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Houve liberalismo na era Collor? Og Leme comenta Fernando Collor

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A série de artigos do presidente Collor sobre “social-liberalismo” é um fato político da maior importância e o presidente deve ser cumprimentado pela coragem de revelar de forma tão direta a sua preferência doutrinária. Grande parte das ideias expostas poderia facilmente fazer parte de qualquer plataforma política liberal. Mas algumas delas dão motivo para preocupação.

A profissão de fé liberal do presidente Collor padece de um grave defeito: a sua inspiração holístico-animista. Esta se constituiu na espinha dorsal da série de artigos, ao ponto de culminar na adoção do adjetivo social para qualificar o liberalismo. Liberalismo social não existe: ou é liberalismo ou não é. Da mesma forma que não existe democracia social: ou é democracia ou não é. E nem sequer é necessária a adoção do adjetivo para qualificar a (justificada) preocupação presidencial com o problema dos desvalidos, dos miseráveis ou dos analfabetos, pois é parte “natural” da agenda liberal a presença governamental nas áreas de saúde pública, saneamento e educação.

Uma das características da história do século XX foi exatamente a atração de regimes totalitários e ditatoriais pelo vocábulo “social” ou, no caso da Alemanha nazista, pelo seu sinônimo “nacional”.

O que há de comum nesses desvios doutrinários é a subordinação dos interesses, propósitos e direitos individuais a supostos objetivos sociais, nacionais ou comuns, o que na prática resulta na submissão das pessoas ao Estado, isto é, resulta exatamente no inverso daquilo que o presidente pretende: um “Estado a serviço da sociedade”.

Não há dúvida de que o presidente procura ser coerente com o seu social-liberalismo, pois dá ênfase a expressões como “justiça social”, “bem comum” e “projeto nacional”. Ora, quem vai decidir o que é melhor para todos? O único “bem comum” para o liberal é a existência de uma ordem liberal compatível com direitos e liberdades individuais; o único “projeto nacional” liberal, portanto, é a criação de um ambiente no qual os 150 milhões de brasileiros possam, em liberdade e segurança, desenvolver os seus projetos individuais de vida. A única “justiça social” concebível para o liberal consiste no atendimento das duas condições anteriores.

Ainda coerente com o uso do adjetivo “social”, o presidente parece estar privilegiando os propósitos, os direitos e os projetos do governo, pois caberia ao Estado o papel de “promotor de uma estratégia de desenvolvimento”. Ora, para os liberais o desenvolvimento nacional é um subproduto não programado da ação livre, espontânea e responsável de milhões de indivíduos; e a lição que nos dá a história é a de que o desenvolvimento nacional é maximizado quando a presença estatal é minimizada. Além de haver caído na armadilha do holismo-animista (lembremo-nos de que o holista Hegel dizia que “o Estado é o espírito do povo” e lembremo-nos também de que, para se dotar o Estado de um espírito, é necessário que o povo doe o seu ao Estado), Collor cai no mito da “igualdade de oportunidades” e no mito da pura “igualdade”. Não nos iludamos, o objetivo da igualdade de oportunidades é praticamente inviável e, além disso, quando é tentado leva o governo a tratar as pessoas de forma diferente, o que significa ferir o grande princípio do Estado de Direito – o da igualdade de todos perante a lei. Frequentemente, no curso da história, a busca da igualdade resultou em dolorosas e profundas lesões à liberdade individual. Mais ainda, igualdade e liberdade representam objetivos de difícil, senão impossível, conciliação, pois a primeira requer mais governo, ao passo que a segunda exige necessariamente menos governo.

A despeito desses graves soluços de lógica doutrinária, se as ideias do presidente Collor, tal como delineadas em seus artigos, fosse, transformadas em programa de ação e este fosse implantado em nosso país, certamente conheceria melhores dias, muito melhores realmente. E o nosso jovem presidente seria, com justiça, reconhecido como respeitabilíssimo estadista. Mas sua administração não seria de cunho liberal e sim de “terceira via”, e esta pode facilmente se converter tanto em liberalismo como em socialismo. Um copo pela metade está meio vazio ou meio cheio? Para os liberais, está meio cheio de liberalismo. Para os socialistas, está meio vazio de socialismo. A esta altura, é difícil deixar de lembrar a Alice de Lewis Carroll,  diante da encruzilhada: “Se não sabemos aonde queremos ir, qualquer caminho serve…”

Este artigo foi originalmente publicado pelo Instituto Liberal no IL Notícias 1992, por Og Leme (1922-2004), e republicado no livro Editoriais Og Leme, editado pelo IL em 2012.

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Og Leme

Og Leme

Og Leme foi um dos fundadores do Instituto Liberal, permanecendo por décadas como lastro intelectual da instituição. Com formação acadêmica em Ciências Sociais, Direito e Economia, chegou a fazer doutorado pela Universidade de Chicago, quando foi aluno de notáveis como Milton Friedman e Frank Knight. Em sua carreira, foi professor da FGV, trabalhou como economista da ONU e participou da Assessoria Econômica do Ministro Roberto Campos. O didatismo e a simplicidade de Og na exposição de ideias atraíam e fascinavam estudantes, intelectuais, empresários, militares, juristas, professores e jornalistas. Faleceu em 2004, aos 81 anos, deixando um imenso legado ao movimento liberal brasileiro.

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