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Educação política e abuso de poder

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Os fatos recentes no país evidenciam o quanto estamos distantes de uma cultura política que valorize as liberdades fundamentais. É desconcertante assistir ao ativismo judicial que resulta no desrespeito do devido processo legal e na adoção de condutas parciais. Todos são aspectos que ferem os valores e os procedimentos do Estado Democrático de Direito, que, ao longo dos séculos, amalgamou influências vindas do liberalismo e da democracia, consolidadas na divisão dos três poderes, nas garantias constitucionais de direitos e em mecanismos de proteção da liberdade individual de agir e de pensar.

Esse legado institucional conquistado a duras penas parece dar sinais de mau funcionamento e está apresentando curtos-circuitos de um modo preocupante para os cidadãos. Comprometeu-se justamente a premissa liberal de que o exercício do poder precisa ter limites e deve ser contido devido ao seu potencial de opressão. É com angústia que assistimos ao comprometimento dos mecanismos que, de algum modo, contiveram os excessos das ambições e dos ódios políticos que permearam a história política recente do país desde a redemocratização.

Assistimos à atuação de legendas políticas avessas aos valores democráticos e liberais, que atuam no sentido de eliminar o ethos da pluralidade. Elas se opõem, portanto, à política de representação de grupos de interesses, que deveria ser a pedra de toque de qualquer sociedade tributária dos valores da modernidade. O perigo ronda, por vezes, tanto a esquerda quanto a direita, atestando o quanto a cultura brasileira ainda não desenvolveu os valores da democracia representativa.

E, de fato, como se poderia agir de outro modo? Na visão de Raymondo Faoro, para quem o liberalismo político foi raro na tradição política luso-brasileira, que não enfatizava os direitos naturais, não há como fugir dos resquícios do estatismo e da ortodoxia católica, favoráveis a uma superposição do Estado sobre a sociedade e a uma concepção monológica da vida social. O Estado tem sido sempre o protagonista, dizendo o que os cidadãos devem pensar e fazer, portador de uma única visão de mundo, seja a que legitima uma determinada ordem tecnocrática, um modelo econômico igualitário ou uma comunidade de crentes.

Sempre estivemos às voltas com esse Estado abusivo e suas vanguardas esclarecidas ditando os rumos das transformações sociais. As iniciativas de modernização na esfera econômica e social foram obra do Estado, tais como as reformas modernizantes de Getúlio Vargas, e foi esse D.N.A político que nos trouxe até aqui, clamando-se sempre pelo chefe do Executivo considerado como um salvador da pátria, imaculado, angélico, pairando acima das disputas e diferenças que fraturam uma sociedade civil que se recusa a pensar e agir por conta própria. O sebastianismo lusitano está mais vivo do que nunca entre nós, tanto faz o nível social ou de instrução da pessoa. O líder é aquele em que se confia cega e plenamente, cuja tarefa é nos levar à terra prometida das virtudes de uma comunidade crística ou da apologia dos direitos das minorias, pouco importa.

Esse sentimento político de amor e de ódio define o fundo obscuro e inconfesso da nacionalidade, como dizia Sérgio Buarque de Holanda sobre o brasileiro cordial, e afeta profundamente nosso comportamento político. Embora a política nunca possa perder completamente a dimensão mítica que opõe os justos aos injustos, o bem e o mal, em nós, esse aspecto nos leva a andar em círculos, a não curar jamais as feridas, a não enterrar os nossos mortos. Estamos ainda cristalizados em meados do século XX, divididos entre a convicção passional no valor da tradição ou na utopia distópica, igualitária…

Nesse contexto, falar de uma educação política para o respeito das liberdades implica repensar essas raízes, esse percurso problemático, fazendo uma retomada consciente do que foi válido nesse caminho, pois estamos ao ponto de ter perdas definitivas, de um recuo de grandes proporções, ou, na melhor das hipóteses, de décadas de estagnação estéril e malsã.

Não sabemos se será possível, mais à frente, fazer esse movimento de inflexão, destacando a importância dos valores de liberdade, para que a maioria possa, um dia, vibrar de indignação em face da destruição das instituições da democracia. O que me parece claro é que, se o desrespeito das liberdades e do equilíbrio dos três poderes está acontecendo, diante dos aplausos e da indiferença de tantos, é porque os valores do Estado Democrático de Direito são epidérmicos e irrelevantes para as pessoas, que exultam em ver grupos ideológicos do seu desagrado sendo perseguidos e presos. Ou seja, não existiu uma educação política que fomentasse a internalização desses valores, assim como os dos princípios do autogoverno, segundo o qual se desconfia de líderes populistas, salvadores da Pátria.

