As liberdades: do banco dos réus à condenação sumária

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O que você diria de um país estrangeiro onde togados proferissem comentários jocosos durante atos processuais, arrancando gargalhadas de jurisdicionados, advogados e demais espectadores das sessões? Talvez você imaginasse tratar-se de uma nação onde o apreço às liberdades fosse tão eficiente no freio ao autoritarismo estatal a ponto de permitir aos indivíduos o gozo de saudáveis momentos de descontração, até mesmo diante de figurões investidos do poder de ditar o seu ir e vir no amanhã. Cuidado, pois aparências podem ser enganosas.

Na semana passada, presenciamos dois eventos protagonizados pelo STF em assuntos ditos distintos, mas imbricados na mesma geleia narrativa de um colegiado que deixou de ser judicante para se tornar político. Embora não envolvam as mesmas partes nem girem em torno dos mesmos pedidos ou das mesmas causas de pedir, os processos do “golpe” e da responsabilização das redes por conteúdos são mantidos, pelo tribunal, sob uma codependência patológica, vez que alheia aos dispositivos processuais vigentes. Porém, sob a ótica de uma corte que passou a desprezar a segurança dos ritos, não haveria “golpismo” sem a “terra sem lei” na qual teria se transformado o ambiente digital brasileiro, da mesma forma como não haveria “milícias digitais” sem propósitos “antidemocráticos”.

Nessa toada, o cerne da atuação da nossa suprema corte passou a ser o exame do teor das falas, mais especificamente das ideias manifestadas por políticos, militares, assessores e usuários de redes. Esqueça, caro leitor, a averiguação de provas de materialidade delitiva de um “golpe” efetivamente tentado, como teriam sido a presença de tanques e militares insurretos, e os subsequentes sequestros e/ou prisões de autoridades. Todas as pretensas evidências buscadas pelo tribunal inquisidor pertencem ao domínio da retórica.

Não à toa, durante o interrogatório de todos os réus do chamado “núcleo 1” da trama folhetinesca desenhada pela polícia federal e pela PGR, o ministro Alexandre de Moraes gastou dois dias com inquirições sobre opiniões ou sobre reuniões em que se discutia palavrório, sem qualquer repercussão prática direta. Após uma longa tarde dedicada às “idas e vindas” nas diversas versões de Mauro Cid, delator nada espontâneo, o togado se debruçou sobre a rotina de condução da Abin, sem qualquer pejo em interrogar o deputado Ramagem, cujo processo já havia sido suspenso por deliberação da maioria parlamentar, na forma da Constituição.

Em seguida, vieram o almirante Garnier, acossado sobre as razões de sua ausência na troca de comando, já na era Lula; o ex-ministro Anderson Torres, inquirido acerca de opiniões em lives; e o general Heleno, que, apesar do exercício do direito constitucional ao silêncio frente às perguntas de Moraes, foi questionado pelo togado mesmo assim. Ainda no tocante à oitiva de Heleno, cabe menção especial à troça dirigida por Moraes ao causídico do militar, e que, em vez do devido repúdio pelo profissional no exercício de seu ofício, gerou risinhos entre os presentes.

O depoimento de Bolsonaro foi farto em indagações sobre a pretensa “minuta do golpe”, a vedete do caso, que incorpora toda a inconsistência das acusações da PGR, pois a violência inerente à derrubada de qualquer regime é incompatível com o conceito de “minuta”, rascunho que nada contém além das ideias de seus autores. Sempre no mesmo plano da mera comunicação, abundaram questões sobre a postura do ex-presidente acerca do sistema eleitoral e até sobre o seu “empenho” na desmobilização dos acampamentos em frente aos quarteis, durante a corrida de 22. Ao que o ex-presidente respondeu mediante a defesa habitual do voto impresso, se escusou por sua retórica por ele mesmo classificada como inflamada e aproveitou para convidar Moraes a juntar-se à sua chapa nas eleições de 26. Ironia descabida em processo tão arbitrário, que acabou por suavizar a imagem de um togado abusivo e por enfraquecer todas as denúncias sobre seus comprovados desmandos.

