Dom Quixote de La Mancha e o liberalismo telúrico
O mundo das letras hispânicas comemorou em 2005 os quatrocentos anos da primeira edição de Dom Quixote de la Mancha. Comemorou, nesse mesmo ano, os quatrocentos anos da morte de Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616), autor da clássica obra.
Dom Quixote é um marco sinalizador dos valores fundantes da alma ibérica. Pretendo fazer, neste ensaio, uma aproximação à imortal novela, do ponto de vista do que ela é para um leitor hispano-americano que assumiu a cultura brasileira e que escreve em português, e mostrar por que Dom Quixote fala ao homem brasileiro contemporâneo, em que pese o clima de mediocridade reinante, ao ensejo do populismo desvairado e iletrado que tomou conta do país. Não são poucos os que, por desconhecimento ou incúria, ignoram a mensagem cervantina. Começarei por este último ponto.
Decidi-me a fazer este balanço da grande obra movido por um fato que me impactou muito, no início de 2005. Em curso de especialização na área da psicologia educacional, dado para professores e outros profissionais na cidade de Juiz de Fora, mencionei, numa das minhas aulas, a figura de Dom Quixote como modelo da que Max Weber (1864-1920) denominou de “ética da convicção” [Weber, 2005: 25], justamente porque o Cavaleiro da Triste Figura vivenciou até as últimas consequências o ideal de agir movido pelas próprias convicções, custasse o que custasse e sem enxergar os efeitos dos atos praticados. Dom Quixote, dizia eu, sedimentou na cultura ibérica o ideal de comportamento cavalheiresco, que age em função da honra e dos ideais de justiça, mesmo que no cumprimento da sua missão apareça como deslocado no tempo e seja avaliado pelos seus concidadãos como louco varrido.
Qual foi a minha surpresa quando, ao findar as aulas, uma professora, aluna do mencionado curso, apareceu com um belíssimo presente: a edição completa de O Engenhoso Fidalgo Dom Quichote de la Mancha (com a grafia francesa, que denota a antiguidade da publicação, sem data), impressa na Oficina das Artes Gráficas no Porto para a Editora Lello & Irmão, a partir da tradução realizada pelos viscondes De Castilho e De Azevedo, com os desenhos a bico de pena do pintor francês Gustavo Doré (1832-1883), gravados por Héliodore Pisan (1822-1890). Os dois volumes, belamente encadernados, em papel de luxo e com dimensões de 37,5 X 29,5 centímetros, fariam as delícias de qualquer livreiro de antiquário, não fosse o estado deplorável em que se encontravam: as capas, parcialmente destruídas pelo fogo e a quase totalidade das páginas coladas, devido à providencial água que foi jogada sobre elas, para apagar as chamas, que teriam, certamente, consumido a bela obra. A história que me contou a professora foi verdadeiramente estarrecedora: a diretora do colégio estadual, onde ela lecionava, decidiu fazer uma faxina na biblioteca, condenando à fogueira os livros inúteis, entre os quais a imortal obra de Cervantes. Como eu tinha falado de Dom Quixote nas aulas, a minha aluna decidiu salvar os livros da total destruição e solicitou à funcionária da biblioteca que lhe desse os volumes, tendo a diretora aquiescido, com as seguintes palavras: “pode levar, não têm serventia, iam ser queimados mesmo!”
“Não têm serventia, iam ser queimados mesmo!” A frase ficou martelando na minha cabeça, enquanto eu colocava os volumes ao sol, no meu escritório, para secar a umidade que tinha colado as páginas e que ameaçava desfigurar os belíssimos quadros de Doré. Durante dois meses cuidei deles, antes de mandar encaderná-los novamente. Hoje, repousam na prateleira de honra da minha biblioteca. Enquanto sarava as feridas causadas nos livros pela incúria e a ignorância dessa diretora de colégio e agradecia à minha aluna pela ação salvadora, pensava: a Inquisição ainda continua a queimar a nossa memória cultural! Decidi-me, portanto, a não deixar passarem em brancas nuvens os quatrocentos anos de Dom Quixote, escrevendo estas linhas que distribuí entre os meus alunos.
Dividirei a minha exposição em quatro itens: I – A Morada Vital de Cervantes: a Espanha de início do século XVII. II – Dom Quixote, herói libertário. III – A Espanha cervantina, Realidade que se converte em Mito. IV – Dom Quixote, modelo de herói moderno.
I – A morada vital de Cervantes: a Espanha de início do século XVII
Ortega y Gasset (1883-1955) afirmou: “Yo soy yo y mi circunstancia, y si no la salvo a ella no me salvo yo” [Ortega, 2005: 25]. Tentar compreender as circunstâncias da obra cervantina equivale a entender a personalidade de Cervantes, no que tange à sua inserção no mundo. Ora, a principal circunstância com que se deparou o autor foi a Espanha do século XVII. Centremos a atenção, inicialmente, em alguns fatos da vida de Cervantes que, entrelaçados à história do período, deixaram a marca da circunstância espanhola nos seus escritos.
1) A circunstância familiar
O nosso autor nasceu em 29 de setembro de 1547, em Alcalá de Henares, filho de Rodrigo Cervantes, modesto cirurgião, e de Leonor Cortinas. Tratava-se de uma família de origem fidalga que entrou em depressão econômica. Miguel foi o quarto de sete filhos. Em 1551, Rodrigo de Cervantes fixou residência em Valladolid, tentando melhorar a sorte econômica da família, sem que, contudo, tivesse sucesso, pois, por causa de dívidas não pagas, foi posto na cadeia durante vários meses, tendo-lhe sido confiscados os bens. Ao que tudo indica, o jovem Miguel cursou os seus primeiros estudos no Colégio dos Jesuítas de Valladolid.
Em 1556, a família Cervantes estabeleceu-se em Madri, onde Miguel assistiu ao Estudo da Vila, dirigido por Juan López de Hoyos, conhecido catedrático de gramática. Em 1569, o jovem Miguel teve de fugir à Itália, em decorrência do fato de ter ferido a um cidadão chamado Antonio de Sigura. Iniciava assim, o nosso autor, uma vida cheia de aventuras, que passaram a constituir uma das margens do rio do seu viver, sendo a outra o ofício de escritor, que Cervantes desempenhará com genialidade, não ficando preso à vida social dos salões, mas indo fundo, na tentativa de intuir e dar conta dos abismos da alma humana, a partir da cotidianidade. Em Roma, pôs-se ao serviço do cardeal Giulio Acquaviva (1546-1574). Em 1571, sentou praça como soldado da companhia do capitão Diego de Urbina, tendo participado da batalha de Lepanto (7 de outubro de 1571), em que os turcos foram derrotados pelo exército cristão chefiado por Dom João de Áustria (1547-1572). Miguel de Cervantes destacou-se pela sua coragem na mencionada batalha, tendo combatido adoentado. Recebeu várias feridas, uma das quais lhe inutilizou a mão esquerda. Pela bravura demonstrada, recebeu um prêmio especial de Dom Juan de Áustria. No prólogo à Segunda Parte do Quixote, Cervantes manifestou o orgulho que sentia por ter participado da mencionada gesta, com as seguintes palavras: “Se as minhas feridas não resplandecem aos olhos de quem as mira, são estimadas, pelo menos, por aqueles que sabem onde se ganharam; que o soldado melhor parece morto na batalha, do que livre na fuga; e tanto sinto isto que digo que, se agora me propusessem e facilitassem um impossível, antes quisera ter estado naquela peleja prodigiosa, do que são das minhas feridas sem lá me ter achado. As cicatrizes que o soldado ostenta no rosto e no peito são estrelas que guiam os outros ao céu da honra, e ao desejar justo louvor” [Cervantes, s/d, II: 9].
