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“Castilhismo: uma filosofia da República”: um grande estudo de Ricardo Vélez

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Referência em matéria de pensamento brasileiro, o professor Ricardo Vélez Rodríguez não se destaca somente por seus estudos sobre o liberalismo nacional e a influência sobre ele exercida pelos liberais doutrinários franceses. Uma de suas obras mais importantes aborda aquela que provavelmente é a forma doutrinária de autoritarismo mais importante dos primeiros tempos da República.

Em Castilhismo: uma filosofia da República, Vélez desnuda a forma de viver e entender a política, derivada do Positivismo de Augusto Comte, nascida no Rio Grande do Sul em torno da figura do militante republicano e governador estadual Júlio de Castilhos (1860-1903). O livro está centrado em avaliar os aspectos histórico-práticos e teóricos do Castilhismo a partir principalmente de quatro de seus maiores expoentes: além do próprio Castilhos, o poderoso senador Pinheiro Machado (1851-1915), o governador gaúcho Borges de Medeiros (1863-1961) e o ditador Getúlio Vargas (1882-1954).

O primeiro capítulo traz a biografia básica dos quatro personagens e o segundo procura traçar os aspectos fundamentais do pensamento castilhista. Já o terceiro detalha as críticas liberais formuladas contra o Castilhismo, em especial pelo liberal monarquista Gaspar Silveira Martins (1835-1901) e pelo liberal republicano Assis Brasil (1857-1938), protagonistas, respectivamente, das Revoluções Federalistas de 1893 e 1923, conflitos sangrentos em que os liberais enfrentaram os governos castilhistas de Castilhos e Borges de Medeiros. Por fim, Vélez faz uma breve apreciação da herança deixada pelo Castilhismo e das consequências de sua emergência.

O professor procura demonstrar que o Castilhismo, entre todas as demais formas de autoritarismo que despontaram no Brasil e tiveram seus defensores e entusiastas – o “jacobinismo” nacionalista da República Velha, o florianismo, o Integralismo, o marxismo-leninismo, os simpatizantes em geral do totalitarismo e do regime corporativista (alguns inclusive religiosos antiliberais), os autoritarismos teóricos de autores e ensaístas que visavam combater o que julgavam o “insolidarismo” da sociedade brasileira (como Oliveira Viana, 1883-1951) -, foi o que chegou mais longe em seus intentos e conseguiu efetivamente deixar um legado poderoso na cultura política do país. Trata-se de uma contribuição lamentável do Rio Grande do Sul à nossa trajetória, produto da apropriação de elementos da filosofia positivista de Augusto Comte (1798-1857) pela formação cultural gaúcha, como sociedade de fronteira e presença militar para defesa do território, propícia ao apreço pelo “homem forte”, por uma visão muito pessoal de liderança.

O Positivismo de Comte, uma filosofia francesa que deu origem até a uma religião materialista, a da Igreja Positivista, e inspirou o lema “Ordem e Progresso” na bandeira brasileira, foi extremamente influente sobre os militares brasileiros, sobretudo sob a égide de Benjamin Constant (1836-1891), protagonista do golpe que proclamou a República. Essa doutrina estimula a convicção numa evolução linear da humanidade que superaria progressivamente elementos teológicos e metafísicos até adquirir um saber “positivo”, experimentado, aplicável a todos os aspectos e ramos do conhecimento.

A “ciência positiva” também deveria ser aplicada ao universo social e político; portanto, o Positivismo, embora Comte não propusesse abertamente a censura ou a violência, estimulava uma percepção negativa da atividade legislativa ou parlamentar, de vez que, tal como pregava o teórico português da representação, Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846) – também muito elogiado pelo mestre de Vélez, Antonio Paim (1927) -, a representação no sistema parlamentar representativo é uma representação de interesses, que precisam negociar entre si. Os positivistas e os castilhistas, que eram republicanos gaúchos que se inspiraram no pensamento positivista, ambicionavam a atuação em nome da ordem coletiva e do bem público, que não poderia provir dessa negociação.

“Enquanto para o pensamento liberal o bem público resultava da preservação dos interesses dos indivíduos que abrangiam basicamente a propriedade privada e a liberdade de intercâmbio, bem como as chamadas liberdades civis, para Castilhos o bem público ultrapassa os limites dos interesses materiais dos indivíduos para tornar-se impessoal e espiritual. O bem público se dá na sociedade moralizada por um Estado forte, que impõe o desinteresse individual em benefício do bem-estar da coletividade. É claro que este bem-estar traduziu-se, a nível do Rio Grande do Sul, no fortalecimento do Estado sobre os indivíduos, com o desenvolvimento correspondente de uma sólida burocracia oficial”, definiu Vélez.

Entretanto, o professor reconhece que os castilhistas não eram positivistas ortodoxos. Ao contrário de Comte, que aceitava uma assembleia de caráter corporativo, representando certos grupos profissionais, Castilhos e seu grupo político sustentavam uma assembleia formada por representantes dos círculos eleitorais do estado, todos oriundos do partido único, o Partido Republicano Rio-Grandense de Castilhos. Enquanto Comte pretendia que sua sociedade ideal baseada na “ciência positiva” fosse alcançada pela renovação educacional e espiritual antes da renovação da organização política, os castilhistas preferiam renovar primeiro a política para a partir dela inspirar as transformações da sociedade. Ao mesmo tempo, sem que Comte o tenha sugerido, os castilhistas buscavam esse objetivo através do emprego de instrumentos do Estado para censurar e perseguir a oposição.

