Cultura patrimonialista: as seqüelas
RICARDO VÉLEZ-RODRÍGUEZ *
Qual é a raiz do nosso atraso como nação no mundo contemporâneo? Respondo sem titubeios: a cultura patrimonialista que impera no Brasil. Ela é a representação de uma realidade radical que nos condiciona desde que nascemos ao mundo como nação organizada: o Estado patrimonial. Este consiste, lembrando a caracterização feita por Max Weber, em organizar as instituições políticas como alargamento de uma autoridade patriarcal original, que expande a sua dominação doméstica sobre territórios, pessoas e coisas extrapatrimoniais, passando a administra-lo tudo, imaginando que fosse bem de família. A cultura patrimonialista consiste nesse pensar todas as instâncias sociais à maneira de patrimônio familiar.
Essa é, infelizmente, a nossa origem histórica, no seio da secular tradição política luso-brasileira. Uma prova atual desse caldo de cultura patrimonialista: a infeliz iniciativa em curso de vários astros da nossa música popular (Gilberto Gil, Chico Buarque, Roberto Carlos e Caetano Veloso) que praticamente instaura a execrável prática da censura. O motivo? Resguardar a privacidade em face de possíveis desvios entre os que escrevem biografias.
Os mencionados artistas pediram audiência à Presidente Dilma, com a finalidade de garantirem o apoio do governo na tentativa de endurecer a legislação, de forma a impedir que surjam biografias não autorizadas. Convenhamos que já os artigos 20 e 21 do Código Civil criam dificuldades para quem pretende se aventurar nesse gênero literário no Brasil. O artigo 20 estabelece que “salvo se autorizadas (…), a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas (…) se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais”.
À luz desse estatuto legal, qualquer biografia precisaria ser autorizada previamente pelo biografado ou pelos seus herdeiros. Em entrevista à revista Veja (edição 2344 de 23 de outubro de 2013), o procurador regional da República e professor de direito constitucional da UERJ, Daniel Sarmento, frisou a respeito:
“Isso é um caso muito claro de censura (…). O Código Civil dá todo o peso à privacidade e nenhum à liberdade de expressão. Nem na França, cuja lei protege mais a privacidade, há essa necessidade de autorização prévia”.
Ora, a fama obtida com o sucesso artístico, muitas vezes denunciando a censura que imperava nos anos de chumbo do regime militar, torna os beneficiários da mesma, proprietários do que se possa falar deles impedindo, na contramão do que acontece no mundo civilizado, a livre pesquisa e a divulgação das suas biografias. Isso é, em palavras claras, censura. A memória cultural e histórica passa a ser propriedade privada de uma casta que julga o que pode ser pesquisado e divulgado! A essa casta se somariam os políticos, se tivessem sucesso absurdos projetos de lei apresentados, em anos recentes, no Congresso.
Não é por outra razão que o professor Francis Fukuyama, na entrevista concedida à revista Veja (edição citada anteriormente), considera que o Brasil “ainda não possui as bases de uma sociedade avançada” e alerta para o fato de que “a manutenção da desigualdade pode levar ao radicalismo”. Para Fukuyama,
“O Estado é a expressão maior do poder, como o poder de aplicar as leis e de oferecer certos serviços exclusivos para a população. Um Estado moderno é aquele capaz de cumprir essas funções de maneira impessoal. Isso significa um Estado que trate todos os seus cidadãos de maneira indistinta, independentemente deles possuírem conexões com autoridades. O verdadeiro significado do Estado de direito é a limitação do poder”.
Ora, no Brasil do mensalão e de toda a carga negativa de crimes praticados pela cúpula que tomou conta do governo, isso simplesmente se tornou impossível. Os donos do poder podem tudo. A sociedade assiste de boca aberta a todos os desmandos e paga a conta.
Embora os cientistas políticos americanos relutem em utilizar as categorias weberianas, que muito poderiam esclarecer tanto no relativo ao “retardamento cultural” dos países latino-americanos, quanto no que tange à crise de desgaste das suas burocracias nos atuais momentos, o professor Fukuyama se aproxima muito das análises feitas pelos nossos sociólogos weberianos acerca da causa dos nossos males, o patrimonialismo. O scholar americano chama a atenção para a pesada herança ibérica que instaurou sociedades desiguais. Com a palavra o professor Fukuyama:
“(…) Os espanhóis e os portugueses implantaram na região suas instituições pré-modernas. Além disso, não foram sociedades compostas inteiramente de colonos europeus, mas sobrepostas, de maneira desigual, a uma vasta população de indígenas, tratados como escravos. No Brasil, assim como no Caribe, a economia foi moldada ao redor do açúcar, uma agricultura baseada em grandes propriedades e mão de obra escrava. Trata-se de um modelo cujo resultado é a desigualdade. Não havia os incentivos para constituir uma burocracia administrativa de qualidade nas colônias. Em razão desse estágio inicial de profunda desigualdade, as instituições foram se moldando para servir às elites. Nunca houve o princípio de oferecer educação de qualidade a toda a população. Desde que a elite estivesse atendida, bastava”.
Nem tanto ao mar nem tanto à terra. Houve, sim, no Brasil, como lembram Antônio Paim e Simon Schwartzman, projetos modernizadores que, como clarões de luz, iluminaram o nosso sombrio panorama. A modernização do nosso ciclo açucareiro promovida pelo conde de Olivares, no século XVII, com a cooptação dos capitais judaicos, foi um desses momentos. O ciclo pombalino foi outro. O Segundo Reinado constituiu outra manifestação modernizadora. O Estado getuliano, no contexto autoritário herdado do Castilhismo, pensou o Brasil industrializado e deitou as bases legais para que acontecesse o surgimento da nossa industrialização. Os “cinquenta anos em cinco” de Juscelino foram um clarão modernizador e democrático. O ciclo militar empenhou-se em modernizar o nosso parque industrial, solucionar o problema da integração nacional, construir estradas e portos, possibilitar as comunicações telefônicas modernas, etc. Tudo isso, claro, no contexto de um estatismo que fez passar as empresas estatais de 36, em 1964, para perto de 400, no final do período.
Mas justamente nesse viés de estatismo é que se perdeu novamente, no momento republicano, a nossa vez de contarmos com um continuado projeto nacional modernizador e aberto à sociedade, fazendo pesados investimentos em educação básica. Hoje pagamos a conta pelos defeitos dos nossos ciclos modernizadores, autoritários na sua maioria e que, pelas suas deficiências, propiciaram as nossas aceleradas intermitentes rumo à modernidade, os conhecidos “voos de galinha”.
Teremos perdido o bonde da história? Espero que não, embora os governos lulopetistas tenham feito o possível para fazer emergir o messianismo político e o neopopulismo como respostas aos complexos reptos do mundo globalizado. O imperativo categórico da lulopetralhada no poder consiste em enxergar o Brasil como simples prolongamento do PT e de pensar as coisas, exclusivamente, do ângulo da perpetuação da hegemonia partidária.
Espero que os nossos Partidos da oposição reajam e apresentem plataformas diferentes do surrado patotismo e da retórica esquerdizante, que já vem cansando muitos setores da nossa sociedade.
* PROFESSOR UNIVERSITÁRIO E PESQUISADOR
N.E.: Publicado originalmente no blog pensadordelamancha