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Afinal de contas, o que é o comunismo? (I)

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Karl Marx
Karl Marx

De acordo com o Materialismo Histórico de Marx, a História passa inexoravelmente por seis etapas: (1) comunismo primitivo, (2) sociedade antiga, (3) feudalismo, (4) capitalismo, (5) socialismo e (6) comunismo pós-socialista.

Como vemos, estamos diante de uma visão determinista e utópica da História. Determinista, porque essas etapas estão pré-determinadas antes do desenrolar da própria História, e sendo assim tanto o passado foi o que tinha que ser, como o futuro será o que terá que ser.

Não há nenhum lugar para a contingência no pensamento histórico de Marx, porque os homens fazem a História, mas não a fazem como gostariam de fazer, porém de acordo com o que tem que ser.

Marx viveu no século XIX, numa sociedade capitalista, como ele mesmo chamou, mas que devia ser corretamente chamada de uma sociedade de mercado aberto.

O comunismo primitivo, a sociedade antiga e o feudalismo foram, para ele, formas de sociedade passadas, o capitalismo era a forma presente, e socialismo e comunismo simplesmente não existiam ainda, mas teriam que existir necessariamente, de acordo com seu pensamento.

Por isso mesmo, dizemos que ele tinha uma visão determinista em que o passado, o presente e o futuro seriam como tinham que ser o que são, de acordo com o Materialismo Histórico.

De acordo ainda com Marx, cada forma de sociedade abrigaria dentro de si mesma os germes da sua destruição. Desse modo, o comunismo primitivo, em que todos eram livres, gerou a sociedade antiga que era escravista com uma minoria de homens livres. A sociedade ateniense clássica é um exemplo.

A sociedade antiga, a medieval, e esta gerou o feudalismo, uma forma de sociedade em que apenas alguns eram livres, mas a maioria formada de camponeses vivia sob um regime de servidão. E do feudalismo surgiu o capitalismo pela grande acumulação de capital.

A visão marxista voltada para o passado é determinista, mas não utópica. Mas a que está voltada para futuro além de ser determinista é também utópica.

A sociedade socialista existiu de fato – embora fosse na realidade um capitalismo de Estado -, mas a comunista nunca existiu, ao menos até hoje. Por mais que desejemos, não podemos dizer que nunca existirá, porque não dispomos de uma bola de cristal.

Para Marx, quando a sociedade socialista estivesse consolidada, ela se transformaria numa sociedade comunista, uma espécie de paraíso na terra em que todos viveriam bem e gozariam de mais tempo de lazer e para se dedicar ao conhecimento.

Mas como ela se transformaria a partir da ditadura do proletariado – que Bakunin chamou sarcasticamente de ditadura sobre o proletariado –  em uma forma de governo que daria início à sociedade socialista?

E como ela se transformaria numa sociedade comunista? Seus governantes abririam mão graciosamente do poder por ter consciência de que se tratava de um mundo melhor? M’engana qu’eu gosto!

Seria possível esse anarquismo, uma sociedade sem classes e sem Estado, em plena Era Industrial decorrente da Revolução Industrial?! Ou tal coisa só se mostraria possível no comunismo primitivo?

Na realidade, estamos aventando uma hipótese, porque esta é uma das lacunas do pensamento de Marx, que falou muito sobre as sociedades anteriores a em que ele viveu, mas muito pouco sobre as que viriam depois: a sociedade socialista e a comunista.

O comunismo primitivo caracterizava sociedades pré-históricas em que o homem vivia da caça e da pesca, depois da agricultura e da pecuária, mas não existiam Estado nem classes sociais.

Esta é uma visão hipotética, porque até hoje contamos com escassos dados sobre a vida no mundo pré-histórico, mas é bastante plausível, tanto que muitos historiadores não-marxistas concordam com ela.

Mas que dizer da sociedade comunista pós-socialista? Marx disse muito pouco sobre ela. Limitou-se a dizer que era uma sociedade sem Estado e sem classes sociais. Mas o comunismo primitivo e o pós-socialista, apesar de se identificarem nesses dois aspectos, não eram a mesma coisa.