Regressava o bravo soldado Miguel de Cervantes à Espanha, com cartas de recomendação de Dom Juan de Áustria e do Duque de Sessa, Gonzalo Fernández de Córdoba (1524-1578), quando, em 26 de setembro de 1575, perto de Cadaqués, na Costa Brava, a Galera Sol, em que viajava, foi rendida pelos turcos, que o levaram preso junto com o seu irmão Rodrigo. Achavam os meliantes ser o jovem soldado gentil-homem de peso, dados os documentos encontrados com ele. Por esse motivo, conduziram-no a Argel, como escravo do pirata grego Dali Mamí, que passou a exigir grossa soma de dinheiro pela sua libertação e a do seu irmão. Durante cinco longos anos o nosso autor ficou refém dos turcos em Argel. O jovem Cervantes revelou-se no seu cativeiro homem corajoso e de ação, tendo quatro vezes arriscado a vida em respectivas tentativas de fuga, sem sucesso, mas se declarando sempre responsável pelas falidas empresas, a fim de livrar os seus companheiros de aventura de qualquer culpabilidade perante os intransigentes e crudelíssimos sequestradores, que castigavam com o empalamento esse tipo de delito. A coragem demonstrada por Miguel foi de tal monta que surpreendeu aos chefetes muçulmanos, que, sem lhe aplicar a mortífera pena, o entregaram à autoridade mor, o bey de Argel, um tal de Azán Bajá, que cogitava levá-lo como escravo a Istambul. Depois de três anos de cativeiro, a família conseguiu o dinheiro exigido pelos sequestradores para libertar os dois irmãos. Mas, na hora do pagamento, os criminosos subiram o preço e Miguel preferiu que o seu irmão Rodrigo fosse libertado, tendo ele permanecido em cativeiro por mais dois anos. Por fim, em 19 de setembro de 1580, frei Juan Gil (1535-1604) da ordem religiosa dos Trinitários, que se dedicavam a resgatar cativos, conseguiu pagar o resgate exigido de 500 escudos. Em dezembro de 1580, Cervantes reunia-se com a sua família em Madri. A vivência do cativeiro em Argel influenciou fortemente na escrita de Dom Quixote, como testemunha a famosa “História do Cativo” (relatada nos capítulos 39 a 41 da Primeira Parte).
Pouco tempo permaneceu o jovem liberto na capital espanhola, pois o encontramos em Lisboa já no ano seguinte. Ali se trasladou Cervantes, buscando algum emprego na corte de Felipe II (1527-1598), que tinha reunido na sua cabeça as coroas de Espanha e Portugal. Contratado pelos funcionários régios, foi-lhe encomendada uma missão secreta em Oran, aproveitando os conhecimentos que tinha da Argélia, obtidos ao ensejo do seu cativeiro. Em 1582, o nosso escritor solicitou à Corte um emprego que tinha ficado vacante nas Índias, sem que tivesse obtido sucesso na sua pretensão. Era a primeira vez em que Cervantes tentava a sorte no Novo Mundo. Por esse tempo teve relações amorosas com Ana Villafranca de Rojas, provavelmente de origem portuguesa, com quem teve uma filha de nome Isabel de Saavedra. Em dezembro de 1584, Miguel casou em Esquivias, cidadezinha da região de La Mancha, com a jovem Catalina de Salazar y Palacio. Entre 1581 e 1583, o nosso autor escreveu a sua primeira obra literária de consideração, La Galatea (publicada em Alcalá de Henares em 1585).
Entre 1587 e 1600, Cervantes fixou residência em Sevilha e exerceu o cargo de Comissário de Abastos, a serviço da Armada espanhola. Em 1588, ocorreu a destruição da “Armada Invencível”. O irrequieto e incipiente escritor buscava mais estabilidade financeira e, em 1590, solicitou novamente ao Rei Felipe II um emprego nas Índias. A resposta da Coroa, para bem das letras castelhanas, foi negativa e lacônica: “Busque por acá em qué se le haga merced”. Se tivesse embarcado para a América, talvez o nosso autor não teria passado apenas de mais um aventureiro a buscar o enriquecimento rápido na caça ao El Dorado. Em decorrência de problemas contáveis surgidos no seu emprego de Comissário de Abastos, Cervantes ficou preso durante algumas semanas em 1592. Problemas semelhantes o conduziriam novamente à cadeia em Sevilha, em 1597. A estas repetidas detenções aludia Cervantes, quando afirmava que Dom Quixote tinha sido gerado no cárcere.
Encontramos o nosso autor, em 1603, instalado em Valladolid, para onde Felipe II tinha transferido a Corte. Tendo falecido recentemente Ana Villafranca, a sua filha Isabel de Saavedra passou a viver com o pai, Miguel, e sua família. Em setembro de 1604, ele obteve o privilégio real para publicar a primeira parte de Dom Quixote,mas as circunstâncias sociais não eram favoráveis à tranqüilidade do escritor. Pouco antes de ser publicada a obra, em junho de 1605, ele e a sua família viram-se envolvidos numa situação difícil: foi assassinado, em frente à residência de Cervantes, o cavalheiro Dom Gaspar de Ezpeleta. O nosso autor e os seus familiares, que eram totalmente inocentes, foram recolhidos à prisão durante as averiguações policiais, por ordem de um juiz corrupto, que pretendia com isso desviar as atenções do verdadeiro criminoso, um escrevente amigo seu. Sofria o genial escritor as agruras do Estado patrimonial espanhol, tão bem caracterizado por Octavio Paz (1914-1998) como “El ogro filantrópico”. Referindo-se ao Estado mexicano, direto herdeiro da tradição patrimonialista ibérica, escreve Paz: “Autor de los prodigios, crímenes, maravillas y calamidades de los últimos 70 años, el Estado – no el proletariado ni la burguesía – ha sido y es el personaje de nuestro siglo. Su realidad es enorme” [Paz, 1963: 10]. O Estado Patrimonial é o “Ogre Filantrópico”, de quem os famintos cidadãos esperam um emprego, mas de quem temem toda crueldade, como a praticada contra Cervantes por um magistrado injusto.
A respeito da traumática prisão do nosso autor e de seus familiares, escreveu Martín de Riquer (1914-2013): “A detenção deve ter durado apenas um dia; mas, nas declarações no processo sobre o caso, fica suspeita a moralidade do lar do escritor, no qual entravam cavalheiros de noite e de dia. Viviam com Cervantes a sua mulher, as suas irmãs Andréa e Magdalena, Constanza, filha natural de Andréa, e Isabel, filha natural do escritor. Em Valladolid chamavam-nas, despectivamente, ‘Las Cervantinas’; e no processo, entre outras coisas, descobrem-se amores irregulares de Isabel com um português” [Riquer, 2004: LI]. A ineficiente e corrupta magistratura, de um lado, e a preconceituosa sociedade formada nos preceitos contrarreformistas, de outro, encarregavam-se, cada uma a seu modo, de excluir o genial escritor do convívio civilizado. Dessa situação dará testemunho Cervantes, de maneira irônica, ao olhar com desdém para esse grande palco em que tinha se convertido a Espanha de começos do século XVII. A vingança do nosso autor consistirá em fazer evanescer essa tosca realidade, convertendo-a em sonho: tal será uma das mágicas de Dom Quixote, como terei oportunidade demonstrar mais adiante.
