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“Democracia, o Deus que Falhou” – porque não é um deus (primeira parte)

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Democracia, o Deus que Falhou – A economia e a política da monarquia, da democracia e da ordem natural, lançado em 2001 pelo libertário alemão, adepto da Escola Austríaca e pupilo de Murray Rothbard, Hans-Hermann Hoppe, é, sem qualquer discussão, um petardo de intrepidez. Folheá-lo é travar contato com um desafio a algumas das nossas mais arraigadas convicções e a algumas das bandeiras mais ardorosamente defendidas, quase que como senso comum, nas sociedades ocidentais modernas e contemporâneas. A começar, obviamente, pela protagonista do próprio título: a democracia.

Um desafio tão atrevido – sem qualquer demérito no atrevimento, capaz de suscitar oportunas e elaboradas reflexões, justamente por ser tão inusitado – não deve ser ignorado. O que Hoppe propõe é uma pungente revisão de toda a abordagem histórica mais convencional e solapar certas afirmações e valores considerados lugares-comuns. Para saber, depois de sua leitura, o que, aos olhos do leitor, fica efetivamente de pé e o que soçobra, não há outro caminho que não percorrer suas páginas.

As principais teses: a superioridade da monarquia e o anarcocapitalismo

Todo o livro de Hoppe pode ser resumido em duas teses principais. A primeira delas é a de que, ao contrário do que normalmente se pensa, a transição histórica das chamadas monarquias para as chamadas democracias foi um retrocesso e não um avanço social. É importante esclarecer desde o início, contrariando algumas possíveis interpretações apressadas, que, embora os defensores das monarquias parlamentares possam utilizar alguns argumentos de Hoppe em favor de sua bandeira, o autor não as engloba na acepção com que emprega o termo “monarquia”. Monarquia, para ele, é apenas a modalidade absolutista; as monarquias contemporâneas em geral, como a britânica, estariam enquadradas exatamente no que Hoppe chama de “democracia”.

Por que alguém consideraria que uma monarquia absoluta é superior a um regime liberal-democrático ou representativo, tal como aquele defendido, com corte mais ou menos (progressivamente menos) aristocrático, pela maioria das correntes liberais? A primeira lógica que Hoppe emprega para explicar sua posição é a do conceito econômico de preferência temporal, que ele toma da ciência da ação humana (Praxeologia) de Ludwig von Mises, liberal e mentor de seu mestre Rothbard, que se sustenta na concepção de que “o agente humano (homem) sempre visa a substituir um estado de coisas menos satisfatório por um estado de coisas mais satisfatório”. Diante disso, esse agente apenas trocará o uso de um determinado bem no presente pelo seu uso no futuro – em outras palavras, ele apenas poupará, adotará uma postura austera e equilibrada fiscalmente – “se esperar um aumento da sua quantidade de bens futuros”.

Diante disso, no regime monárquico (frise-se mais uma vez, absolutista), todo o governo é uma propriedade do rei e sua família, englobando-se nesse contexto os recursos que o compõem. “Os recursos confiscados são adicionados à propriedade privada do governante e são tratados como se fossem uma parte dessa propriedade”.  Ciente de que o que fizer repercutirá para si próprio, sua família e sua descendência, a maior probabilidade é de que o monarca seja mais ponderado no manejo desses recursos e mais poupador.

Da mesma forma, Hoppe acredita que o monarca tenderá a não impor um excesso de impostos, pois “é do seu interesse parasitar uma economia cada vez mais pujante, produtiva e próspera, porque isso também incrementaria – sempre e sem qualquer esforço de sua parte – as suas próprias riquezas e a sua própria propriedade”. Além disso, em razão das inúmeras restrições à entrada no governo, que engloba a família e a Corte, estimula-se “o desenvolvimento de uma nítida ‘consciência de classe’ nos governados, promovendo oposição e resistência a qualquer expansão do poder governamental de tributar”.

As democracias, que assumem extrema preponderância e caráter virtuoso aos olhos do público a partir da Primeira Guerra Mundial, sob a liderança crescente dos Estados Unidos – uma liderança que Hoppe enxerga de maneira bastante negativa, a ponto de ressaltar como as outras nações têm receio das terríveis intervenções americanas no mundo e como elas são perigosas e ruins -, ao contrário, são capitaneadas por governantes temporais e se sustentam no princípio da possibilidade de todos os indivíduos, independentemente de sua família ou origem, se tentarem fazer representar no aparato público ou até serem, eles mesmos, eleitos para ocupá-lo.

