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“Governo Onipotente”: o “O Caminho da Servidão” de Mises

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Em sua clássica obra O Caminho da Servidão, livro publicado em 1944 que apresentou a muitos os fundamentos do liberalismo – inclusive a este que vos fala -, o economista austríaco Friedrich Hayek desenvolve uma crítica aos riscos do intervencionismo, do estatismo e, principalmente, do planejamento central da economia, denunciando que cada espaço a mais concedido à direção estatal sobre a atividade econômica é um passo em direção ao totalitarismo. Naquele trabalho, propositadamente concebido para servir como propaganda liberal, Hayek adotou a Alemanha e o nazismo como ilustrações recorrentes do inimigo.

O que poucos sabem é que o livro Governo Onipotente, de seu professor Ludwig von Mises, tem, em linhas gerais, o mesmo foco temático e foi lançado na mesma época. O editor da LVM Editora – que recentemente lançou esta obra em português para os assinantes de seu clube de livros Ludovico -, Alex Catharino, afirmou que a obra de Hayek ofuscou a popularidade da de seu mestre, que mereceria ser mais conhecida. Não me aprofundarei em debates quanto a comparações de qualidade; em minha opinião, a obra de Hayek permanece sendo a mais palatável introdução sobre o tema ao público em geral e seu valor, naturalmente, jamais poderá ser diminuído.

Entretanto, sob diversos aspectos, a obra de Mises tem mais densidade e assume as proporções de um tratado, evocando sutilezas e aprofundamentos bastante enriquecedores sobre a cultura e a história alemãs e a ascensão do nacional-socialismo de Adolf Hitler. Um dos fenômenos pertinentes ao nazismo que Mises se põe a analisar é o nacionalismo, aqui conceituado sempre em tom negativo. Mises, tal como o escritor católico brasileiro Gustavo Corção, distingue nacionalismo de patriotismo, este último definido por ele como “o zelo pelo bem-estar, pelo florescimento e pela liberdade da própria nação”.

De acordo com Mises na introdução do livro, o nacionalismo é apenas um método para atingir os objetivos visados pelo patriotismo. Os liberais podem perfeitamente ser patriotas, e na opinião de Mises eles o são, mas “afirmam que os meios recomendados pelo nacionalismo são inapropriados e que sua aplicação não apenas não realizaria os fins buscados como, pelo contrário, resultaria inevitavelmente num desastre para a nação”. Enquanto o nacionalismo recomendaria a busca do sucesso de uma nação fazendo o mal aos estrangeiros e discriminando-os na esfera econômica – por meio da sua exclusão do mercado doméstico ou admissão apenas através do pagamento de taxas, confisco de capital estrangeiro, proibição de trabalho estrangeiro etc. -, o liberalismo recomendaria “o livre comércio, a divisão internacional do trabalho, a boa vontade e a paz entre as nações, não por causa dos estrangeiros, mas da promoção da felicidade de sua própria nação”. O objetivo do livro de Mises é demonstrar que os desastres totalitários e as guerras dantescas que o mundo experimentava derivavam do afastamento dessa receita, tal como Hayek pretendeu fazer em O Caminho da Servidão.

Para Mises, a objeção de muitos intelectuais e lideranças nas democracias ocidentais ao nacional-socialismo e ao comunismo soviético era conceitualmente débil porque, em substância, essas lideranças haviam capitulado a apostas antiliberais. Ao adotarem políticas progressivamente intervencionistas sem sequer sentirem, causaram uma porção de problemas que a opinião pública, desavisada, atribuiu ao capitalismo – justamente a maior vítima em toda essa História.