Castela – La Mancha foi o cenário para a composição e publicação de Don Quijote de la Mancha. Esta austera região, situada na Meseta Castelhana e cujo centro é Madri, constituiu o cenário da obra; mas esse ambiente é complementado com outros panos de fundo geográficos: a região de Valladolid, um pouco a noroeste, as luminosas planícies andaluzas, ao sul, e a próspera região de Barcelona, ao leste, onde Cervantes encenou a última parte da sua grande obra, encerrando ali a terceira viagem de Dom Quixote. Julián Marías (1914-2005) assim caracterizou esse entorno que certamente inspirou a narrativa cervantina: “Valladolid, La Mancha, Esquivias, Toledo, Madrid: estes serão os limites dos últimos anos de Cervantes, a sua última experiência, a mais profunda e intensa, da Espanha. Sem dúvida que o Quixote foi gerado e planejado, começou a ser escrito em Andaluzia; tomou corpo em La Mancha, em idas e vindas, talvez em Esquivias, possivelmente em Argamasilla de Alba, el Toboso ou Campo de Criptana. La Mancha forneceu o cenário, a pátria do Fidalgo, os horizontes irreais, os campos desertos, as vendas incômodas e sem luxos, os sonhos exaltados, a figura humaníssima do tosco e visionário Sancho, enlouquecido por força da cordura. Castela rimava com a hora de melancolia da Espanha declinante, que ainda era tudo mas que começava a não sê-lo, que se recolhia e se trancafiava em si mesma, resguardada na sua capa, sem querer enxergar aqueles que pareciam entrar naquilo que Diego Saavedra Fajardo (1584-1648) chamou, poucas décadas depois, de ‘as loucuras da Europa’ (…)” [Apud Marías, 2000: 79-80].
Porém, é certamente La Mancha a pátria pequena do Quixote. A austera região que se estende entre a Serra de Guadarrama, ao norte, a Serrania de Cuenca, ao leste, os Montes de Toledo, ao oeste, e a Serra de Segura, ao sul, esse foi o marco próximo da aventura quixotesco-cervantina. Os poeirentos caminhos que por regiões inóspitas conduziam de Madri até Albacete, passando por Esquivias, Aranjuez, Ocaña, Chinchón, Villatobas, Corral de Almaguer, Quintanar de la Orden, Campo de la Criptana, Villamayor de Santiago e El Toboso, esse foi o microcenário em que se desenvolveu a maior parte da história do Cavaleiro da Triste Figura e que Cervantes percorreu inúmeras vezes nas suas rotineiras viagens de Comissário de Abastos; mas La Mancha foi uma lente através da qual Cervantes contemplou as outras regiões que inspiraram a sua magna obra. Constituiu a porta de entrada para esse mundo mágico em que o grande escritor resumiu todas as suas viagens, as suas aventuras e os seus amores.
Julián Marías exprimiu bem a dimensão simbólica de La Mancha, no seguinte texto: “Cervantes olha Castela com olhos que foram italianos, argelinos e, sobretudo, andaluzes. La Mancha de Dom Quixote é tão Mancha, tão superlativa e unicamente Mancha, porque é vista de dentro e de fora, ao mesmo tempo: de dentro, porque Cervantes viveu cada canto, cada dobra, cada matiz dessa comarca, tão simples e tão secreta ao mesmo tempo; de fora, porque La Mancha não é o mundo do autor, mas somente uma das suas porções e, por isso, aparece com toda a sua figura bem desenhada e definida, posta em relação com outras coisas, como uma unidade que é observada isenta e fechada; La Mancha não é La Mancha sozinha; está situada – ao menos idealmente – junto a outras terras, outras cidades, outra gente; é uma comarca eleita, convertida em cenário, interpretada. A explicitação do caráter manchego de Dom Quixote é justamente a consequência de ter sido escrito o livro a partir de um horizonte muito mais dilatado, fazendo com que a pupila, depois de traçar vários círculos, tenha vindo a pousar, como ave de rapina, sobre essa comarca eleita, sobre esse lugar onde vão acontecer as mais maravilhosas transfigurações imaginativas da realidade” [Marías, 2000: 81].
Em 1606, a Corte transladou-se de Valladolid para Madri, já sob o reinado de Felipe III (1578-1621). Cervantes mudou-se para a nova capital. A sua filha Isabel casou e as irmãs de Cervantes, Andréa e Magdalena, morreram, tendo-se reduzido a família à esposa e à sua sobrinha Constanza. Na residência de Madri, o nosso autor escreveu intensamente nos últimos anos de vida. A sua obra é fruto da maturidade. Cervantes foi, sem dúvida, um escritor da Terceira Idade: as principais criações apareceram, efetivamente, entre 1605, data da publicação da Primeira parte de Dom Quixote, e 1616, ano de sua morte. Ou seja, Cervantes compôs a parte principal da sua obra entre os 58 e os 69 anos de idade. Em 1613 apareceram as Novelas Ejemplares; em 1614, Viaje del Parnaso; em 1615, a Segunda Parte de Don Quijote de la Mancha e as Comedias e Entremeses e, em 1617, postumamente, Persiles y Sigismunda.
Quando Cervantes preparava a edição da Segunda Parte do Quixote, apareceu, publicado em Tarragona, em 1614, um livro intitulado: Segundo Tomo del Ingenioso Hidalgo Don Quijote de La Mancha. O autor escondia-se sob o pseudônimo de Licenciado Alonso Fernández de Avellaneda, natural de Tordesillas. Avellaneda era aragonês, frade dominicano e medíocre compositor de comédias, segundo Cervantes deduziu a partir da análise do texto [cf. Clemencín, 1947: 987 ss.]. Tratava-se de uma continuação vulgar e pedestre da obra cervantina, feita para opacar o brilho que o verdadeiro autor tinha alcançado com a publicação da Primeira Parte. A ousada falsificação talvez tenha tido um motivo: a inveja dos “escritores profissionais”, que não podiam tolerar o fato de alguém, como Cervantes, não se considerar pertencente a essa tacanha confraria. A propósito, escreve Julián Marías: “Cervantes, vizinho de Lope de Vega (1562-1635), mistura-se – sempre um pouco de longe – na vida literária. Nunca foi um escritor profissional. Os que eram tais nunca lhe perdoaram nem a sua modéstia, nem a sua genialidade” [Marías, 2000: 85].
Cervantes, como todos os gênios, não se encerra na estreiteza de uma confraria, de uma ordem ou de um salão oficial. A sua genialidade rima com a liberdade absoluta do espírito, com a criação de uma obra imortal projetada por duas grandes intuições: a liberdade e a beleza. Onde se inspirou o nosso autor? Certamente na Itália e em Andalucía, terras de luz, de liberdade, de beleza e de abertura à vida. Sobre esse pano de fundo, o escritor castelhano desenha a tela da sua história, com as cores difusas da terra manchega, tornada sutil pela poeira dos caminhos e as névoas dos invernos de Castilla – La Mancha. A propósito deste ponto, pergunta-se Julián Marías: “Quais são as duas invisíveis rédeas que governam a atenção e o entusiasmo de Cervantes?” E responde: “Uma se chama liberdade; a outra, beleza; sem tê-las presentes não se pode entender nada do que Cervantes escreveu, muito menos o que quis dizer com isso” [Marías, 2000: 62].
