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Entendendo a censura em 451 Fahrenheits (Parte II)

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Guy Montag é atormentado por avaliações simples sobre o gosto da vida, sobre o prazer de conversar e ter uma amiga. Clarisse McClellan é quem tira o personagem desse mundo da felicidade, do prazer. As conversas de Clarisse não são apenas sobre modos de “ser feliz” em casa, vendo programas nas paredes, ou nas pílulas que todos tomam para ajudar a dormir, se acalmar, ficar bem. O mecanicismo biológico dessa felicidade não existe para Clarisse e sua família.

“Coisas pequenas”, como apreciar a chuva, uma boa conversa, falar sobre a vida, questionar certas coisas, fazer perguntas sobre coisas inúteis… Isso, com o passar dos meses, anima Montag. De fato, o personagem se vê mudado, transfigurado em sua alma por uma simples garota de 17 anos. Montag, enfim, tem uma amiga.

Uma amiga poderosa – com o poder da simplicidade. “Você é feliz”? É a primeira pergunta que atormenta Montag. A reação de Montag, claro, é a autopromoção, a tentativa de evidenciar sua felicidade: tem um emprego agradável, que não exige muito (chamados para queimar livros são raros, uma vez que poucas pessoas os possuem no tempo de Montag), uma família de apenas duas pessoas, cuja mulher não é uma diaba… então ele chega em casa, com a esposa quase morta por intoxicação. As pílulas que a ajudaram a encontrar a felicidade, aliviar as mazelas da vida… quase levaram-na à morte.

Montag fica desesperado, liga para o hospital e este manda técnicos que utilizam uma máquina para sugar o veneno do estômago de sua esposa. A atitude dos técnicos é de profunda apatia e normalidade: o que desconcerta, mais ainda, a mente do protagonista.

O mundo, agora, tem algo faltando, uma fratura exposta em seu próprio modo de ser, como se algo estivesse, e desde sempre, errado e só agora isso se abatesse em seu ser. Uma soma de fatores o leva a perceber essa carência, esse erro.

O cume de seu desalinhamento com o mundo foi em uma chamada. Uma rara chamada o leva para uma casa, onde a idosa que terá sua biblioteca queimada prefere, sem mostrar nenhum remorso, ser queimada viva com os livros. Montag fica horrorizado, chocado com tudo ao seu redor: a apatia de sua esposa, de seus colegas, de seu chefe, da velha que morre queimada… ele percebe que vive em um mundo onde as coisas simples, o conhecimento, foram obliterados da sociedade.

Os livros eram a chave. A desventura do protagonista, no decorrer do livro, se dá por um motivo: a busca pela felicidade, o direito da felicidade, que solaparia tudo o que representasse a menor contravenção a essa felicidade, a esse direito máximo e indiscutível. Quem seria louco de discutir coisas sem utilidade e criar mundos inexistentes, capazes de infringir esse direito tão quisto? Apropriados para criar tensões na sociedade, questionar certas condutas que, por fim, poriam em cheque o modo de vida, a cosmovisão e as noções de certo e errado, esbarrando em grupos minoritários, barrando o direito de felicidade de tais grupos? A sociedade se livrou dos livros, do conhecimento, do saber. Tudo em nome de seu bem-estar, do direito de não ser perturbado ou de se sentir mal por uma contravenção poderosa.

Esses direitos de minorias, como explicado na primeira parte, se estenderam para todos. O que ocorreu na sociedade de Montag foi uma guerra aos porquês e uma elevação dos comos: não se importavam mais com as verdades últimas, os segredos e mistérios do mundo, da sociedade; aboliu-se o que Aristóteles – em sua monumental Metafísica – postulou como busca pelo saber, pelos princípios.

A busca pelos princípios, por definição, é uma busca inútil, trabalhosa, sujeita a contravenções e a causar discórdia. Pode-se abalar estruturas buscando a realidade: e a realidade mais machuca do que afaga. Não se pode fugir dela, não sem consequências, sem se transformar, enfim, em uma deformidade que vai contra o que a busca cega pela felicidade causa; no mundo de Montag, os indivíduos se veem como deuses, onde qualquer aflição deve ser apagada, pois, afinal, a felicidade é o que importa, a única coisa que realmente influi em toda a constituição humana. E o que ocorre quando se joga a Verdade e sua luz potente no rosto de um homem que se acha Deus? Ele sente raiva, ele sente tristeza e, querendo ou não, exterioriza isso. A felicidade, enfim, se torna tirânica.

A tirania da felicidade, em um primeiro momento, é interna. Não se exterioriza esse sofrimento, a angústia, o vazio amargo de viver só pelos prazeres. Antes de tudo, o indivíduo se machuca em nome de sua própria vontade, de seu direito de fazer o que quer e, com isso, ser feliz. Mas ao serem peitados, ao, finalmente, verem a mínima fresta de luz, explodem em uma onda de acusações: pois tiveram seus direitos negados, pois, finalmente, foram apresentados à mais nua, cruel e necessária realidade de suas vidas.

