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Estado de Direito e medidas de enfrentamento à pandemia da covid-19

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A pandemia da covid-19 lançou sobre os governantes a responsabilidade pela adoção de medidas destinadas ao enfrentamento da doença. Ocorre que o tipo de medidas e a forma como são implementadas geram controvérsias entre especialistas e dão margem para críticas por todo o espectro político. Aqui, abordaremos a alegação recorrente de que essas medidas atentariam contra o Estado de Direito.

De acordo com uma acepção mais formal, pode-se dizer que Estado de Direito é aquele no qual as regras jurídicas que regem a vida em sociedade são estabelecidas de acordo com os ritos previstos na Constituição e nas leis. Entretanto, não basta a obediência cega à forma para que se possa reconhecer a existência de um Estado de Direito, pois apenas isso não seria suficiente para proteger os cidadãos da arbitrariedade estatal. Para tanto, exige-se que o conteúdo daquelas regras assegure a plenitude do exercício dos direitos civis, culturais, econômicos, políticos e sociais.

Dessa forma, para a configuração de um Estado de Direito, os poderes dos governantes devem estar conformados por regras jurídicas e essas regras devem conferir aos cidadãos os direitos necessários para o amplo gozo de suas vidas. Com efeito, só é dado ao Poder Público fazer ou deixar de fazer algo nos exatos limites prescritos pelo Direito. Se assim não for, isto é, se os governantes puderem atuar à margem da legalidade ou se, mesmo dentro da legalidade, as regras existentes cercearem injustificadamente as liberdades da população, não há Estado de Direito.

De maneira bem resumida, as exigências que conduzem ao Estado de Direito objetivam coibir abusos dos governantes em relação aos governados. Do contrário, muito provavelmente o amplo exercício daqueles direitos listados acima não seria possível.

Agora, vamos avançar. Quando as regras jurídicas existentes (que também chamaremos de “regras do jogo”) são claras e a população tem amplo conhecimento sobre como as autoridades governamentais atuarão diante de determinados fatos, cada indivíduo pode planejar duas ações de acordo com esse conhecimento. Em outras palavras, a previsibilidade a respeito de (i) quais são as regras do jogo e (ii) de que essas regras efetivamente serão observadas, especialmente pelos agentes públicos, reduz o risco de cometimento de arbitrariedades e permite que os cidadãos organizem as suas vidas, em vez de simplesmente reagirem a mudanças impostas de maneira pouco transparente pelo Poder Público.

Essa constatação leva à percepção de que, em um Estado de Direito, os governantes devem promover de maneira eficaz junto à população o conhecimento acerca da alteração das regras do jogo ou da instituição de novas regras. A extensão dessa responsabilidade é diretamente proporcional à relevância dos direitos alterados, criados ou suprimidos. A partir do momento em que decisões governamentais que impactam a vida de toda a população são tomadas e implementadas em curtíssimo espaço de tempo e com base em critérios que podem não estar claros para aqueles mais afetados, o Estado de Direito não existe em sua plenitude.

Diante disso, pode-se afirmar que, ao lado da legalidade e da proteção das liberdades fundamentais, a previsibilidade das ações governamentais também compõe o cerne do Estado de Direito. Sob essa perspectiva, observa-se que determinadas medidas de enfrentamento à pandemia da Covid-19 tensionam o Estado de Direito, pois a experiência brasileira revela que os cidadãos são surpreendidos pela imposição de certas restrições e, consequentemente, não conseguem se planejar de forma adequada. Não se está aqui questionando a importância ou a eficácia de restrições à circulação de pessoas e ao funcionamento das atividades econômicas para se frear a disseminação do vírus. De maneira completamente diferente, a crítica é dirigida ao alto grau de imprevisibilidade na atuação governamental.

Sempre que os números de contaminados se elevam e uma “nova onda” se aproxima no horizonte, retomam-se os questionamentos: os governos adotarão alguma medida? Que medidas? Por quanto tempo? Que atividades serão consideradas essenciais dessa vez e poderão funcionar, ainda que com algumas limitações? E o transporte público, como fica? Haverá restrição para a compra de produtos? Quais? O que acontecerá com os contratos de emprego e os salários dos empregados que ficarem afastados? E o pagamento dos tributos? Será adiado? Para quando?
E mais: como os parâmetros utilizados pelos governantes para a tomada de decisões muitas vezes são definidos a portas fechadas, sempre fica a dúvida quanto a se algum grupo de pressão econômico ou político obteve privilégios na definição das medidas restritivas, a despeito das melhores recomendações científicas.

Para piorar, quando restrições estão na iminência de serem implementadas, intensificam-se os boatos por meio de aplicativos de mensagens e de redes sociais, com o grave inconveniente da distorção ou completa falsidade das informações circuladas, o que apenas contribui para o clima generalizado de incerteza. Como resultado, além de precisarem instruir corretamente a população acerca das medidas restritivas implementadas, os governantes também precisam atuar contra a desinformação, o que apenas gera mais desgaste junto aos cidadãos.

Após mais de um ano de combate à pandemia da covid-19, ainda causa perplexidade esse alarmante estado de insegurança, sobretudo quando os dados sobre o avanço da doença (novos doentes, taxa de ocupação dos hospitais e óbitos) e a cobertura vacinal são atualizados diariamente, o que permite sem maiores dificuldades antecipar com precisão para a população que, se os indicadores piorarem, determinadas medidas restritivas precisarão ser adotadas.

Todavia, a experiência brasileira com a pandemia revela uma atuação errática dos governos federal, estadual e municipal na gestão do enfrentamento da doença. Essa situação fragiliza o Estado de Direito, pois é simplesmente impossível afirmar com um grau razoável de segurança como o Poder Público se comportará diante de eventuais novas onda de contaminação. Assim sendo, percebe-se que o problema da imprevisibilidade está localizado tanto no conteúdo das medidas restritivas quanto na difusão desse conteúdo entre as pessoas afetadas.

Em conclusão, ainda que se possa admitir que as medidas de combate à pandemia no Brasil tenham a aparência da legalidade (o que é objeto de amplas discussões no âmbito jurídico) e se destinam à proteção da vida, o Estado de Direito também exige a previsibilidade na atuação dos governantes em relação aos governados, uma vez que deve ser conferida a estes a possibilidade de ter conhecimento antecipado sobre as “regras do jogo”. Quando isso não acontece, abre-se margem para toda sorte de arbitrariedades e se torna impraticável para os cidadãos organizarem suas vidas e negócios. Em um cenário como esse, quem ousaria dizer que vive sob um efetivo Estado de Direito?

*Hugo Schneider Côgo é associado do Instituto Líderes do Amanhã. 

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