De forma um tanto abstrata, Mises apresenta uma teoria segundo a qual a paz só seria realmente possível em um mundo de capitalismo puro, em que nenhuma nação, cujo Estado se restringiria à manutenção da vida, da liberdade e do direito à propriedade, teria interesse na guerra. Ele inclusive prefere usar o termo “etatismo” em vez de “estatismo” para referenciar que a origem dessa mentalidade não seria anglo-saxã (“etatismo” viria de “état”, o francês para “estado”); peço licença a Mises para manter a convenção em meu ensaio porque, confesso, não sou dado a essas rebeldias.

Em um mundo estatista e protecionista, na visão misesiana, a guerra passa a ser interessante e estimulada pelos próprios cidadãos, interessados na dominação de outras nações para remover as restrições econômicas que elas lhes impõem. No caso concreto da época, a Alemanha seria o ponto focal da crise, transformada de uma nação de grandes pensadores, poetas e mesmo intelectuais liberais em uma distopia tirânica. A partir desse exemplo, Mises diz que o escopo de seu Governo onipotente é tratar “das consequências do etatismo para as relações internacionais”, demonstrando como “as considerações econômicas estão empurrando todos os governos totalitários para a dominação mundial”.  O caminho determinante para reverter a situação passaria por uma reforma nas ideias, desafiando as doutrinas e partidos estabelecidos.

Vejamos agora uma síntese do conteúdo de cada capítulo. No primeiro, Liberalismo alemão, Mises reforça a diferença entre o nazismo e o militarismo prussiano antigo, dizendo que o nacional socialismo era de fato a proposição de “algo novo e inaudito”, não “a restauração de algo passado”. Ele também ressalta a existência de uma tradição liberal alemã que, se, em sua opinião, nada produziu de realmente original na formação do liberalismo, acolheu com entusiasmo as ideias de liberdade e direitos do homem do Ocidente. Os liberais alemães, entretanto, toleravam os governos dinásticos tradicionais dos diversos estados alemães à espera de que a educação e o progresso da prosperidade “arrastassem” a população em geral para suas ideias. Seu objetivo seria unificar a Alemanha em torno de um único Estado, regido pelo liberalismo. Porém, foram engolidos pelo militarismo prussiano e pelo socialismo.

O triunfo do militarismo narra essa infelicidade, com a ampla lealdade do exército ao imperador e a atribuição de um grande papel aos militares na política – característica que, diga-se de passagem, seria bastante criticada pelo liberal Rui Barbosa no Brasil. O liberalismo alemão acreditava no fatal triunfo de suas ideias, mas se viu surpreendido pelo crescimento das correntes antiliberais.

O terceiro capítulo analisa mais detidamente um dos “patinhos feios” centrais na obra, o que Mises chama de Etatismo – e eu me permito chamar de estatismo mesmo. Mises traça sua origem na Europa ocidental, a partir dos socialistas utópicos e do Positivismo de Augusto Comte, de onde chegou à Alemanha, e o divide em duas categorias: o socialismo e o intervencionismo (distinção que não é estranha aos leitores de seu monumental tratado Ação Humana). O autor também traça aí a diferença entre o socialismo russo, em que toda a atividade econômica é departamento do governo, e o socialismo alemão dos nazistas, que mantém a propriedade privada, mas nas mãos de gerentes que recebem ordens diretas do governo – um “socialismo com a fachada do capitalismo”. Mises curiosamente atribui essa diferença ao fato de que a Rússia dispunha de território imensamente maior e mais recursos, o que permitia mais sustentabilidade ao seu regime daquela forma.

Em Etatismo e nacionalismo, Mises discute o conceito de nação, que, entre os liberais alemães e italianos, acabou associado à ideia de grupo linguístico. A nação seria a comunidade de todos que falassem a mesma língua, o que faria com que, uma vez que cada Estado estivesse associado a um mesmo idioma, houvesse paz. Porém, como o autor aponta, esse conceito perde valor diante de vastos territórios com idiomas misturados, além de haver diversas questões históricas que tornam a realidade bastante mais complexa do que isso. Mises prefere o conceito do francês Ernest Renan, que situa em uma nação aqueles que desejam viver juntos em um Estado – mais próximo de uma verdade universalmente aplicável, embora também conserve limitações. Uma versão estatista e agressiva do conceito de nacionalidade, entretanto, atrelada ao fetiche idiomático e a uma série de estereótipos que o acompanham, prevaleceu e tumultuou o planeta com grandes conflagrações.