A Constituição do Rio Grande do Sul estabelecida ao final do século XIX, logo após a queda da monarquia, é o documento que materializa o poderio castilhista. Trata-se de um texto ditatorial, que dava aos governadores castilhistas um poder imenso para formular as leis, consegui-las aprovadas e manipular as eleições. O Rio Grande do Sul era uma autêntica ditadura sustentada na teoria de que a atividade legislativa defendida pelos liberais era imoral e era preciso deixar o poder nas mãos de um grande e nobre líder, de puras intenções e detentor da reta ciência positiva para reformar a sociedade através do domínio político.

O professor Vélez reconhece aos dois governadores castilhistas e ao senador Pinheiro Machado uma notória probidade e respeito aos recursos públicos, virtudes admitidas por adversários como o liberal Rui Barbosa (1849-1923), mas demonstra o caráter autoritário, antiliberal e anti-representativo de sua filosofia. Toda vez que os brasileiros advogam por regimes que desprezem o Legislativo e procurem conferir mais poder às mãos do “líder nobre”, do “homem de bem”, para fazer um governo autocrático e plebiscitário, estão fazendo eco à tradição castilhista que, aliada ao impacto geral da filosofia positivista, deixou marcas profundas na cultura política brasileira.

O maior “exportador” do Castilhismo do Sul para todo o país, porém, foi Getúlio Vargas. Vélez o mostra, ainda como senador, como um dos principais defensores das políticas castilhistas no Parlamento federal, procurando mostrar aos pares que o quadrado é redondo, ou seja, que Castilhos e Borges de Medeiros não eram tiranos. Um detalhe interessante, que mostra o caráter escorregadio e camaleônico de Vargas, é que, assim como os outros castilhistas geralmente faziam, como a oligarquia gaúcha não se equiparava ao poder das oligarquias paulista e mineira, ele e os demais castilhistas faziam uma defesa vibrante da descentralização orçamentária e jurídica, em suma, da busca de um sistema quase confederativo – o livro reproduz discursos de Vargas que muitos pensariam facilmente serem discursos de um liberal -, para que o governo estadual gaúcho se fortalecesse e pudesse consolidar sua autoridade e força na região. Vargas chegou a defender mais fortalecimento dos estados e enfraquecimento da União do que Rui Barbosa; entretanto, quando assumiu, através da Revolução de 30, a presidência da República, fez o que os castilhistas faziam quando chegavam ao poder no Rio Grande do Sul: centralização, a mais violenta da História, e ditadura.

O varguismo do Estado Novo não era puro Castilhismo; Vargas absorveu características do pensamento de Oliveira Viana, do jurista autoritário Francisco Campos, entre outras fontes, assemelhando-se ao Justicialismo peronista, arquétipo dos populismos latino-americanos. No entanto, a substância castilhista era o cerne de sua atuação e de sua formação autoritária, definindo aspectos-chave da prática varguista, como a repulsa aos particularismos e privatismos – razão por que, se havia corporativismo, era bastante tutelado, porque até uma divisão muito grande de sindicatos e corporações seria incentivar o privatismo na cabeça varguista – e a “solução orgânica da questão social, mediante a incorporação do trabalhador ao Estado na nova legislação”, de “nítida inspiração saint-simoniana e comtiana”, em referência ao socialista utópico Saint-Simon (1760-1825) e seu pupilo rebelde Augusto Comte.

O professor, usando as definições de Karl Mannheim (1893-1947) e baseando-se no que os próprios castilhistas diziam de si mesmos, definiu no livro o Castilhismo como uma doutrina autoritária de caráter conservador, porque associou em seu texto o conservadorismo à defesa da ordem combinada com certa nostalgia pelo período pré-moderno, o que se verifica no Castilhismo em virtude de sua rejeição ao caráter individualista de negociação de interesses da representação na modernidade liberal.

Nesse ponto, destoo um pouco das palavras do professor, não tanto por conta de sua definição de conservadorismo neste livro, que considero uma convenção, podendo ser levantas outras tantas que a contrariariam, como a de João Pereira Coutinho – que preferiria tratar dessa definição como aplicável ao “reacionarismo”, que ele distingue do conservadorismo. Meu maior problema é com a citação a Edmund Burke (1727-1797) entre autores “reacionários” franceses, como se ele se equiparasse a eles em sua rejeição da razão e tivesse qualquer semelhança com a ideia de uma obra moralizadora de um Estado autocrático propugnada pelos castilhistas. Penso que vale ressaltar a dimensão mais liberal de seu pensamento, destacada até por Friedrich Hayek (1899-1992), ícone da Escola Austríaca.

De qualquer modo, desconheço qualquer fonte melhor e mais completa para tratar do assunto. Os defensores da liberdade precisam conhecer melhor seus inimigos – e se o Castilhismo não é mais um partido ou corpo político organizado, seu império sobre os rumos do Brasil ainda não está completamente perdido. A obra de Vélez permanece uma referência importantíssima para apreciar os discursos autoritários e de menosprezo ao papel do Parlamento e das liberdades civis que ainda possam surgir, venham de onde vierem.

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Lucas Berlanza

Lucas Berlanza

Jornalista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), colunista e presidente do Instituto Liberal, membro refundador da Sociedade Tocqueville, sócio honorário do Instituto Libercracia, fundador e ex-editor do site Boletim da Liberdade e autor, co-autor e/ou organizador de 10 livros.

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