Artistas na corte: uma “paródia” ao Estado de Direito?
No exato dia em que todos os olhares midiáticos convergiam para as buscas no gabinete do deputado federal Alexandre Ramagem, determinadas pelo ministro Alexandre de Moraes a partir de suposições persecutórias, membros do poder não-eleito protagonizavam outro evento, que não gerou uma repercussão à altura de seu significado. Afinal, como não se pode estar atento a tudo, a todo instante, sistemas autoritários costumam apostar em datas coincidentes para múltiplos acontecimentos potencialmente atentatórios às liberdades e optam por lançar um deles aos holofotes, enquanto os demais jazem quase anônimos, produzindo seus efeitos deletérios no silêncio das sombras.
O TSE, então sob o comando de sua vice-presidente, ministra Carmen Lúcia, realizou audiência pública para a discussão de sugestões com vistas ao “aprimoramento” das eleições 2024. Como esperado, o tal “combate à desinformação” reinou como prima donna no debate, em meio a outros temas como transporte gratuito nos dias de votação, e proibição de circulação de CACs (caçadores, atiradores e colecionadores) com armas de fogo, nas 24 horas anteriores e posteriores ao pleito. Ouvidas sugestões de pessoas previamente inscritas para participação na audiência, a togada, certa do cumprimento de seu dever “democrático”, enfatizou seu propósito de que “as redes sejam mesmo sociais e não antissociais, e que sejam instrumentos da melhor política e não contra a política democrática[1]”. A mesma magistrada que, em 22, havia julgado constitucional a censura inconstitucional ao conteúdo de uma produtora – desde que só até a data da eleição! –, esqueceu-se apenas de esclarecer o que seria definido como “política democrática”, com base em quais parâmetros e por quem. Devem ser questionamentos bizantinos para uma alma tão imbuída de democracia…
Durante a audiência, fala digna de nota partiu da cantora e compositora Marisa Monte, enfática em pedir à corte eleitoral que possibilitasse aos artistas “vetarem” o uso de paródias de suas obras em jingles eleitorais. Marisa disse “se sentir torturada moral e psicologicamente ao ver um candidato, com quem não tem nenhuma afinidade, travestir uma música dela para usar como jingle em campanha.” Para a artista, esse tipo de paródia consistiria em “violência moral”, pois “quando ela é utilizada em propaganda eleitoral, ela cria uma nova intenção, um desvio de finalidade, que é justamente promover aquela candidatura, aquele candidato, aquela ideologia ou aquele partido[2].”
Como primeira curiosidade dessa manifestação, por ela externada em nome de todo um coletivo de compositores nacionais, vale observar que Marisa deveria ter endereçado seu pleito ao congresso nacional e não a um tribunal. Ora, até onde eu saiba, um órgão judicial, encarregado de dirimir litígios concretos entre partes determinadas, não dispõe de atribuições para normatizar um rol genérico de situações futuras. Pelo menos, não em uma democracia “absoluta”.
Quanto ao teor de seu inconformismo, a cantora revelou que, apesar de artista, pouco conhece sobre a esfera legal de seus próprios direitos. Se tivesse tido a simples curiosidade de reler a Lei de Direitos Autorais (Lei 9.610/98), teria recordado que o legislador concedeu liberdade quase plena aos autores de paródias, tendo imposto a estes as duas únicas obrigações de não reproduzirem a íntegra da obra parodiada e de não acarretarem descrédito a esta[3]. Obrigações, aliás, cujo cumprimento é decorrência natural do próprio ato de parodiar, ou seja, de criar uma imitação cômica de algo e, por isso mesmo, diversa desse “algo”, e com o intuito de satirizar uma certa situação, e não a obra em si.
