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Entre a intimidação da PF e a repressão às “desordens informacionais”

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Quais são mesmo as atribuições do Tribunal Superior Eleitoral? Diante das notícias sobre a atuação do TSE em um vastíssimo leque de assuntos, tanto pertinentes à vida pública quanto a alguns círculos privados violados em sua intimidade, imagino que você, caro leitor, assolado pela avalanche diuturna de imagens dos togados dessa corte, enxergue tais magistrados como figuras divinas, investidas pela nossa legislação de plenos poderes para coibir mentirosos vis, e fazer o que for necessário para “colocar ordem na casa”. Trata-se, no entanto, de ídolos de barro, que traem, a todo instante, seu juramento de cumprir as normas em vigor e a nossa Lei Maior, e cuja promiscuidade antirrepublicana com caciques políticos assume tons cada vez mais escrachados, e até burlescos.

Você deve ter acompanhado a recente deliberação do ministro Alexandre de Moraes, determinando, na qualidade de presidente do TSE, que a Polícia Federal (PF) lhe preste esclarecimentos sobre uma operação realizada contra o presidente da Assembleia Legislativa de Alagoas, Marcelo Victor (MDB), aliado do senador Renan Calheiros. A providência de Moraes atendeu a um requerimento de Renan, que acusou a PF de ter atuado com fins políticos, para prejudicar Marcelo na corrida eleitoral deste ano[1].

O caso, de tão estapafúrdio, bem poderia constar de um manual imaginário de práticas avessas aos princípios do Estado de Direito. A primeira questão, presa na garganta de qualquer estudante de um curso jurídico, ou até de um leigo mais atento, diz respeito à identidade de quem acionou o Judiciário: ora, se foi Marcelo quem sofreu os danos, de que prerrogativa dispunha Renan para pleitear, em seu próprio nome, um suposto direito alheio? De nenhuma, pois nossa legislação processual é muito clara no sentido de reservar a via judicial apenas à parte legítima[2], ou seja, ao deputado estadual pretensamente ofendido.

Outra irregularidade reside na escolha do tribunal ao qual foi endereçado o requerimento. A PF, encarregada de apurar crimes contra interesses da União, autarquias e empresas públicas, é órgão permanente que presta contas de suas atividades ao Ministério da Justiça, como previsto em seu próprio regimento interno, aprovado pela Portaria 155/18[3]. Portanto, o eventual abuso de autoridade por membros da PF atuando nessa condição pode configurar delito praticado por funcionários públicos federais, que deve ser submetido à apreciação da Justiça Federal, ou, no caso em questão, a um magistrado federal de Alagoas. Note, caro leitor, que esse não é um palpite pessoal, mas transcrição literal de entendimento definitivo já consolidado pelo STJ[4].

Ainda que o deputado pretensamente injuriado e/ou seu padrinho político no Senado tivessem entendido que a apreciação do tema caberia à justiça eleitoral, por ser relacionado à corrida, ainda assim deveriam ter batido às portas do Tribunal Regional Eleitoral (TRE) de Alagoas, e não do TSE, corte encarregada de recursos, e cujo longo rol de atribuições trazidas no Código Eleitoral não abrange o exame de assuntos como o presente[5]. Porém, vivemos no país de coronéis, onde esse mesmo Renan, há alguns anos, admitia ter “interferido” junto ao STF em prol da soltura do marido da então senadora Gleisi Hoffmann, clamando, na ocasião, por uma “pena de ingratidão” contra a colega[6]. Para poderosos encastelados na elite política, não existe legislação processual, muito menos respeito aos ritos, mas apenas a escolha do seu “togado de estimação”, do qual lançam mão em momentos difíceis como este, em que, em resposta a um pedido manifestamente inadmissível, Moraes saca da caneta para cobrar explicações da PF, agindo como chefe das autoridades policiais ou como instância judiciária competente para reprimir excessos dos agentes, quando não ocupa efetivamente qualquer dessas duas posições.