No capítulo Refutação de algumas explicações falaciosas, Mises contesta algumas justificativas criadas à sua época para compreender o fenômeno do nacionalismo moderno. Uma delas seria a demagogia inerente às camadas populares, o que Mises contesta, lembrando que as doutrinas políticas em geral são concepções das elites políticas e intelectuais.

Em As características peculiares do nacionalismo alemão, ele desvela que, olvidando-se a Rússia, os alemães perfaziam o povo mais numeroso da Europa, vivendo significativa população germanófona fora da Alemanha propriamente dita. Julgando seu povo mais forte e guerreiro, o nacionalismo alemão enxergou a Alemanha predestinada à hegemonia e à conquista, reincorporando todos os alemães do lado de fora com base na ideia do nacionalismo linguístico abordada nos capítulos anteriores. Os nazistas beberam do pan-germanismo essa obsessão injustificável, bem como desenvolveram seu próprio polilogismo – outro conceito frequente em Mises, com que ele designa a ideia dos adversários do liberalismo de que existem lógicas diferentes, separadas por abismos intransponíveis, de acordo com a classe a que pertencemos (caso do Marxismo) ou a raça (caso do nazismo).

Para traçar um quadro abrangente do estatismo na Alemanha, Mises também dedica um capítulo a mapear a atuação dos marxistas alemães, sob o título Os social-democratas na Alemanha imperial. Antissemitismo e racismo menciona a inaptidão teórica do racismo alemão, que tratava por “arianos” de forma geral todos os homens brancos que falavam alemão, ainda que muitos tivessem “ancestrais eslavônicos, românicos ou mongóis”. O desenho da ascensão do estatismo alemão é coroado no capítulo A república de Weimar e seu colapso. Conforme descreve Mises: “Os alemães teriam decidido em 1918 a favor da democracia caso tivessem tido essa opção. Porém, do jeito como as coisas estavam, eles só podiam escolher entre duas ditaduras, a dos comunistas e a dos nacionalistas. Entre esses dois partidos ditatoriais, não havia terceiro grupo pronto para defender o capitalismo e seu corolário político, a democracia. (…) A República de Weimar não tinha programa além de buscar um caminho intermediário entre dois grupos que queriam a ditadura”.

Nesse cenário, comunistas e nacionalistas se transformaram em “partidos armados”. Os nacionalistas agiam reunindo “soldados desmobilizados e garotos desajustados”; verdadeiras gangues tomaram a política germânica. O medo da esquerda marxista levou ao apoio popular às Tropas de Assalto nazistas, compostas por “rapazes sem emprego que viviam da briga”, dispostos a lutar até o fim por Hitler. No mesmo capítulo, analisando o Tratado de Versalhes, Mises contraria a versão – adotada por Keynes e Hayek – de que o tratamento dispensado à Alemanha derrotada teria sido essencial para alimentar a eclosão do nazismo e de uma nova guerra. Para Mises, o anseio pela expansão do “espaço vital” e a configuração do mundo nacionalista e estatista levaria inevitavelmente a uma nova guerra naquela circunstância.

O nazismo como problema mundial discute a necessidade de abandonar o pacifismo ingênuo. Citando Kant em seu preceito de que um princípio moral prova seu valor se ele pode ser universalmente aceito como regra de conduta, Mises diz que a não-resistência e a atitude pacífica em relação ao nazismo levariam, universalmente adotadas, à destruição da civilização ocidental. Procura também explicar a ascensão do nazismo como, “a partir das condições do industrialismo moderno e das doutrinas e políticas socioeconômicas atuais”, o resultado de uma situação “em que a imensa maioria do povo alemão não viu meio de evitar o desastre e de melhorar de vida exceto aqueles indicados pelo programa do Partido Nazista”, acreditando no próprio poder de buscar a expansão territorial e estimulados por uma lamentável opção estatista – que Mises nunca aceita como fatal, mas como uma opção errônea adotada pelos indivíduos de um povo.