“- Palavras tolas, palavras tolas, terríveis palavras tolas e danosas – disse a sra. A Bowles. – Por que as pessoas querem magoar as outras? Já não basta o sofrimento existente e o senhor vem provocar as pessoas com coisas como essa!

– Clara, Vamos, Clara – implorou Miltred, puxando-lhe o braço. – Venha, vamos nos alegrar, você agora liga a ‘família’. Vá em frente. Agora vamos rir e nos divertir, pare de chorar, vamos fazer uma festa!

– Não – disse a sra. Bowles. – Vou direto para casa. Se você quiser visitar minha casa e minha família, tudo bem. Mas nunca mais na vida entrarei na casa maluca deste bombeiro!

– Vá para casa. – Montag fixou os olhos nela, calmo. – Vá para casa e pense no seu primeiro marido, de quem se divorciou, e no seu segundo marido, prestes a estourar os miolos. Vá para casa e pense nos dez abortos que você fez, vá pra casa e pense nisso e, também, nas suas malditas cesarianas e nos filhos que sentem ódio mortal de você! Vá para casa e pense como tudo isso aconteceu e no que você fez para pôr um fim nisso. Vá para casa, vá para casa! – gritou ele – Antes que eu lhe bata e a expulse daqui a pontapés!”.

Não é Montag o vilão, o malvado, aqui. É a senhora Bowles, esta que matou dez filhos em seu ventre, que deixa os filhos com o Estado, ignorando-os, esta que não dá a mínima para seu segundo marido que está prestes a se suicidar… em nome da felicidade, ela não quer enfrentar a realidade, mesmo padecendo dela. Montag apenas lançou uma breve luz, e a pobre mulher se destruiu com esta luz. Ela não pode admitir que está errada… caso contrário… seus direitos serão problematizados.

A mesma luz impacta o próprio protagonista. Ele já não consegue ver os absurdos à sua volta, não sem correr o risco de ler livros em público, de ler poesia (o que causou o choro de Clara e o descontentamento da sra. Bowles) para estranhos, de ser grosso com as amigas de sua esposa… a Verdade dói, a Verdade provoca explosões, mas a Verdade é necessária.

A grande lição de Fahrenheit 451 é que não importa qual direito seja, não importa sua felicidade, ou a felicidade de outrem: a Verdade, a busca pelo verdadeiro, a consciência do real, está acima de todos os outros direitos. A apatia causada pelo fetiche para com a felicidade é apenas um sintoma do absolutismo de um absurdo, de um pensamento que faz tudo orbitar ao redor de uma única coisa simples, volátil e subjetiva.

É esse fetiche que move a sociedade para o boicote e a censura é o que coloca o consumidor, o crítico, a querer meter as mãos na obra do autor. Bradbury assim comenta, em uma nota no final do livro, que uma crítica feminista não achou bom o fato de faltarem mulheres fortes (malgrado Clarisse esteja presente na obra), um negro reclamando da falta de personagens afrodescendentes e, por fim, universidades (!) tentando “adaptar a obra para um olhar mais contemporâneo…”.

Ray Bradbury não tem palavras doces: classifica tudo isso como a mais clara e potente censura. Quando organizações militantes e minorias (justamente, em sua distopia, aquelas que iniciaram todo o problema) pretendem moldar a obra de outro conforme seus fetiches, suas vontades, tendo como justificativa a clara ambição de querer se ver bem representados; de colocarem seus ímpetos militantes, seus direitos de se sentirem bem nas representações… quando querem fazer um autor parar de escrever o que escreve para agradar o grupo A, B e C… quando põem travas no que alguém pode, ou não, escrever.

Não tem negros no livro? RACISTA! Não tem negros “fortes”? Igualmente racista! Não tem mulheres, ou mulheres fortes? MACHISTA!
Essas críticas medonhas e descabidas não pretendem outra coisa que decidir o que você, como autor, deve ou não por em sua obra. Por isso é comum ver (a MARVEL COMICS pode ser uma das principais provas disso, atualmente) transformarem personagens de forma drástica e sem sentido, tudo em nome da representatividade de grupos insatisfeitos.

Manipular o que um escritor pode, ou não escrever, tem nome: censura.

Os movimentos que militam por representatividade são, nada mais, nada menos, que censores. Censores potencialmente mais perigosos do que aqueles que representam e atuam em prol de ditaduras…. censores modernos, “do bem”, em nome da felicidade… censores da democracia.

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Hiago Rebello

Hiago Rebello

Graduado e Mestrando em História pela Universidade Federal Fluminense.

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