Cervantes morreu em 22 de abril de 1616, na sua casa situada na Calle del León, em Madri. O corpo do escritor foi enterrado no convento das Trinitárias Descalzas, na Calle de Cantarranas (hoje Calle Lope de Vega). Talvez o traço que melhor pode caracterizar a personalidade de Cervantes é o do amor a uma liberdade de tipo estoico, que não ambiciona riquezas, mas que se satisfaz na honradez e que, paradoxalmente, muito deseja da vida. É um meio-termo entre a razão da austera Castela e a vitalidade da luminosa Andalucía. É a expressão de uma aristocracia de espírito, que não se verga perante interesses de qualquer índole, mas que não renuncia ao prazer da vida. O nosso autor exprimiu bem esse traço do seu caráter, nestes versos:
Tuve, tengo y tendré los pensamientos
Merced al cielo, que a tal bien me inclina,
De toda adulación libres y exentos.
Nunca ponga los pies por do camina
La mentira, la fraude y el engaño,
De la santa virtud total ruina.
Con mi corta fortuna no me ensaño,
Aunque por verme en pie, como me veo,
Y en tal lugar, pondero así mi daño.
Con poco me contento, aunque deseo
Mucho” [apud Marías, 2000: 83].
Esse “desear mucho” é, no nosso autor, o fio ao solo vital, ao amor, ao prazer, à amizade, ao desejo de permanecer no coração dos seus leitores como mensageiro da graça, do donaire, do jogo da imaginação. Na sua última obra, Persiles y Sigismunda, assim se despedia aquele que sentia a sua existência chegar ao fim: “Adiós, gracias; adiós, donaires; adiós, regocijados amigos; que yo me voy muriendo, y deseando veros presto contentos en la otra vida” [apud Marias, 2000: 87]. Com essas palavras, frisa Julián Marías, Cervantes resume a Espanha. Escreve a respeito o citado autor: “Um homem que vai morrer, que sabe que vai morrer em breve, e se despede. De quê? Da graça, do donaire, do regozijo, da amizade; da palavra, da conversação. Não é isso Espanha? Que pensa, com ilusão, com pressa, na outra vida. Cuja última palavra, depois de tantos anos de infortúnios, feridas, cárceres, cativeiro, pobreza e menosprezo, depois de tanto amor, tanta beleza, tanta ilusão fresca e nunca murcha, é ‘contentos’. Não é isso Espanha?” [Marías, 2000, ibid.].
2) A circunstância espanhola
A Espanha de finais do século XVI e início do XVII começava a decair. Foi um processo lento, quase imperceptível, que se estendeu por séculos, até a perda das últimas colônias, Cuba e Puerto Rico, já no final do século XIX, mas que o gênio de Cervantes intuiu, como esses aborígines da Indonésia que pressentem o longínquo tsunami que avança, destrutor, a centenas de quilômetros de distância. O nosso autor adivinhou a pendente por onde, lentamente, começava a descer o grande Império, fechado na armadura contrarreformista.
Não podia ser feliz uma Espanha cujo Imperador, Carlos V (1500-1558), optou por vir morar – e morrer – como monge em El Escorial. Logo ele, Rei da Espanha e Imperador da Alemanha, em cujos domínios jamais se punha o sol! Isso não no século XI, mas em pleno início da modernidade, quando já a Renascença italiana tinha iluminado o mundo da cultura com a maravilhosa arte de Botticelli (1445-1510), Rafael (1483-1520), Miguel Ângelo (1475-1564), Fra Angélico (1387-1455), Caravaggio (1571-1610) e Leonardo (1452-1519), e que na Espanha eclodiu com as madonas de Bartolomé Esteban Murillo (1617-1682). E no momento em que Galileu (1564-1642) abria novas perspectivas para a livre indagação sobre o cosmo. E após a irreverente exclamação de Boccaccio (1313-1350) em Il Decamerone, de que o prazer “nun é peccato”. Não podia ser feliz um Reino cujo sucessor era uma figura melancólica, com essa melancolia estampada no rosto dos Áustrias, notadamente do soberano que regeu os destinos espanhóis nos tempos de Cervantes, Felipe II, cuja preocupação fundamental consistiu em gerir burocraticamente, à luz de um jurisdicismo tacanho, o legado patrimonial que lhe colocara a História nas mãos, o maior Império que conhecera o mundo de então [cf. Pérez, 2000: 218], no qual “não se punha o sol”.
Não podia ser feliz um povo ameaçado diuturnamente pela rude Inquisição, que fazia galas de perseguir até a morte (e que morte!) qualquer um que ousasse se subtrair ao controle dos teólogos d’El-Rei. Os tenebrosos Autos de Fé eram realidade na época de Cervantes. Ainda estavam frescos na memória do genial escritor os quadros horripilantes da condena e ulterior suplício do doutor Agustín de Casalla e seus familiares, ocorrida em 21 de Maio de 1559. A respeito desse fato, escreve Marcelino Menéndez y Pelayo (1856-1912) na sua Historia de los heterodoxos españoles: “A Inquisição, encontrando bastante culpa em alguns dos processados, determinou celebrar com eles um auto de fé mais solene do que quantos até então tinham ocorrido na Espanha [Menéndez y Pelayo, 1956: 1067]. E haja solenidade: ao julgamento e condenação dos acusados compareceram, ricamente vestidos de luto, os príncipes, as damas da corte e os membros do Conselho de Castela, além, é claro, dos funcionários da Inquisição, dos acusados e dos seus familiares.
Miguel de Cervantes era, contudo, um patriota. Identificou-se de coração com o Império, com a luta em prol da defesa da cristandade contra os muçulmanos. As feridas, recebidas na batalha de Lepanto, foram sua grande honraria. Era fiel ao seu soberano, mas, ao mesmo tempo, tinha as suas reservas em face do Estado gerido como coisa privada pelos funcionários reais. Desconfiava da autoridade. Também pudera! Não foram poucos os maus tratos que dela recebeu, ao longo da vida. É bem certo que esperou da Coroa, em não poucas oportunidades, uma função burocrática que lhe permitisse viver decentemente, mas só isso. Queria a independência de espírito. Nunca pretendeu se tornar escravo das convenções sociais ou do fátuo rito dos salões. Não era um Lope de Veja, escritor de sucesso que frequentava a Corte. Sempre aspirou à áurea mediocritas de uma vida de lar, tranquila, aprazível, em que pudesse viver os seus amores e amizades. E em que tivesse tempo e disposição para escrever os seus divertimentos. Poderíamos afirmar que o genial escritor acreditava no sucesso espanhol, na grandeza do Império, mas essa convicção aos poucos foi decaindo, até se transformar em melancolia, pouco antes de morrer. Mais adiante, ao falar do espírito libertário de Cervantes, voltarei sobre este ponto.