Filha legítima da liberdade de expressão, a paródia é puro deboche, destinado a arrancar gargalhadas do público a partir de um mote fornecido por obra alheia. Seja mediante o uso de uma linha melódica de obra musical, de refrão de obra lítero-musical (uma canção, por exemplo) ou de alusão a personagens de obra audiovisual, o objetivo único do parodiante consiste em subverter o teor da peça original, com vistas à geração de um efeito cômico a partir de distorções ou exageros. Dessa forma, por tratar-se de peças distintas em sua natureza e finalidade, paródia e obra parodiada seguem existências autônomas, razão pela qual o parodiante prescinde de autorização do autor da obra original para o desenvolvimento de sua atividade humorística.
Outrossim, cumpre enfatizar que, longe do que pretende Marisa, o legislador contempla o livre uso das paródias em geral, sem distinção entre paródias para fins políticos e aquelas destinadas a outros propósitos. Portanto, cara intérprete e compositora da MPB, onde o legislador não distingue, não cabe ao intérprete (juiz) fazê-lo. É princípio de direito velho como o tempo, e consagrado em sociedades organizadas, como modo de garantir aos cidadãos que magistrados não-eleitos jamais ultrapassem o escopo delimitado por mandatários escolhidos pela população.
A propósito, nunca é demais recordar que, em processo bem recente, o próprio STJ chancelou o uso da canção “O Portão”, de autoria de Roberto Carlos, em paródia política do deputado Tiririca, durante campanha eleitoral do humorista[4]. Como reconhecido pelos togados, por ocasião do julgamento, não se configurou qualquer fundamento para a repreensão à conduta de Tiririca, muito menos para sua responsabilização, pois, além de ter modificado a letra, o parlamentar comediante não incorreu em ofensas à canção ou a Roberto.
Nem poderia Marisa, em defesa de sua postura, ter invocado o caráter híbrido do direito autoral, que, efetivamente, apresenta um cunho tão patrimonial (possibilidade de remuneração pela exploração da obra) quanto moral (emanação do espírito do autor). Ocorre que, no âmbito do humor – inclusive do político! –, onde se situam as paródias, a intenção é a de despertar o riso e não de causar prejuízos materiais ou morais à obra original ou ao seu autor. Ao que tudo indica, o pânico da artista de ver traços de suas composições nos lábios e/ou no dedilhado de algum dito “extremista político” a leva a perder toda a objetividade em relação àqueles que apenas divertem seus espectadores. Talvez, o mais aguerrido “extremista” seja aquele desprovido da capacidade de rir, até mesmo ao lado de opositores políticos, pois, afinal, todos nós partilhamos a mesma natureza humana, passível de nos levar a reações semelhantes diante de situações burlescas.
Assim caminha nossa sociedade, onde os eternos “ismos” batizados por Roberto Campos – as chagas do nacionalismo, do populismo, do estatismo e do protecionismo – agora convivem com “irmãozinhos” falsificados pelos caciques e pela grande mídia, nas figuras dos pseudo-ismos “extremismo” e “golpismo”. É até bem possível que essas falsificações grosseiras e quebráveis ao primeiro vento tenham surgido, em boa medida, como tentativa de maquiar a face horrenda dos “velhos irmãos”, e de silenciar a discussão sobre medidas efetivas para a nossa redenção dos verdadeiros vícios.
Seja como for, ao pensar no Estado de Direito como “obra coletiva” desenvolvida ao longo de séculos, indago se, em meio aos arbítrios monstruosos que nos cercam, nosso cenário atual poderia ser enxergado como uma subversão caricaturesca da “obra original”, de autoria de espíritos livres e ávidos por uma margem considerável de segurança no mar das incertezas inerentes à vida. Reflita em silêncio e cuide para que sua resposta não seja ouvida nem mesmo pelas paredes.
[1] https://informejuridico.net/index.php/2024/01/25/carmen-lucia-defende-que-redes-sejam-instrumentos-da-melhor-politica-e-nao-contra-a-politica-democratica/
[2] https://informejuridico.net/index.php/2024/01/26/em-evento-no-tse-marisa-monte-defende-veto-a-parodias-em-jingles-de-campanhas-me-sinto-violada/
[3] Artigo 47 da LDA
[4] https://www.migalhas.com.br/quentes/315633/stj-anula-condenacao-de-tiririca-por-parodia-com-musica-de-roberto-carlos