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As palavras condenadas pela Corte Eleitoral

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Corria o ano de 1559. Com a reforma protestante e seus questionamentos em torno de dogmas da fé católica, e com a invenção da imprensa, que acelerou a circulação de ideias dos mais variados naipes, a Santa Sé, vendo seu poderio ameaçado por dúvidas filosóficas e teológicas até então inimagináveis, houve por bem “calar” vozes julgadas perigosas. Para tanto, o papa Paulo IV editou o Índex de Livros Proibidos, com uma lista de obras consideradas heréticas ou obscenas, rol que sofreu a incorporação e a retirada de títulos durante os quatro séculos de sua vigência, até sua extinção definitiva pelo Vaticano, já na segunda metade do século XX.

E eis que retornamos à era seiscentista, por obra e graça não de uma autoridade religiosa, mas de um colegiado de togados, o TSE, que deliberou varrer do nosso idioma um exército de palavras tidas como racistas e, via de consequência, supostamente ofensivas a pessoas negras[1]. Curioso ver essa corte, que insiste em exercer jurisdição bem depois do encerramento do segundo turno das últimas eleições, atropelar descaradamente a Constituição e o Código Eleitoral para interferir em quase todas as esferas da vida privada, definindo quais mídias podemos ou não assistir, quais são os conteúdos “democráticos” ou, ao contrário, “golpistas”, quais perfis em redes sociais podem ou não permanecer de pé, e, agora, os vocábulos que podemos ou não proferir. Em tons que variam entre o patético e o grotesco, o tribunal, que deixa impunes e elegíveis ex-condenados por crimes gravíssimos, direciona sua ira contra quarenta singelas palavrinhas e expressões, criadas por sucessivas gerações falantes do português do Brasil, inclusive à luz das mais diversas circunstâncias históricas, para tratá-las como inimigas públicas. Quase como o Judas malhado nos Sábados de Aleluia, ou o bode expiatório, que, na tradição hebraica, carrega os pecados do mundo, merecendo, portanto, o banimento e o abandono no deserto à própria sorte.

Para evitar um alongamento cansativo no texto, vou me abster de comentar as palavras banidas uma a uma, pinçando apenas algumas que me pareçam ilustrar, de modo mais evidente, a aberração com a qual convivemos. E vocês, termos não explicitados aqui, não se sintam enciumados, pois todos vocês, vocábulos irmanados tanto no berço da livre escolha de sociedades de brasileiros quanto na trágica decapitação decretada pelo autoritarismo, permanecerão para sempre em nossa lembrança, como parcela significativa da nossa identidade nacional, ceifada por algumas canetas arbitrárias.

Encabeçando a lista das expurgadas, consta a expressão “a coisa tá preta”, que, longe do que pretendem os hipócritas de plantão, se relaciona apenas à ausência de luz. Quando não se depara com um caminho iluminado, mas com sombras que não permitem a identificação de possíveis riscos pela frente, a alma humana costuma ser invadida por insegurança e angústia. Ou será que o TSE proibirá também o atávico medo do escuro, como se se tratasse de um pavor racista de encontrar negros?

Quanto a “boçal”, surgida em referência a africanos escravizados que ainda não haviam aprendido o nosso idioma, e que se tornou sinônimo de “tosco, ignorante”, trata-se de um ótimo exemplo de palavra cujo significado acompanhou os avanços sociais. Nascido, sim, no passado escravista para denotar a forma mais crassa de ignorância, que é o desconhecimento da língua adotada no país, o termo se manteve no espectro semântico da ausência de conhecimentos formais e, em decorrência disso, de rudeza no trato social, para designar seres humanos livres que exibam essas características. Afinal, vê-se no noticiário e nas nossas interações a frequente classificação de pessoas brancas, e até afortunadas, como “boçais”, o que nos permite afirmar que, ao longo do tempo, a palavra se dissociou dos aspectos étnicos e econômicos.

Da mesma forma, “criado-mudo” se origina da escravidão, fenômeno que, no entanto, não se iniciou com a sujeição de africanos, sendo, antes, tão antigo quanto a própria História humana. De fato, a expressão aludia a servos encarregados de segurarem os pertences de seus senhores, sem direito à palavra, para não perturbarem o sossego dos donos. Essa foi a primeira função da figura bíblica José do Egito, branco e hebreu, como escravo na casa do cortesão Petepré, onde, de joelhos, sem falar ou olhar para os lados, devia segurar uma bandeja com iguarias a serem servidas aos pais de seu senhor. Com o desenvolvimento da movelaria e o incremento do capitalismo, tornou-se bem mais atrativo comprar móveis para neles depositar objetos pessoais, liberando o criado para atividades mais produtivas. Longe de incorporar laivos racistas, o uso de “criado mudo” como sinônimo para “mesa de cabeceira” só reforça a lembrança de que, graças aos avanços econômicos e civilizacionais, a tarefa, antes atribuída a um semelhante sob servidão, agora é desempenhada com vantagem por um objeto, enquanto todos nós, humanos, podemos desfrutar das liberdades.