Em mais esse triste espetáculo de demolição da institucionalidade, o general Paulo Sérgio apresentou desculpas por sua retórica e ainda aludiu a um pretenso “medo” de que suas conversas com colegas de caserna viessem a ter seu sentido deturpado. Como encerramento, acompanhamos o depoimento do general Braga Netto, encarcerado por decisão inconstitucional e ilegal, mas, ainda assim, indagado sobre o teor de reunião em sua casa e sobre o recebimento jamais demonstrado de valores para o financiamento do tal “golpe”.

Se ainda vivêssemos sob o império da Constituição e das leis, as inquirições formuladas durante o interrogatório teriam sido refutadas, tanto pelos réus quanto por seus advogados, por serem todas elas compreendidas pelo legítimo exercício das liberdades de expressão e de associação, em cujo âmbito agentes estatais não poderiam se imiscuir. Contudo, nosso regime de exceção criminalizou conversas de bar, de gabinete e de quartel, em um cenário onde advogados se tornaram figurantes em um simulacro de legalidade, e as partes, títeres de um “jogo jogado” segundo as regras dos usuários da toga.

O interrogatório parece ter se prolongado para muito além das oitivas, pois a ladainha de Moraes sobre a pseudo-necessidade de uma regulação estatal à liberdade de expressão permeou todo o seu voto no julgamento sobre responsabilidade de plataformas por postagens digitais. Atuando com a paixão própria às partes, mas inadmissível em um togado, Moraes insistiu na premissa errônea de que a liberdade opinativa não seria absoluta, razão pela qual o artigo 19 do Marco Civil da Internet seria inconstitucional, cabendo aos provedores uma responsabilização por “discursos de ódio e antidemocráticos”.

Contudo, inconstitucional é a postura de um juiz-legislador, criador de obrigações de fazer para as plataformas por ele transformadas em rastreadoras de “riscos à democracia” e em delatoras da fala alheia às autoridades, sob pena de responsabilização pecuniária para as empresas e até de sanções criminais para seus executivos. Contrárias à Constituição são deliberações de uma cúpula togada que, destroçando princípios do direito civil, concebe a prática de pretensos atos ilícitos antes mesmo do surgimento dos respectivos danos a outrem, independentemente de reclamações dos interessados e fora da segurança do devido processo legal.

No curto prazo, o histrionismo midiático de potentados do STF, em seu prejulgamento de repúdio ao “bolsonarismo” e ao “extremismo de direita”, sinaliza uma enorme probabilidade, para não dizer certeza, quanto à condenação dos réus pela tão propalada – e jamais demonstrada – tentativa de golpe. Nos próximos anos, se o país seguir incapaz de remover e punir abusadores de toga e de colocar freios institucionais nos poderes a serem exercidos por seus sucessores, nosso horizonte poderá ser marcado por restrições estatais à nossa retórica e pela construção de uma sociedade de “insetos”, apavorados diante da mera perspectiva de falar trivialidades do cotidiano – ou até de pensá-las.

A admiração de todos os supremos pela ditadura de Xi-Jiping, verbalizada pelo ministro Gilmar Mendes, assim como a recente cooperação judiciária entre o Brasil e um país tão castrador das liberdades quanto a China, corroboram a perspectiva, para nós, de uma organização de vida social “pesadelesca”, termo usado por Raymond Aron em alusão à realidade soviética na Guerra Fria e como contraponto ao modelo “imperfeito, vulgar e passavelmente prosaico” da sociedade norte-americana. Que tenhamos a lucidez e a coragem para lutarmos por uma rotina de imperfeições, mas onde as liberdades individuais sejam sagradas.

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Judiciário em Foco

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Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.

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