O ambiente cultural da Espanha setecentista, policiado pela que Fidelino de Figueiredo (1888-1967) denominava de “alfândega cultural” dos Áustrias [Cf. Figueiredo, 1959: 43-44], estava mais próximo do princípio que o nosso Luís Washington Vita (1921-1968) chamou de “Saber de Salvação” [Vita, 1968: 15-37], alicerçado na convicção medieval de que “o Homem é um vil bicho da terra e um pouco de lodo” [cf. Pereira, 1939]. Cervantes prenunciou o declínio ibérico, fatalmente ligado à ideia contrarreformista do rebaixamento da natureza humana, e o fez simbolicamente, na melancolia que afetou ao seu herói, no final da Segunda Parte de Dom Quixote, “melancolia que lhe causara o ver-se vencido” [Cervantes, s/d: II, 378]. Estado de espírito que não era apenas de Felipe II e de Dom Quixote, mas que afetou também a um homem público da altura do conde-duque de Olivares (1587-1645), o poderoso ministro de Felipe IV (1605-1665). Ao cair em desgraça, em 1643, Olivares fez publicar um folheto em que confessava que tinha fracassado no seu trabalho modernizador da economia e do Estado espanhol, e afirmava que quem tinha vencido era Richelieu (1585-1642), que soube encarnar a Raison d’État, ao passo que ele, Olivares, tinha permanecido fiel ao modelo da ética da honra, ditado pelos princípios religiosos. Traçando um paralelo entre ambos os ministros todo-poderosos, escreve o historiador John Elliott (1930-): “Richelieu chegou ao poder de uma França esgarçada pelo cisma e devastada pelas rebeliões. Após sua morte, deixou um país pacificado e convertido em árbitro da Europa. Olivares tinha herdado, ao contrário, uma Espanha poderosa e tranquila, que deixou então num estado deplorável e sem que tivesse sido conquistada uma parcela mínima de território suplementar” [Elliott, 1991: 10-11].
A respeito, escreve Julián Marías: “Imaginem o que significa que um político caído em desgraça, que perdeu o poder, no seu escrito justificativo, reconheça que fracassou, reconheça que o seu rival venceu, mas que agiu de acordo com a moral e a religião. Isso ilustra o que se entendia na Espanha, ainda em meados do século XVII, pela política; definitivamente, é um ato quixotesco também” [Marías, 2000: 345-346]. Isso quase cinquenta anos depois de Francisco Suárez (1548-1617) ter publicado De Legibus ac Deo Legislatore [cf. Suárez, 2004], que deitava os alicerces para a modernização do Estado, num contexto claramente antropocêntrico e aberto à soberania popular. Espanha, em definitivo, se afastava da modernidade, refugiava-se no espírito contrarreformista e perdia, paulatinamente, a vontade de imperar e de viver. A decadência era um fato nascido no interior do próprio mito da grandeza ibérica. O mito da Espanha grande morreu, como destaca Guillermo Francovich (1901-1990), “por dentro”. A propósito da dinâmica dos mitos profundos que constituem a alma das Nações, frisa Francovich: “Os mitos são geralmente invulneráveis à crítica. Não costumam ser derrubados pela razão. Perdem a sua vigência quando desaparecem as circunstâncias que lhes deram nascimento, quando há uma mudança da sensibilidade à que correspondem. E são tanto mais resistentes quanto mais profundas forem as experiências que os sustentam. Os mitos possuem vida própria. Correspondem a uma sensibilidade vital. Não são destruídos de fora. Morrem por dentro” [Francovich, 1988: 48].
Quando se sedimentou, na alma espanhola, o mito da queda, traduzido na convicção da decadência do Império? Julián Marías situa esse momento em meados do setecentos. Eis as suas palavras a respeito: “Mais tarde, já bem entrado o século XVII, muito depois da morte de Cervantes, surgirá o conceito de decadência (…). O curioso do caso é que há um momento na Espanha, talvez lá por volta de 1640, em que se começa a interpretar todo fracasso como decadência; às vezes ocorre algo muito ruim e no dia seguinte algo muito bom, mas, no entanto, desliza-se no ânimo dos espanhóis a ideia de que se entrou em decadência” [Marías, 2000: 343-344].
II – Dom Quixote, herói libertário
Cervantes encarnou o liberalismo telúrico ibérico, que aflora em outras figuras dessa cultura. Após os estudos de Alexandre Herculano (1810-1877), Américo Castro (1885-1972), Martínez Marina (1754-1833), José María Ots Capdequí (1893-1975), Fidelino de Figueiredo (1888-1967), Sampaio Bruno (1857-1915), etc., ficou claro que a tradição liberal é, na Península Ibérica, mais antiga que a vertente patrimonialista e absolutista, que veio a se inserir na história dos povos espanhol e português como realidade adventícia, posterior a essa inicial aspiração a um individualismo estoico e libertário. A tradição contratualista visigótica deu expressão a essa velha tendência independentista (belamente expressa nos Fueros Aragoneses) e foi o ponto central das dores de cabeça de conquistadores alienígenas, como Napoleão Bonaparte (1769-1821). O Imperador dos Franceses começou o seu rápido declínio quando decidiu invadir os confins da Ilha européia, a Península Ibérica e a Rússia. Defrontou-se com a tremenda capacidade de sobrevivência e o patriotismo do povo russo e com a particular heroicidade da sociedade espanhola, capaz de lutar até o último homem em prol da defesa da sua independência e da liberdade. Os quadros de Francisco de Goya (1746-1828) que retratam os fuzilamentos de 1812 dão prova dessa capacidade de luta heroica dos ibéricos contra o invasor estrangeiro.
Se há um traço que marca a personalidade de Dom Quixote, esse é a defesa incondicional que o herói cervantino faz da liberdade. O ponto essencial do seu programa cavalheiresco é a ética da honra, que se centra na defesa da liberdade individual. Liberdade de ir e vir, liberdade de não ser importunado pelos burocratas do rei, liberdade de amar e de folgar com os amigos, liberdade para os cativos, liberdade das amarras contrarreformistas expressas no direito filipino e nos preconceitos inquisitoriais.
A defesa incondicional da liberdade, tal é o leitmotiv do belo discurso que Cervantes põe em boca de Dom Quixote, no Capítulo LVIII da Segunda Parte da obra. Eis as palavras do herói cervantino quando deixa o palácio dos Duques, após ser tratado por estes com todas as delicadezas e afagos da alta nobreza: “A liberdade, Sancho, é um dos dons mais preciosos, que aos homens deram os céus; não se lhe podem igualar os tesouros que há na terra, nem os que o mar encobre; pela liberdade, da mesma forma que pela honra, se deve arriscar a vida, e, pelo contrário, o cativeiro é o maior mal que pode acudir aos homens. Digo isto, Sancho, porque bem viste os regalos e a abundância que tivemos neste castelo, que deixamos; pois no meio daqueles banquetes saborosos, e daquelas bebidas nevadas, parecia-me que estava metido entre as estreitezas da fome; porque os não gozava com a liberdade com que os gozaria, se fossem meus; que as obrigações das recompensas, dos benefícios e mercês recebidas, são ligaduras que não deixam campear o ânimo livre. Venturoso aquele a quem o Céu deu um pedaço de pão, sem o obrigar a agradece-lo a outrem que não seja o mesmo Céu!” [Dom Quixote de la Mancha, Parte II, Cap. LVIII, p. 300].
Comentando o discurso de Dom Quixote, escreveu Mário Vargas Llosa (1936-) o seguinte texto, em que destaca a inspiração liberal do nosso herói: “Recordemos que o Quixote pronuncia esta louvação exaltada da liberdade ao partir dos domínios dos anônimos duques, onde foi tratado a corpo de rei por esse exuberante senhor do castelo, a encarnação mesma do poder. Mas, nos afagos e mimos de que foi objeto, o Engenhoso Fidalgo percebeu um invisível espartilho que ameaçava e rebaixava a sua liberdade, porque os não gozava ‘com a liberdade com que os gozaria, se fossem meus’. O pressuposto desta afirmação é que o fundamento da liberdade é a propriedade privada, e que o verdadeiro gozo só é completo se, ao desfrutar, uma pessoa não vê recortada a sua capacidade de iniciativa, a sua liberdade de pensar e de agir. (…) Não pode ser mais claro: a liberdade é individual e exige um mínimo de prosperidade para ser real. Porque quem é pobre e depende da dádiva ou da caridade nunca é totalmente livre” [in: Cervantes, 2004: XIX].