Já “esclarecer” não possui qualquer relação com nosso passado escravista, ou com o teor de melanina na pele humana. O verbo significa apenas “tornar claro” o que era obscuro e nebuloso, e possui correspondentes dotados das mesmíssimas raiz e conotação em vários outros idiomas, latinos ou não. Linha idêntica de raciocínio se aplica a “denegrir”, que, longe do que pretendem nossos poderosos boçais, não alude a etnias, e sim ao ato de manchar ou macular algo, somente passível de ser praticado, por razões óbvias, em tintas escuras.

Igualmente dissociadas de aspectos étnicos estão expressões como “lista negra” ou “mercado negro”, onde o adjetivo “negra(o)”, por nelas constar como atributo de substantivos abstratos, desprovidos de representação corpórea, jamais poderia ser interpretado em sentido literal, ou seja, como algo exibindo a cor preta. Aqui, sua função consiste em conferir à “lista” e ao “mercado” respectivamente uma conotação de práticas tramadas na escuridão (ausência de luz), na clandestinidade, e, por isso, fadadas a não serem divulgadas ao público.

Já o banimento de palavras como “mulata” e “cor de pele”, alusivas a fenótipos raciais, impede a descrição de características físicas, reduzindo-nos a uma cegueira compulsória sobre diferentes tons de pele, espessura labial ou textura capilar que, em si, nada têm de pejorativo. O mais contraditório é que os entusiastas desse tipo de proibição costumam ser os mesmos a aplaudirem de pé a estipulação de cotas raciais, estas sim atribuídas com base em detalhados questionários sobre tipos étnicos, dignos de verdadeiros “tribunais raciais”. É mesmo paradoxal a natureza humana, sobretudo daqueles que cultivam o vício de se sentirem mais puros que seus semelhantes…

Por fim, ainda mais estarrecedora é a inclusão, no expurgo, de “escravo”, cuja origem etimológica, aliás, em nada diz respeito à negritude, pois a palavra remonta ao vocábulo latino “sclavus”, alusivo a povos do Leste Europeu escravizados na Roma antiga. Todos bem brancos, loirinhos e de olhos azuis. E, ainda que assim não fosse, como narrar a triste História da escravidão, no Brasil e no mundo, sem o emprego do termo destinado a significar o ser humano sujeito à pior das barbáries, que é a privação completa das liberdades? Será que o TSE pretende nos forçar a substituir o vocábulo banido por “peça”, como ocorreu no período militar, ou talvez por “alma”, como na Rússia czarista? Será que nossos togados terão a ousadia de determinar uma revisão de obras vastas e portentosas, como as de Machado de Assis, Joaquim Nabuco e tantos outros, para delas excluírem a palavra que não ousa dizer seu nome?

Somente atingimos a categoria de animais pensantes por sermos falantes, capazes de manifestar ideias ordenadas. E somente o fazemos mediante palavras, as unidades básicas da linguagem verbal, símbolos que convencionamos, desde a antiguidade, para designarem condutas (verbo), aqueles que as praticam (nomes e pronomes), a forma como o fazem (advérbios), assim como os objetos concretos ou abstratos com os quais interagimos (substantivos) e as características que a estes atribuímos (adjetivos). Somos nós, e ninguém além de nós, indivíduos inseridos em coletividades humanas, que escolhemos os elementos de toda essa complexa rede de comunicação, seja inventando palavras novas, seja incorporando ou eliminando significados das mesmas palavras, seja até aposentando algumas, que caem em desuso, por não mais atenderem às expectativas do que pretendemos comunicar.

No momento em que autoridades togadas, extrapolando por completo suas funções constitucionais, nos proíbem de usar esta ou aquela palavra, também nos impedem de pensar neste ou naquele conceito tradicionalmente ligado ao vocábulo em questão, ou até mesmo em outras conotações que possamos vir a criar para ressignificá-lo. Não satisfeita em censurar pessoas ou mídias específicas, nossa cúpula judiciária, ao determinar um inacreditável banimento vocabular, amordaça uma sociedade inteira, e até as sociedades futuras, ditando o que não podemos pensar, muito menos exprimir. Entre nós, a novilíngua orwelliana já deixou de ser distopia há tempos.

[1] https://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/tse-cria-lista-de-palavras-a-serem-banidas-do-vocabulario-por-suposto-racismo/

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Judiciário em Foco

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Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.

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