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A bacanal fiscal

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Estaria certo Ariano Suassuna quando afirmava que o otimista é um tolo, o pessimista é um chato, e que o bom mesmo é ser um realista esperançoso? Ou, talvez, quem tinha razão era Roberto Campos que, sempre que se referia às expectativas para a economia do nosso país, gostava de definir os pessimistas simplesmente como otimistas bem-informados? Deixo a resposta ao juízo de cada leitor, mas isso não me impede de contrariar parcialmente o escritor paraibano e afirmar que neste Brasil tão esquisito de hoje é literalmente impossível combinar realismo com esperança, porque o primeiro contradiz a segunda, e vice-versa. Manifesto então, no curto prazo, minha preferência pela definição — finamente irônica, como era de seu feitio — do saudoso economista mato-grossense.

Basta juntar meio copo de conhecimentos de economia rudimentar, uma colher de sopa de informações corretas, acrescentar duas gemas de realismo e uma pequena porção de farinha de bom senso, mexer um pouco, levar ao forno e esperar alguns minutos: o resultado será um prato fatal, um veneno fulminante para qualquer esperança. O governo está promovendo simplesmente uma obscena bacanal fiscal que já está destruindo a economia, exatamente como avisei aqui em Oeste, em artigo publicado no dia seguinte ao segundo turno das eleições de 2022 (“Retomando o caminho para a miséria”, Edição 136, de 31 de outubro de 2022). E, o que é pior, com a anuência e a complacência dos outros dois Poderes.

Qualquer pessoa de posse dos ingredientes descritos e desprovida de vocação para ser uma toupeira era plenamente capaz de enxergar o caminho que o país iria voltar a percorrer a partir de janeiro deste ano. Inclusive certos economistas tucanos, liberais de fachada, vaidosos, sempre bajulados pela imprensa e amarrados por esse ou aquele motivo à agenda globalista da “nova ordem” e do protocolo ESG, que “fizeram o L” e agora se esforçam tragicomicamente para simular surpresa diante das trapalhadas permanentes do governo. Surpresa simulada, espanto hipócrita, perplexidade cínica, pois o seu apoio foi movido por inveja, vaidade, interesse ou por tudo isso, mas sabiam muito bem o retrocesso que a vitória da chapa que apoiaram acarretaria para o país.

É uma ingenuidade indescritível esperar que governos adeptos de um socialismo grosseiro como o nosso sejam dotados de responsabilidade fiscal. Eis alguns motivos para a verdadeira tara que essa gente manifesta para gastar o dinheiro dos pagadores de impostos: gastos públicos em obras de fachada e distribuição de migalhas para os pobres costumam render votos; necessidade permanente de alimentar interesses políticos e financeiros de grupos afeitos a sugar o Estado, como sindicatos, empresários que detestam correr riscos, ONGs e “entidades”; são radicalmente contra privatizações e defensores ardorosos do aparelhamento político das empresas estatais; são, por definição, populistas. Ora, tudo isso custa dinheiro. O nosso, claro.

O que chama a atenção não é propriamente o processo de arrasamento econômico em curso, mas a velocidade com que está transcorrendo. Em dez meses, o ministro da economia Fernando Haddad e sua equipe — que, diferentemente de Paulo Guedes, que tinha conhecimento e autonomia, nada mais são do que “paus-mandados” do presidente e dos políticos que o cercam — já demonstraram sobejamente sua inclinação incrível para fazer tudo errado, o que se explica pela concepção econômica em que acreditam — e que a velha imprensa teima em chamar de “progressista” —, que até hoje, onde quando posta em prática, só produziu desemprego, pobreza generalizada, endividamento público crescente, fuga de capitais, atraso, corrupção e inflação.

Esta última — velha conhecida — só não deu ainda as caras porque, felizmente para nós (e infelizmente para o governo), temos um Banco Central autônomo e com a maioria de sua diretoria, pelo menos por enquanto, composta de gente competente. Mas é inequívoco que todos os outros sintomas já estão aí, gritantes e visíveis a olho nu. Porém, a continuar a verdadeira baderna em que transformaram a política econômica, com reflexos muito negativos para as contas públicas e para o endividamento do governo, não levará muito tempo para que a independência do Banco Central deixe de ser suficiente para impedir a situação que os economistas chamam de dominância fiscal, em que as necessidades de financiamento do setor público (ou déficit nominal, que inclui os juros da dívida pública) “dominam” a política monetária, impedindo-a de controlar a inflação e a própria dívida, gerando uma bola de neve, que ganha corpo com a formação de expectativas pessimistas.

Basta dar uma olhadela para os chamados fundamentos macroeconômicos, especialmente para a política fiscal que vem sendo posta em prática e, principalmente, no o regime fiscal que se prenuncia para o futuro, para descartar a hipótese do realismo esperançoso. Para início de conversa, bons economistas sabem que as análises dessas contas não devem basear-se apenas no conceito primário de déficit ou superávit, que não inclui os pagamentos de juros que o governo deve realizar pelos empréstimos que tomou junto ao setor privado, e sim à definição nominal, também chamada de necessidades de financiamento do setor público, que incorpora essas despesas. Afinal, o governo, exatamente como um indivíduo ou empresa, vai ter que pagar pelos empréstimos que tomou e, dada sua fragilidade fiscal crescente, pelos que vai necessariamente continuar tomando, ou não?

Depois de tantas décadas, de incontáveis experiências de más políticas econômicas, de frequentes crises, de seguidos surtos inflacionários, de repetidas quebradeiras e de reiterados ciclos econômicos, verificados no Brasil e em muitos países, já deveria ser mais do que tempo de terem aprendido. É triste e lamentável ainda existir necessidade de enfatizar a importância que o equilíbrio das contas públicas — a responsabilidade fiscal — desempenha em todo e qualquer governo. O ministro Haddad, que trata a ciência econômica de Vossa Excelência, tenta aparentar no discurso que reconhece isso, mas na prática parece sofrer de incontinência tributária e premência perdulária.