Muito pelo contrário, o que o sistema educacional tem feito nas últimas décadas é despejar doutrinas unívocas baseadas no variado espectro da esquerda, corrompendo a formação da inteligência e do senso crítico, impedindo uma genuína educação para a democracia e a ciência, que exige o espírito de liberdade de levantar hipóteses e de testar teorias, confrontando-se com o horizonte problemático da experiência. Ao invés disso, o que tivemos foi a defesa autoritária de uma visão de mundo compromissada com um credo “libertário”, intolerante, que sacrifica a liberdade de pensamento na pira convulsiva da formação de militantes em busca de uma revolução, com a imposição de uma interpretação pronta sobre a história e a sociedade, sob a ameaça implícita de fracasso escolar e profissional em caso de divergência intelectual…

Por outro lado, a alternativa a esse modelo de formação tem sido frequentemente uma atitude reacionária de oposição à modernidade e à sociedade urbano-industrial que se estabeleceu no Brasil a partir de meados do século XX. Difundem-se propostas de ensino que professam a retomada de modelos curriculares clássicos, tais como o Trivium, o Quadrivium e o Ratio Studiorum, utilizados na Idade Média e no início dos tempos modernos, que não são capazes de preparar as crianças e os jovens para os desafios do mundo do trabalho, marcado pela onipresença das tecnologias da informação e comunicação. No afã de retomar o papel formativo relevante da tradição familiar e comunitária que tem sido descartada em favor do aporte exclusivo da pedagogia e da psicologia, recusam-se a considerar as demandas da sociedade contemporânea em relação à preparação profissional e do cidadão…

Pois bem, tanto o modelo educativo da esquerda quanto o “tradicionalista” de direita, digamos assim, são adversos à formação de cidadãos zelosos do Estado democrático de direito. Não importa conter o arbítrio que se manifesta na violação das garantias constitucionais dos direitos, importa que triunfe um modelo monofônico de sociedade civil, no qual o Estado – os Donos do Poder – possam ditar o que pode ser pensado e feito…

É por isso que uma mudança significativa dessa cultura política implica necessariamente uma educação a ser feita em novos moldes, a partir da didatização das doutrinas liberais em variado espectro, começando pela formação de quadros intelectuais qualificados, multiplicadores, no Ensino Médio, graduação, latu sensustricto sensu.

Tal didatização da doutrina liberal deveria basear-se nos procedimentos metodológicos do pensamento científico, tal como descreve Karl Popper, por meio de conjecturas e refutações, visando à garantia de uma genuína liberdade de pensamento, e ao respeito à crítica, considerada como um componente indispensável da sociedade aberta, democrática, e ao próprio desenvolvimento da ciência. Nessa perspectiva, poderia ser desenvolvido um campo fértil de ensino, pesquisa e extensão em diferentes áreas disciplinares, tais como a Pedagogia, a História, a Sociologia, o Jornalismo, em diálogo corajoso e consistente, do ponto de vista teórico, com as várias vertentes do pensamento emancipatório e libertário.

É um terreno fértil que não dará frutos imediatos, mas que é indispensável, a longo prazo, para a construção de uma sociedade democrática, que necessita de pluralidade de ideias, sob a égide da liberdade de expressão. É preciso criar uma paisagem intelectual na qual seja possível o acatamento de uma das regras da Ética do Discurso, no dizer de Jurgen Habermas, o respeito ao interlocutor que pensa diferente, coibindo-se as restrições autoritárias do politicamente correto e do engajamento anticomunista…

*Suzana Marly da Costa Magalhães é Pós-Doutora pela Fundação Getúlio Vargas na área de História, política e bens culturais. Doutora em Letras pela Université de Paris III (Sorbonne Nouvelle). Mestre em Educação pela Universidade Federal do Ceará. Tem especialização Latu sensu em Gestão de Ensino à Distância pela Universidade Federal Fluminense, graduação em Pedagogia pela Universidade Federal do Ceará e em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. É responsável pelo canal do YouTube e pela página do Facebook intitulados Esquerda e direita na educação: https://www.facebook.com/Esquerda-e-direita-na-Educa%C3%A7%C3%A3o-101054629112755/?ref=pages_you_manage

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