A liberdade apregoada e defendida por Dom Quixote é a que hodiernamente chamamos de liberdade negativa. Trata-se de uma liberdade não adjetivada, liberdade primária de ir e vir, essa liberdade que estimulou as revoltas espanholas, portuguesas e ibero-americanas, nas denominadas “conjurações”, seja dos comuneros espanhóis do século XVI, seja dos nossos conjurados neogranadinos ou mineiros de fins do século XVIII. Ora, a liberdade primária defendida pelos conjurados latino-americanos é a de pensar e agir, a de não serem taxados os cidadãos sem prévia negociação com a Coroa. A propósito disto, afirma Vargas Llosa: “Que ideia da liberdade se faz Dom Quixote? A mesma que, a partir do século XVIII, far-se-ão na Europa os chamados liberais: a liberdade é a soberania de um indivíduo para decidir a sua vida sem pressões nem condicionamentos, em exclusiva função de sua inteligência e vontade. Quer dizer, o que vários séculos mais tarde um Isaiah Berlin (1909-1997) definiria como liberdade negativa, a de estar livre de interferências e coações para pensar, se exprimir e agir. O que reside no coração dessa ideia de liberdade é uma desconfiança profunda em face da autoridade, dos desaforos que pode cometer o poder, qualquer poder” [Vargas Llosa apud Cervantes, 2004: XIX].
Essa liberdade negativa é também defendida por Sancho Pança. Em face das complicadas tarefas de governador da Insula Barataria, o fiel escudeiro prefere a vida simples de quem se contenta com o trabalho manual e o alimento na hora certa; prefere essa vidinha aos luxos da corte e à complicada ritualística da governança, que lhe exige, entre outras coisas, entrar em combate com incômoda armadura que lhe impossibilita os movimentos, levar uma surra monumental dos inimigos fictícios e se submeter à famélica dieta prescrita pelos médicos, a fim de manter as aparências estetizantes do palco da política. Eis o discurso com o qual Sancho dispõe-se a justificar a sua saída do poder, para desfrutar a simples liberdade dos filhos de Deus: “Abri caminho, senhores meus, e deixai-me voltar à minha antiga liberdade; deixai-me ir buscar a vida passada, para que me ressuscite desta morte presente. Eu não nasci para ser governador, nem para defender ilhas nem cidades dos inimigos que as quiserem acometer. Entendo mais de lavrar, de cavar, de podar e de pôr bacelos nas vinhas do que de dar leis ou defender províncias nem reinos. Bem está São Pedro em Roma; quero dizer: bem está cada um, usando do ofício para que foi nascido. Melhor me fica a mim uma fouce na mão, do que um ceptro de governador; antes quero comer à farta feijões, do que estar sujeito à miséria de um médico impertinente, que me mate à fome; e antes quero recostar-me de Verão à sombra de um carvalho, e enroupar-me de Inverno com um capotão, na minha liberdade, do que deitar-me, com a sujeição do governo, entre lençóis de Holanda, e vestir-me de martas cevollinas. Fiquem Vossas Mercês com Deus, e digam ao duque meu senhor que nasci nu, nu agora estou, e não perco nem ganho; quero dizer: que sem mealha entrei neste governo, e sem mealha saio, muito ao invés do modo como costumam sair os governadores de outras ilhas; e apartem-se, deixem-me, que me vou curar, pois suponho que tenho arrombadas as costelas todas, graças aos inimigos que esta noite passearam por cima do meu corpo” [apud Cervantes, s/d: II, 279].
Dom Quixote, herói libertário. Mas, também, cavaleiro andante que luta em prol da justiça. Encontramos, na escala axiológica do herói cervantino, o culto insofismável a esses dois valores: liberdade, mas também justiça (que hoje denominaríamos de democracia, no sentido de igualdade perante a lei e ausência de privilégios). Dom Quixote, como fará Alexis de Tocqueville (1805-1859) três séculos mais tarde, bate-se por um liberalismo que concilia defesa da liberdade e defesa da justiça/igualdade [Tocqueville, 1977: 329]. O liberalismo telúrico quixotesco é, como o de Tocqueville, um liberalismo social.
O Cavalheiro da Triste Figura, embora reconheça a legitimidade dos poderes constituídos, desconfia dos seus excessos. Numa Espanha presidida pelo Estado patrimonial dos Áustrias, Dom Quixote fica com um pé atrás, em face da autoridade. Ela, como nos subúrbios das grandes cidades brasileiras ou no nosso sertão, somente se fazia presente, na Espanha cervantina, para tornar mais difícil a vida do desprotegido cidadão. Quando os poderosos extrapolam os seus privilégios, utilizando uma legislação que, como a filipina, privilegiava quem tivesse recursos contra os que não tinham nada, o herói cervantino não duvida em favor de quem vai empunhar as suas armas: em defesa dos fracos. Isso acontece, por exemplo, quando Dom Quixote desafia o poderoso Juan Haldudo, que está açoitando um dos seus empregados que lhe extraviou uma ovelha. Dom Quixote intervém, lança em riste, obrigando o rude senhor a parar com a injusta punição.
A respeito desse episódio, afirma Vargas Llosa: “Como neste, a novela está cheia de episódios em que a visão individualista e libérrima da justiça conduz o temerário fidalgo a desacatar os poderes, as leis e os usos estabelecidos, em nome do que para ele é um imperativo moral superior” [Vargas Llosa, apud Cervantes, 2004: XX]. A atitude libertária de Dom Quixote chega até os limites da anarquia, quando o herói descobre que a autoridade exercida em nome d’ El-Rei simplesmente escraviza sem contemplação e sem discernimento, em que pese o fato de os delitos terem sido já expiados pelos condenados, que são conduzidos para completar a sua pena nas galés. Ao libertar os doze cativos (entre eles o famoso meliante Ginés de Passamonte), Cervantes coloca em boca do seu personagem um alerta contra o excessivo rigor da autoridade: “porque dura coisa me parece o fazerem-se escravos indivíduos, que Deus e a Natureza fizeram livres” [Cervantes, s/d, I, cap. XXII: 131].
Dom Quixote desconfia da autoridade, mas quer, ao mesmo tempo, o mundo em ordem. Ora, a paz social deveria ser obra dos indivíduos chamados por uma vocação especial – os cavalheiros andantes – a pôr ordem nas coisas humanas, sem que fosse necessário atribuir essa tarefa aos burocratas d’El-Rei, que certamente vão utilizar a parcela de poder que receberam para escravizar os seus semelhantes. Cervantes apela para uma aristocracia da ordem, que se contraponha ao exercício da autoridade régia. A respeito, escreve Vargas Llosa: “O Quixote não acredita que a justiça, a ordem social, o progresso sejam funções da autoridade, mas obra de indivíduos que, como os seus modelos, os cavalheiros andantes, e ele mesmo, tenham chamado a si a tarefa de tornar menos injusto e mais próspero o mundo em que vivem. Isso é o cavalheiro andante: um indivíduo que, motivado por uma vocação generosa, lança-se pelos caminhos a buscar remédio para tudo aquilo que anda mal no planeta. A autoridade, quando aparece, em lugar de lhe facilitar a tarefa, torna-a difícil” [Vargas Llosa, apud Cervantes, 2004: XX].
