empoderado para reapreciar um tema eleitoral mais que superado.
Em suma, mais um cerimonial togado marcado pela incerteza jurídica acarretada pela afronta aos ritos e destinado a sacralizar a certeza de um resultado definido de antemão. E o nosso porvir?
Os livros finais do Antigo Testamento narram a destruição dos israelitas e de sua terra prometida, pelas mãos despóticas de Nabucodonosor da Babilônia. Segundo a narrativa bíblica, o tirano teria sido enviado pelo próprio Deus de Israel e senhor dos exércitos como instrumento de punição implacável a sucessivas gerações de hebreus que afrontavam a lei divina com a prática interdita da veneração a ídolos e outras condutas enxergadas como pecaminosas. Somente após a queda de Jerusalém e o longo período de exílio, os israelitas foram autorizados por Deus a retornarem ao seu território e a reconstruírem o templo e as tribos sobre novas bases, com maior grau de amadurecimento e de aversão ao pecado.
Sob uma ótica laica, é possível conceber que a permissividade crescente em Israel e o distanciamento da tradição legada por seus anciãos fundadores tenham enfraquecido as instituições a ponto de tornar aquela coletividade uma presa fácil da sanha do tirano vizinho. A exemplo do ocorrido com os antigos hebreus, devastados por um déspota como castigo pelo desrespeito aos ditames de Deus, sociedades modernas corroídas pela corrupção endêmica e por um “vale-tudo” de flexibilização das normas jurídicas também podem sofrer os efeitos avassaladores dos desejos de autocratas de plantão. Afinal, em ambientes onde o saque ao erário público segue impune, à luz do dia; onde a tripartição de poderes se torna ficcional; e onde membros de tribunais são investidos da toga por interesses meramente politiqueiros, julgamentos se tornam simulacros de uma legalidade em extinção.
Na Israel de outrora, os hebreus arcaram com o peso e as amargas consequências de seus pecados. Nos dias de hoje, sob o sol dos trópicos, uma população inteira se vê exposta a desmandos de toda espécie, incluindo descontos criminosos em folhas de pagamento de aposentados, insegurança pública generalizada e ineficiência do judiciário nas mais diversas instâncias. Espera-se que o laivo de lucidez de atores políticos, econômicos e midiáticos evite, a tempo, eventos trágicos comparáveis àqueles descritos pelos profetas bíblicos.