No entanto, a intimidação à PF, assim como a usurpação de atribuições de outros poderes, continuam sendo passatempos ocasionais para os nossos togados de cúpula, cujo deleite supremo ainda é a censura. Censura a jornalistas, a veículos, a formadores de opinião, a candidatos, censura em todos os seus matizes, em mensagens escritas, verbais, censura a opiniões, a notícias supostamente falsas, e, agora, até a argumentos verdadeiros. No momento em que escrevo, a produtora Brasil Paralelo acaba de ser censurada pelo pleno do TSE, que, por maioria, determinou a remoção do ar de vídeos vinculando o candidato Lula a esquemas de corrupção em seu governo[7] – e, por incrível que pareça, os togados censores reconheceram que o conteúdo vedado não consistia em fake news, mas em “desordem informacional”, a saber, uma reunião de premissas verdadeiras geradoras de uma conclusão falsa.

Bastante intrigada diante dessa figura jurídica inovadora, recém-concebida pelas mentes dos nossos magistrados, incomparáveis a outros togados mundo afora, fui esmiuçar os votos e beber da sabedoria de Moraes, para aprender que “neste segundo turno das eleições de 2022, estão ocorrendo duas modalidades de desinformação: a que manipula premissas reais para se chegar a uma conclusão falsa e o uso de mídias tradicionais para divulgar fake news.”[8] Evitando incidir em repetições sobre as tais notícias falsas, protagonistas de boa parte dos textos neste espaço, fiquemos apenas na primeira parte da frase que, afinal, define a assombrosa novidade de hoje.

Ora, não há argumentos verdadeiros ou falsos, mas válidos ou inválidos, pois a veracidade e a falsidade são atributos dos fatos e não da retórica desenvolvida em torno destes. Assim, logo de pronto se esvanece o discurso do supremo togado, que revela total desconhecimento de conceitos indispensáveis ao exercício do ofício de qualquer operador do Direito. Em seguida, por definição, sabe-se que qualquer argumento só será válido se, e somente se todas as suas premissas (fáticas) forem verdadeiras, e se estas levarem a conclusões necessariamente verdadeiras. Segundo um material didático produzido pela Unicamp sobre definições básicas de lógica, “a ideia intuitiva capturada por esta definição é a seguinte: se for possível que a conclusão de um argumento seja falsa, quando todas as suas premissas são verdadeiras, então o argumento não é confiável (isto é, ele é inválido). Se premissas verdadeiras garantem uma conclusão verdadeira, então o argumento é válido[9]”.

Portanto, o que Moraes e seus colegas censores fizeram foi criar uma Quimera, monstro mitológico híbrido com corpo de leão e três cabeças, cujas chamas lançadas pelo nariz são uma boa metáfora dos ímpetos destrutivos que têm invadido o país por todos os lados. A nova criação alexandrina também poderia ser comparada ao Bebê de Rosemary, concebido durante um ritual macabro, e que, depois de vir ao mundo, se remexe inquieto ao som dos risos e comentários jubilosos de adoradores de uma certa seita. Resta saber até quando ficaremos ali, frágeis e anêmicos ao pé de tantas aberrações, embalando o berço tingido de negro e conformados com a monstruosidade sob os nossos olhos.

[1] https://www.cnnbrasil.com.br/politica/moraes-determina-que-pf-esclareca-operacao-contra-presidente-da-assembleia-de-al/

[2] Art. 18 do NCPC. Ninguém poderá pleitear direito alheio em nome próprio, salvo quando autorizado pelo ordenamento jurídico.

[3] https://www.gov.br/pf/pt-br/acesso-a-informacao/institucional/regimento-interno-da-policia-federal-2018

[4] https://www.conjur.com.br/2019-jul-31/justica-federal-julgar-crime-praticado-funcionario-federal

[5] Artigo 22 da Lei 4737/65.

[6] https://www.youtube.com/watch?v=o4WkGDlQuz8&t=1s

[7] https://oantagonista.uol.com.br/brasil/tse-ordena-que-brasil-paralelo-retire-do-ar-videos-com-criticas-a-lula/

[8] https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2022/Outubro/tse-determina-retirada-de-propagandas-ofensivas-a-bolsonaro-e-a-lula

[9] https://www.unicamp.br/~joaojose/cartilhalogica.pdf

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Judiciário em Foco

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Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.

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