III – A Espanha cervantina, realidade que se converte em mito
A loucura de Dom Quixote, longe de ser esconjurada no decorrer da narrativa cervantina, termina contaminando a obra. Os fatos reais passam a uma segunda dimensão e tornam-se fantasia. Para curar a loucura do herói, todos os que o rodeiam, a começar pelo bacharel Sansón Carrasco, assumem um papel de ficção, a fim de, a partir desta, convencer o imaginoso manchego a largar a cavalaria andante. Ora, acontece o contrário: todos passam a viver a ficção quixotesca, o que termina dando à obra cervantina um inegável caráter contemporâneo. Trata-se de uma ficção continuada à la Jorge Luis Borges (1899-1986), ou à la Macondo: o furacão caribenho varre o mundo real e o transporta para a dimensão da fantasia, em que todos os sonhos valem. Dom Quixote sai vencedor: todos passam a compartilhar a loucura da fantasia. Até o prosaico Sancho começa a acalentar o sonho como a melhor dimensão da realidade, ao se tornar governador da Insula Barataria.
A respeito dessa dimensão fantástica da obra, escreveu Vargas Llosa, justamente destacando a contemporaneidade de Dom Quixote: “O grande tema de Dom Quixote de la Mancha é a ficção, a sua razão de ser e a forma como ela, ao se infiltrar na vida, vai modelando-a, transformando-a. Assim, o que parece a muitos leitores modernos o tema borgiano por excelência – o de Tlön, Uqbar, Orbis Tertius – é, na verdade, um tema cervantino que, séculos depois, Borges ressuscitou, imprimindo-lhe um selo pessoal. A ficção é um assunto central da novela, porque o fidalgo manchego que é o seu protagonista foi tirado de lugar (…) pelas fantasias dos livros de cavalarias e, acreditando que o mundo é como o descrevem as novelas de Amadises e Palmerines, lança-se ele em busca de umas aventuras que viverá de forma exemplar e sofrendo pequenas catástrofes. Ele não tira dessas más experiências uma lição de realismo. Com a inamovível fé dos fanáticos, atribui a encantadores perversos que as suas façanhas tornem sempre a se desnaturar e a se tornarem falsas. No final, termina se saindo com a sua. A ficção vai contaminando o vivido e a realidade vai gradualmente se acomodando às excentricidades e fantasias de Dom Quixote” [Vargas Llosa, apud Cervantes, 2004: XV-XVI].
Cervantes brinca com a fantasia. Os personagens da Segunda Parte de Dom Quixote leram o Primeiro Volume da obra e aceleram o processo de tornar a realidade ficção. Isso se dá a partir do capítulo 31 da Segunda Parte, com a aparição dos famosos duques sem nome, que desdobram a cotidianidade em fantasias teatrais; quando encontram as figuras de Dom Quixote e Sancho são literalmente seduzidos pela irrealidade destes e tomam carona no seu sonho. É então quando, no castelo dos duques, a vida vira ficção, fantasia, jogo. Existe exemplo mais claro de realismo mágico? Nesse brincar com a fantasia, Cervantes coloca num ponto de vista evanescente o narrador da história, ou melhor, os narradores desta. Quem são esses narradores? São dois: o misterioso Cide Hamete Benengeli, que não é lido diretamente, em virtude do fato de o seu manuscrito se encontrar escrito em árabe. O segundo é um narrador anônimo, que por vezes fala em primeira pessoa, mas que o faz usualmente do ponto de vista omnicompreensivo de quem fala em terceira pessoa. Este segundo narrador traduz ao espanhol e comenta a narrativa do primeiro.
A respeito deste artifício, escreve Vargas Llosa: “Esta é uma estrutura de caixa chinesa: a história que os leitores lemos está contida dentro de outra, anterior e mais ampla, que só podemos adivinhar. A existência desses dois narradores introduz na história uma ambigüidade e um elemento de incerteza sobre aquela outra história, a de Cide Hamete Benengeli, algo que impregna as aventuras de Dom Quixote e Sancho Panza de um sutil relativismo, de uma áurea de subjetividade, que contribui de forma decisiva a lhes dar autonomia, soberania e uma personalidade original” [Vargas Llosa, apud Cervantes, 2004: XXIII-XXIV].
Nesse sumir a realidade na aventura da ficção literária, Cervantes genialmente se insurge contra o gênero de “Livros de Cavalarias”, substituindo o descomunal dos seus dragões, anões, serpentes, terras exóticas, gigantes, castelos aquáticos, óbvios demais, por exemplo, na narrativa de Chrétien de Troyes (1130-1191), pela crescente evanescência do universo humano na perspectiva da loucura dos personagens principais, que toma de assalto a razão de todos os outros e dos próprios leitores. Valha, a respeito, a acertada observação de Martín de Riquer (1914-2013), no seu ensaio intitulado Cervantes y el Quijote: “O certo é que Cervantes propôs-se satirizar e parodiar os livros de cavalarias, a fim de acabar com a sua leitura, que ele considerava nociva, e que, segundo demonstra a bibliografia, conseguiu plenamente o seu propósito, pois depois de publicado o Quixote diminuem de forma extraordinária, até desaparecerem totalmente, as edições espanholas de livros deste gênero” [apud Cervantes, 2004: LXV].
Cervantes, nessa genial aventura da imaginação, consegue libertar os Livros de Cavalaria do ambiente de passado em que tinham mergulhado, ao fazer do Cavalheiro da Triste Figura um modelo ético a ser seguido pelo homem moderno. Trata-se de um ideal prometeico que torna o herói fonte irradiadora de amor incondicional, tomando o lugar que o Deus-Amor ocupava no Cristianismo. No amor incondicional pela sua dama, o herói supera a morte e se projeta para a eternidade. A propósito, escreve com muito bom senso San Tiago Dantas (1911-1964), nesse seu magnífico ensaio intitulado Dom Quixote, um apólogo da alma ocidental: “Pois Cervantes, segundo penso, concebeu o Dom Quixote para extrair a Cavalaria da forma histórica em que vivera, e da ingênua literatura fabulosa em que agonizava, e para lhe assegurar uma ressurreição no mundo dos símbolos. Todo o Quixote prova que a perenidade da Cavalaria não está nas suas exterioridades, mas no molde espiritual invisível, que, depois de se haver modelado sobre ela, se separou de seu corpo transitório. Eis porque a novela cervantina pode ser implacável com a Cavalaria e os Livros de Cavalaria, para os quais aponta o caminho da morte, ao mesmo tempo em que o espírito e a ética da Cavalaria entram pela sua mão no clima da vida eterna” [San Tiago Dantas, 1979: 36].