Em consequência da ampliação da presença social na máquina pública e do desinteresse dos governantes democráticos pelo futuro, porque o governo não é propriedade privada deles e de suas famílias, Hoppe sustenta, a partir da mesma teoria da preferência temporal, que as democracias, a um só tempo, produzem o aumento descontrolado e considerável da máquina do Estado e a irresponsabilidade fiscal e aumento de impostos por parte dos governantes. Sendo assim, ele conclui, “sob o ponto de vista daqueles que preferem menos exploração a mais exploração e que valorizam a visão de longo prazo (orientada para o futuro) e a responsabilidade individual mais do que a visão de curto prazo (orientada para o presente) e a irresponsabilidade individual, a transição histórica da monarquia para a democracia representa, na verdade, declínio civilizatório”. Nessa conclusão, ele acredita ter ido mais longe que o seu professor Rothbard e seu mestre Mises, que “tendiam a ver de forma positiva a transição da monarquia para a democracia”.

Isso não quer dizer que Hoppe defenda o retorno da monarquia absolutista. Hoppe faz essa afirmação porque deseja, antes de tudo, que os libertários se convençam de que a democracia é uma das piores criações da humanidade e de que os totalitarismos e autoritarismos do século XX não são uma perversão dela, mas uma consequência esperável do aumento do Estado que ela promove. Esse aumento e a irresponsabilidade dos governos democráticos estariam promovendo um ataque à propriedade privada sem efetiva equiparação com o que ocorria no passado, quando os interesses dos próprios mandatários dos reinos e a dinâmica das relações com os governados impunham, na prática, mais restrições do que aquelas que se tentam impor hoje através das Constituições.

Porém, mesmo que superior, a monarquia absolutista ainda se organizava em torno de um Estado, que se sustentava através de impostos. Para Hoppe, o imposto é sempre um roubo, violando sem consentimento a propriedade privada, um direito fundamental do indivíduo que se configura quando ele se apropria dos bens da natureza, tal como em certa tradição da filosofia liberal clássica, na linha lockeana. Os direitos de propriedade privada “precedem lógica e temporalmente qualquer governo”, sendo resultado de “atos de apropriação original, de produção e/ou de troca” e “se referem ao direito do proprietário de exercer jurisdição exclusiva sobre determinados recursos físicos”. O governo, qualquer que seja, sob o pretexto de garantir segurança e justiça, é definido por Hoppe como uma agência monopolista dos dois serviços que extorque os proprietários sob o pretexto de proteger seus direitos. A democracia é pior que a monarquia porque, empregando pretextos ilusoriamente virtuosos de “participação” e ensejo à expressão da “opinião pública” e dos “direitos”, aumenta essa extorsão, o que fica extremamente potencializado pela presença da demagogia em seu seio; porém, a monarquia, embora em grau menor, também é uma extorsão. Em nome dos direitos fundamentais, o que deveria ser feito, para Hoppe, é implantar um regime baseado no que ele chama de “ordem natural”, que nada mais é que o anarquismo de mercado ou anarcocapitalismo, sem qualquer diferença fundamental para o sistema já claramente definido pelo seu mentor Murray Rothbard em Por uma Nova Liberdade – O Manifesto Libertário (1973).

A sociedade ideal seria reduzida a porções pequenas de terra, onde os grupos mais homogêneos se aglutinariam, com total direito a se discriminarem mutuamente. Isso significa, na prática, que Hoppe vislumbra um mundo onde grupos com religiões, opiniões sociais e estilos de vida inteiramente diferentes não convivam, concentrando-se em comunidades próprias, regidas por regras estabelecidas de maneira inteiramente privada, podendo determinar quem entra e quem sai de seus “domínios” – por consequência, seria um mundo de imigração restrita (a ideia da imigração totalmente livre e sem limites, cara a alguns libertários, não agrada nosso autor). Um dos caminhos para se conquistar esse mundo dividido seriam as secessões, razão pela qual Hoppe é aprioristicamente favorável a qualquer movimento que separe populações de porções grandes de território sob gestão de algum Estado – em outras palavras, movimentos de independência e fracionamento.

A segurança nesse mundo anarquista de mercado seria feita por agências seguradoras, grandes e poderosas mundialmente, que também, através de negociações efetivadas quando segurados de diferentes agências, cada uma com regras e códigos distintos, entrassem em choque, levariam espontaneamente à formação de regras legais de aplicação geral para dirimir conflitos. Não haveria necessidade de nenhum Estado-nação, nem de diplomacia nos moldes hoje existentes ou órgãos internacionais como a ONU. Com efeito, ele considera positivo privar sociedades inteiras de “qualquer perversidade ou anormalidade imaginável” (numa lista em que, de maneira algo polêmica para as suscetibilidades contemporâneas, ele inclui o “homossexualismo”). (Continua na segunda parte)

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Lucas Berlanza

Lucas Berlanza

Jornalista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), colunista e presidente do Instituto Liberal, membro refundador da Sociedade Tocqueville, sócio honorário do Instituto Libercracia, fundador e ex-editor do site Boletim da Liberdade e autor, co-autor e/ou organizador de 10 livros.

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