Os últimos capítulos, Os delírios do planejamento mundial e Esquemas de paz, são dedicados a uma reflexão misesiana sobre os caminhos a serem adotados para melhorar o cenário internacional e proteger a civilização ocidental. Aí, Mises sustenta a união das democracias ocidentais como o único caminho concretamente possível para o bem da civilização e avalia em detalhes o cenário na Ásia e no Leste Europeu ao seu tempo.

Na sua conclusão, Mises adota um tom incrivelmente cru ao dizer que, na sua opinião, sem peias, “a maioria dos homens é burra demais para acompanhar cadeias complicadas de raciocínio”, fazendo com que o liberalismo tenha fracassado pela incapacidade, na época, de a maioria das pessoas perceber os benefícios que ele legou à humanidade. Hayek foi menos duro ao dizer, em seu O Caminho da Servidão, que os socialistas foram habilidosos em explorar a afobação por experimentar frutos mais vastos das benesses que o liberalismo provocava, levando a sociedade a interpretar que os problemas ainda não eliminados teriam sido causados por ele.

Em resumo, ele retoma ao final a sua crença de que apenas em um mundo de capitalismo perfeito, nunca realizado, seria possível a paz duradoura – algo que lembra a universalização das Repúblicas ansiada por Kant em seu A Paz Perpétua. Se há recusa em abandonar o estatismo, as alternativas restantes seriam um governo mundial que impusesse o abandono do nacionalismo econômico como forma de buscar a paz ou a união de nações democráticas, porém, “infelizmente, os interesses de poderosos grupos de pressão opõem-se a essa renúncia à soberania nacional”. Mesmo que fosse possível, a especulação de Mises quanto a um governo global parece um dos aspectos mais inaceitáveis de sua obra, porque é muito mais crível, como se verifica hoje, que, ao contrário, entidades supranacionais estabeleçam um nível maior de intervencionismo nas dinâmicas locais e regionais, muito difícil de suportar, desconectadas que estão da realidade em si mesma, como preconizaria o princípio da subsidiariedade.

Vivendo em um mundo mergulhado em uma guerra planetária, Mises parecia querer que fosse possível encontrar uma solução mais definitiva para tamanho belicismo e, não a vendo palpável, demonstrava pessimismo e forte preocupação com o futuro. Tais considerações devem ser lidas sob esse prisma; certamente, observando a História posterior em retrospectiva, o mundo não se transformou em um Paraíso de capitalismo perfeito, bem como as nações não foram – e, a meu ver, nem podem ou devem ser – desfeitas. Entrementes, tampouco submergimos em qualquer nova guerra mundial, ainda que também não tenhamos estabelecido a paz generalizada.

O que permanece de definitivo e atual em Governo onipotente é o diagnóstico detalhado da substância do totalitarismo e de sua marcha de ascensão na Alemanha, bem como o apontamento didático do único antídoto: o enraizamento da convicção liberal. Merece destaque, por isso mesmo, a crítica dura que contém aos estatistas das democracias ocidentais, pouco eficazes na denúncia dos males do nazismo, porque por vezes seduzidos por doses apenas menores do conteúdo ideológico alimentado pelo mesmo inimigo que estavam destinados a combater.

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Lucas Berlanza

Lucas Berlanza

Jornalista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), colunista e presidente do Instituto Liberal, membro refundador da Sociedade Tocqueville, sócio honorário do Instituto Libercracia, fundador e ex-editor do site Boletim da Liberdade e autor, co-autor e/ou organizador de 10 livros.

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