IV – Dom Quixote, modelo de herói moderno
Terminarei a minha aproximação à obra cervantina ressaltando este aspecto que faz de El Quijote o precursor da literatura moderna, assim como Descartes (1596-1650) é o precursor da filosofia moderna com o seu Discurso do Método. A essência da modernidade pode ser condensada na seguinte ideia: o homem descobre a perspectiva antropocêntrica e faz de si próprio o centro do cosmo. Ora, nesse antropocentrismo prometeico e iconoclasta, o homem ousa representar Deus à sua imagem e semelhança. A melhor expressão dessa ousadia a encontramos na Renascença Italiana. Não é, por acaso, o belo afresco de Miguel Ângelo (1475-1564), na Capela Sistina, o símbolo desse “fazer Deus à sua imagem e semelhança?” Não é, como lembrava Ortega y Gasset (1883-1955), a alma da Renascença, esse instituir uma religião eminentemente teândrica, ao redor da “Imitação de Cristo?” O Deus absconditus das Catedrais Góticas tinha ficado submerso nas sombras do Mistério, ausente no sentimento que Rudolf Otto (1869-1937) identificou como o numinoso. O sagrado-absolutamente-outro falava pouco para o homem da Renascença, que reinventa a experiência do mundo. Era necessário encarnar Deus no mundo, fazê-lo partilhar da nossa humanidade, era preciso trazer o céu para cá embaixo, torná-lo objeto da experiência humana. Não é essa a síntese da Divina Comédia de Dante Alighieri (1265-1321)? É possível, sim, viajar pelo além, como quem descobre Novos Mundos. Esse é o roteiro essencial da metáfora do genial precursor florentino do quatrocento, que imagina Paraíso, Purgatório e Inferno a partir da perspectiva histórica da sua cidade.
Pois bem: Cervantes apropria-se dessa perspectiva antropocêntrica e ergue um ideal ético para o homem moderno: o da pessoa-amor, que ama incondicionalmente e que ao redor desse amor-doação constrói o seu mundo, ou melhor, faz evanescer o mundo real na névoa da metáfora continuada da loucura quixotesca. A fonte (neoplatônica e judaica) que inspira esta perspectiva heróica é indubitável, e é o próprio autor quem a identifica no prólogo do Quixote, onde Cervantes escreve: “Se vos meterdes em negócios de amores, com uma casca de alhos que saibais da língua toscana topareis em Leão Hebreu (1464-1530), que vos encherá as medidas” [Cervantes, s/d, I, Prólogo: 10]. O filósofo judeu-espanhol
Jehuda Abravanel ou Leão Hebreu, falecido na Itália em 1535, foi, com a sua clássica obra Diálogos de Amor, a voz inspiradora da loucura amorosa de Dom Quixote. Um pouco mais adiante, o mesmo pensador inspiraria outro gênio do século XVII, o filósofo luso-holandês Baruch Espinosa (1632-1677). Intuiu com propriedade o genial Miguel de Unamuno (1864-1936) essa reviravolta ontológica, quando, na sua Vida de Don Quijote y Sancho, escreveu: “Dom Quixote amou a Dulcinea com amor acabado e perfeito, com amor que não corre atrás do deleite egoísta e próprio; entregou-se a ela sem pretender que ela se entregasse a ele. Lançou-se ao mundo a conquistar glória e louros, para ir logo depositá-los aos pés da sua amada” [Unamuno, 2004: 94].
Nesse ato prometeico de criar um novo homem a partir da vontade de amar, ou como diz Ortega y Gasset nos seus Estudios sobre el amor, no seio do “enamoramiento”, Cervantes antecipa o Kant (1724-1804) da Fundamentação da metafísica dos costumes com a sua ética do dever, emergente das profundezas subjetivas da liberdade transcendental, e prenuncia o Schopenhauer (1788-1860) de O mundo como vontade e representação. Cervantes supera, de outro lado, as duas formas de amor moderno desenvolvidas ao redor do Doutor Fausto e de Don Juan. Efetivamente, o Doutor Fausto, na versão belamente perenizada por Goethe (1749-1832), é movido por uma paixão titânica que tudo dissolve e que, como frisa San Tiago Dantas, “é infiel, pois em meio às satisfações perfeitas do amor, no peito do homem titânico medra o desejo de libertar-se” [San Thiago Dantas, 1979: 78-79]. O herói cervantino supera, outrossim, o modelo do amor de Don Juan Tenório que, no sentir de Unamuno, ter-se-ia dedicado a seduzir com a mirada a sua dama, a fim de “possuí-la e saciar nela o seu apetite, não mais do que por amor a gozá-la e apregoá-lo; Dom Quixote, não. Dom Quixote não foi de galã a El Toboso a enamorá-la, mas saiu ao mundo a fim de conquistá-lo para ela” [Unamuno, 2004: 94].
Uma última observação: nessa doação incondicional à amada, Dom Quixote supera as vicissitudes do amor, liberta-se por completo dos seus limites. O herói cervantino conquista a plena liberdade. Nas palavras de San Tiago Dantas, “Assim como se liberta da constante e fatal sedução da aventura amorosa, Dom Quixote se liberta do ciúme. A entrega amorosa, sobretudo a entrega que ainda não conseguiu se satisfazer, isto é, ser recebida pela pessoa amada, assume um sentido unilateral que acaba por assemelhá-la ao Ser Divino” [San Thiago Dantas, 1979: 76].
Como Sancho estranhasse o fato de Dom Quixote ordenar a todos aqueles que libertava que fossem se prostrar diante da amada Dulcinea, o Cavalheiro da Triste Figura o repreendeu com as seguintes palavras: “Que néscio e que simplório que és! (…). Pois tu não vês que tudo isso redunda em sua maior exaltação? Porque deves saber, que nestas nossas usanças de cavalaria é honra grande ter uma dama bastantes cavalheiros andantes que a sirvam, sem que os pensamentos deles se abalancem a mais do que unicamente servi-la só por ser ela quem é, sem aguardarem outro prêmio de seus muitos e bons desejos senão o ela contentar-se de os aceitar por cavalheiros seus” [Cervantes, s/d, I, cap. XXXI: 200].
Essa incondicional dedicação do herói à amada foi interpretada pelo realista Sancho como uma entrega em mãos do Absoluto. Eis a forma em que o singelo escudeiro interpreta a louca paixão do seu senhor, aproximando-a da doação total de inspiração evangélica: “Essa coisa já eu ouvi em sermões: que se há-de amar a Deus por si só, sem que nos mova a isso esperança de glória, nem medo de castigo” [Cervantes, s/d, ibid.].
Entrega absoluta à amada que constitui a técnica do heroísmo quixotesco. “O herói, – frisa San Tiago Dantas – confia em Deus e em si mesmo, conserva a alma isenta de mescla e da satisfação de apetites, mas ainda lhe falta o meio de agir, a técnica. Essa técnica é, afinal, a essência do heroísmo quixotesco; podemos defini-la como o dom de si mesmo. Entregar-se a si mesmo, fazer do próprio ser um simples mediador da obra que tem diante dos olhos, desaparecer nessa obra, consumir-se e enterrar-se nela como a semente no solo, eis o savoir faire do cavalheiro, eis o que o Quixote nos ensina, do primeiro ao último dos seus instantes” [San Thiago Dantas, 1979: 60].
Não será essa lição de desprendimento heroico e de idealismo o exemplo de que mais precisamos, nós brasileiros, sumidas as nossas instituições nas baixas e putrefatas águas da corrupção generalizada e do clientelismo rasteiro, nesta hodierna etapa da cultura patrimonialista, que tudo coloca a serviço de interesses clânicos e mesquinhos? Hoje, como ontem, O Quixote representa – repitamos aqui as palavras de Ivan Tourgueneff (1818-1883) – “ante tudo a fé; a fé em algo eterno, imutável, na verdade, naquela verdade que reside fora do eu, que se não entrega facilmente, que quer ser cortejada e à qual nos sacrificamos, mas que acaba por se render à constância do serviço e à energia do sacrifício” [Tourgueneff, apud Astrana Marín, 1947: LXXVII].
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