O presidente do país, por sua vez, acha a austeridade fiscal uma bobagem. Há alguns dias, bateu cabeça com o seu ministro e protagonizou um espetáculo inacreditável de ignorância, já nem vou dizer de economia, mas de aritmética elementar, ao desdizer o poste que fincou na Fazenda e afirmar, com aquele ar de palanque, permanentemente arrogante e dissimuladamente espumante, que o governo não deverá conseguir cumprir a meta de zerar o déficit primário das contas públicas em 2024. O mercado, imediatamente, como não poderia deixar de acontecer, refez para cima a projeção do rombo fiscal para 2024.

O governo já admitiu neste ano 685 mil funcionários públicos, quase o total de novos empregos criados.

Foi uma sucessão inacreditável de disparates econômicos, repletos de demagogia e do habitual desrespeito à gramática, tais como: “Dinheiro bom é dinheiro transformado em obra”; “Haddad, além de ser nosso libertador de dinheiro, o cara que põe o dinheiro na mão dos ministérios, [ele] tem uma coisa muito importante, que é o seguinte: a gente não pode deixar sobrar dinheiro que está previsto ser investido nos ministérios”; “Para quem está na Fazenda, dinheiro bom é dinheiro no Tesouro, mas para quem está na Presidência, dinheiro bom é dinheiro transformado em obras, é dinheiro transformado em estradas, em escola [de primeiro, segundo e terceiro grau], é [em] saúde. Ou seja, se o dinheiro estiver circulando e gerando emprego, é tudo que um político quer e o que um presidente deseja”; “Ministros devem ser os melhores gastadores de dinheiro em obras de interesse do povo brasileiro”; “Eu não vou estabelecer uma meta fiscal que me obrigue a começar o ano fazendo corte de bilhões nas obras que são prioritárias para esse país”. Como dizem no Nordeste, arriégua! A que prioridades e a que país ele se refere?

Mas isso não foi tudo, porque ainda emendou: “Eu sei da disposição do Haddad, sei da vontade do Haddad, sei da minha disposição. Quero dizer para vocês que nós dificilmente chegaremos à meta zero, até porque não quero fazer cortes em investimentos de obras. Se o Brasil tiver um déficit de 0,5%, o que é? De 0,25%, o que é? Nada”. Sem dúvida, uma afirmativa ofensiva à moral e aos bons costumes econômicos. Nada? Como assim? Que falta total de responsabilidade e de compromisso com o país que governa, com os recursos dos impostos que o seu governo extrai crescentemente do povo e das empresas e, por fim, com o juramento que fez de agir buscando o melhor para o povo, e não para os projetos de poder dele e do seu partido!

A verdade é que as necessidades de financiamento do setor público ultrapassam em muito os 0,25% ou 0,5% do PIB, que é o intervalo previsto para o déficit primário. Antes das declarações descabidas do presidente, elas estavam antecipadas para algo em torno de 6,5% do PIB; e a dívida pública, para perto de 75% do PIB. Segundo o Fundo Monetário Internacional, a relação dívida/PIB deverá atingir 88% até o final deste ano e poderá ultrapassar os 90% em 2024.

Outro problema que apontamos há um ano é que governos com a carranca do PT têm aversão ao capital externo. Pois bem, segundo relatório publicado no último dia 3 pelo Banco Central, os investimentos estrangeiros no Brasil já caíram neste ano para impressionantes 60% do montante registrado no mesmo período do ano passado. No acumulado de janeiro a setembro de 2023, o país recebeu US$ 41,6 bilhões, já descontadas as saídas de capitais, ante US$ 68,8 bilhões no mesmo período de 2022, e o investimento estrangeiro direto como proporção do PIB vem caindo desde o início do ano: no final de 2022, a relação correspondia a 4,5% e, em setembro deste, ano caiu para 2,9%.

Quanto ao emprego, a imprensa militante publicou recentemente, com o estardalhaço e a parcialidade habituais, que o desemprego caiu a 7,7% em setembro, com recorde de trabalhadores ocupados no país, segundo o IBGE, cujo presidente, aliás, é conhecido por sua habilidade para criar estatísticas cabalísticas. Um tanto estranho, porque no mesmo mês a arrecadação caiu pela quarta vez consecutiva, o número de processos de recuperações judiciais aumentou 52%, com mais de 500 empresas, segundo a Serasa, solicitando esse recurso, e várias grandes empresas vêm promovendo demissões e algumas até fechando, depois de terem ajudado o governo a vencer a eleição. A explicação é simples: o governo já admitiu neste ano 685 mil funcionários públicos, quase o total de novos empregos criados.

Não há dúvida de que a bacanal fiscal e o extorsionário tributário são fatos consumados e só tendem a aumentar. É, mais uma vez, o adiamento da esperança. Mas não deixa de ser uma boa notícia o fato de que neste artigo só me referi à orgia do Executivo, porque, se houvesse incluído as esbórnias orçamentárias do Legislativo e do Judiciário, também crescentes, poderia certamente copiar Dante quando descreveu a porta do inferno: “Deixai toda esperança, vós que entrais”. É triste constatar como o golpe republicano comemorado vem, há 134 anos, assassinando esperanças frequentemente.

*Artigo publicado originalmente na Revista Oeste em novembro de 2023. 

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Ubiratan Jorge Iorio

Ubiratan Jorge Iorio

É economista, professor e escritor.

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