Estado: o gigante que mata e mutila
Bordin Burke *
Associar os milhares de acidentes de trabalho fatais e graves que ocorrem anualmente no Brasil (em média 700 mil) à busca descomedida de ganhos por parte do empregador: eis uma prática bastante recorrente no Brasil, mas que se presta tão somente a apontar um motivo aparente dessa calamidade, e passa muito longe de construir uma solução definitiva.
Em uma sociedade livre, nada mais natural que cada um defenda seus interesses, desde que não sejam agredidos direitos de outrem – no caso, estaria sendo prestigiado o lucro em detrimento do direito coletivo a um meio ambiente laboral saudável. Todavia, será que o Estado brasileiro não estaria tolhendo a iniciativa privada dos meios necessários para a consecução deste comando constitucional (Capítulo II, art. 6o, inciso XXII)? Ou por outra: tratar-se-ia o imbróglio apenas de má vontade e negligência dos empresários descumpridores das normas de segurança e saúde no trabalho?
Uma significativa parcela desses acidentes (além de doenças ocupacionais desencadeadas) ocorre na indústria da transformação. É sabido, todavia, que esta atividade econômica encontra-se em estado de penúria, tendo regredido sua participação no PIB nacional a níveis dos anos 1950. E as razões apontam todas na mesma direção: a sanha arrecadadora do Estado – e sua incapacidade de devolver serviços de qualidade aos pagadores de tributos.
O fisco, quando avança de forma tão voraz sobre a produção no país, apropria-se de rendimentos que seriam reinvestidos nas empresas; O Banco Central do Brasil, quando percebe o potencial inflacionário contido no nível de consumo da economia e decide elevar juros para coibir parte desta demanda, engessa parte dos investimentos da indústria; a deficitária infraestrutura causa diversas perdas no transcurso do processo produtivo, aumentando os custos totais de produção; a falta de qualificação crônica da mão de obra onera a atividade econômica (que frequentemente precisa assumir os custos de capacitar os empregados praticamente do “zero”), reduzindo a eficiência do setor como um todo.
Disso tudo advêm dois resultados básicos: o primeiro, mais evidente, é que a Indústria, descapitalizada em razão da conjuntura econômica predominante há décadas em nosso país, fica sem possibilidade de investir em renovação de seu maquinário, permanecendo o parque fabril brasileiro com equipamentos muito antigos (alguns parecem medievais), os quais não atendem aos requisitos mínimos de segurança operacional – inclusive a prensa mecânica por engate de chaveta, que teria subtraído um dedo de Luiz Inácio.
O segundo, não menos nefasto para os trabalhadores, é que as empresas, no afã de reduzir prejuízos, acabam cortando custos (dentre outras áreas) em segurança e saúde laboral, adiando (Ad Eternum), por exemplo, a adequação de suas máquinas e equipamentos aos ditames da Norma Regulamentadora no 12, medida essencial para redução de probabilidade de acidentes.
Incrementar os níveis de segurança ocupacional, aliás, não seria tão dispendioso se as empresas nacionais pudessem fazer uso, de forma mais frequente, de soluções caseiras, normalmente mais baratas. Todavia, elas esbarram em outra grande deficiência brasileira: a inovação!
Adotar práticas inovadoras em meio a tanta insegurança jurídica já seria uma aventura, mas há outros fatores que emperram essa iniciativa, notadamente a escassez de crédito de longo prazo disponível no mercado para essa finalidade (fazendo com que as empresas precisem usar seus parcos recursos próprios), e, claro, a educação, onde a formação profissional científica, em especial na área de Engenharia, é preterida pela formação em Humanas (eis porque profissionais em Tecnologia da Informação são muito requeridos no mercado nacional). Nem teria como ser diferente, visto que a base em Matemática e Física dos alunos egressos dos níveis fundamental e médio costuma ser muito fraca – talvez não sobre muito tempo para ensino dessas matérias depois de tanto proselitismo político em sala de aula.
Métodos de produção arcaicos (bastante dependentes de utilização de força física do trabalhador), muito presentes ainda no Brasil, além de reduzirem a competitividade das empresas nacionais, colaboram para o surgimento de doenças decorrentes de inconformidades ergonômicas, como lesões de esforço repetitivo (LER) e distúrbios osteo musculares relacionados ao trabalho (DORT).
Já a automação de determinados processos industriais, a seu turno, possui o condão não apenas de aumentar e melhorar a produtividade, mas também de oferecer mais segurança em atividades que envolvam temperaturas extremas, explosivos, fundições, processos químicos e outros geradores de riscos demasiadamente altos para trabalhadores humanos. Entretanto, esta possibilidade também se depara com uma barreira: o número de alunos do ensino médio no Brasil que frequentam ensino técnico gira em torno de 9% (muito pouco comparado aos 54% da Alemanha). Assim, automação, no Brasil, normalmente implica em redução do emprego, pois é muito difícil adaptar os empregados que perderam seus postos de trabalho para atividades mais complexas.
Ressalte-se que há outro fator que incentiva empregadores a exporem empregados a condições inadequadas de segurança: o baixo custo de descumprir as normas. Fiscalizações muito esporádicas (que geram concorrência desleal entre o empregador que foi compelido pelo Estado a cumprir as normas, e aquele que não as cumpre porque nunca foi auditado), multas de baixo valor, alta ocorrência de suspensão de embargos e interdições pela via judicial, baixos valores obtidos no Judiciário a título de indenizações por invalidez ou morte, e não responsabilização criminal por acidentes fatais.
Tudo isso desestimula o empresário a arcar com os severos custos de seguir à risca todas as obrigações legais. É aritmética básica. E assim segue a sina do brasileiro honesto, que se sente “otário” assistindo seu competidor “se dando bem” em cima de sua retidão moral.
Caso o leitor esteja se perguntando por que um trabalhador se submeteria a condições perigosas de labor, a resposta é simples: ele precisa! Como o Estado estrangula a iniciativa privada, ele reduz os postos de trabalho, e assim o empregado, para sustentar sua família, acaba por não ter alternativa melhor. Pelo mesmo motivo, alguns ainda preferem laborar em atividades ainda mais perigosas ou insalubres, posto que perceberão remunerações maiores.
Outra evidência do mesmo fato: até mesmo trabalhadores resgatados de condições degradantes, por vezes, acabam retornando para o mesmo empregador.
Acidentes de trabalho e doenças laborais geram déficit na Previdência Social (pagamento de auxílio-doença e acidentário, aposentadorias por invalidez e pensões por morte), bem como altos gastos para o SUS. Além do prejuízo financeiro para o Estado, esta conjuntura torna muitos (outros) brasileiros dependentes do Estado, uma vez que eles não mais podem valer-se da própria força de trabalho para garantir sua subsistência. Terrível para sua autoestima – para a democracia.
Transformar uma máquina de moer gente em um posto de trabalho relativamente seguro custa dinheiro. Então, se o Estado quer que o empresário promova tais adequações, poderia começar diminuindo a carga tributária escorchante. Quem sabe os sindicatos, que existem para defender o interesse de seus contribuintes (no caso, TODOS os trabalhadores, visto que não há como optar em “contribuir” ou não) poderiam dar um tempo nos protestos de legalidade duvidosa, e encampar uma luta pela reforma e simplificação tributária? A luta continua, companheiros! Ou… a alternativa é continuar enxugando gelo – e empilhando membros e corpos de inocentes.