Hegel
Hegel

Para entender isso, temos que retroceder ao grande mestre de Marx: Hegel. De acordo com a visão hegeliana, o Espírito Absoluto – não me perguntem quem é este ser, porque eu não saberia dizer – aliena-se no mundo, mas através de várias etapas, dá-se o autorreconhecimento do Espírito Absoluto. É como um novelo de lã que tivesse se desfiado e que depois tivesse voltado à sua forma original.

Tudo começa e termina com o Espírito Absoluto. Ele é o verdadeiro agente da História. Os homens fazem a história, mas não a fazem como gostariam, porém de acordo com os desígnios do Espírito Absoluto.

A isto Hegel chamou de astúcia da História, algo lamentavelmente confundido com a famosa metáfora de Adam Smith: a mão invisível. Infelizmente, não podemos desfazer esta confusão sem entrar numa grande digressão.

Marx substituiu a visão determinista e circular da História sustentada por Hegel, por sua visão igualmente determinista e circular, com a diferença de que o agente da História não é o inefável Espírito Absoluto, porém as classes sociais. “A História é a História das lutas de classe”, disse Marx.

Mas as classes sociais não fazem a História como gostariam, mas sim conforme determinado pelo Materialismo Histórico na etapa em questão.

O fim do capitalismo, para Marx, ocorreria por causa das suas “contradições” internas, mas seria necessário que tal coisa ocorresse numa sociedade de capitalismo avançado, como eram na época de Marx a Inglaterra e/ou a Alemanha.

No entanto, a revolução comunista só ocorreu num país semiagrário, como a Rússia czarista de 1917 e as outras que se seguiram: a revolução chinesa, a da Coréia do Norte, a cubana, ocorreram todas em países semiagrários, só para contrariar o Materialismo Histórico de Marx.

Na realidade, há uma grande incongruência no pensamento de Marx: de um lado, nada podemos fazer para modificar as etapas da História, segundo o materialismo histórico. Mas de outro lado, Marx sempre incentivou o caráter modernizante da práxis revolucionária. Se o materialismo histórico está correto, de nada adianta o ativismo político.

Nunca houve revolução comunista num país de capitalismo avançado, o que mostra que Proudhon estava mesmo certo quando disse que o marxismo era a filosofia da miséria.

Para Hegel, a História começa e termina no Espírito Absoluto, mas para Marx ela começa e termina no comunismo.

Para ambos, a História se desenrola mediante um mecanismo trifásico: a tese, a antítese e a síntese. A tese é uma afirmação, a antítese uma negação e a síntese uma negação da negação, como um enriquecimento da afirmação inicial.

De acordo com a lógica matemática ou simbólica, a negação da negação equivale à afirmação, em símbolos: ~~p=p. Por exemplo: dizer que “não é verdade que não é verdade que a Lua é o satélite natural da Terra” é o mesmo que dizer: “A lua é o satélite natural da Terra”. Trata-se de maneiras diferentes de dizer o mesmo.

Mas para a “lógica” dialética de Hegel e Marx, a síntese, ou a negação da negação, não é o mesmo que a afirmação. Hegel serviu-se de uma ambiguidade da língua alemã. O substantivo abstrato Aufhebung, derivado do verbo aufheben quer dizer: transformação, superação e manutenção.

Desse modo, a negação da negação é uma Aufhebung em relação à tese. Ao mesmo tempo em que ela a transforma, ela a supera e a mantém. Desse modo, o comunismo pós-socialista, embora mantenha dois traços do comunismo primitivo, a saber: uma sociedade sem classes e sem Estado, ele o transforma e o supera.

Mas como? Esta é outra lacuna do pensamento de Marx. É demasiadamente óbvio dizer que no comunismo pós-socialista o homem não viverá da caça e da pesca. Mas como ele viverá sem Estado e classes sociais?

Robert Nozick, em Anarquia, Estado e Utopia, fez um brilhante exercício hipotético: Primeiro, ele imagina o que aconteceria se o Estado fosse suprimido.

Depois, ele mostra consequências muito semelhantes às horríveis características do estado natural de Hobbes. E conclui que, se o Estado fosse suprimido, ele teria que ser reinventado, dando a entender que o Estado é um mal, mas um mal necessário.

Concordamos inteiramente com Nozick e discordamos totalmente de Hegel e Marx. A sociedade comunista é uma utopia como a mítica Idade do Ouro.

Por sua vez, a sociedade socialista não é uma utopia. Ela existiu de fato, ainda que sob a forma de capitalismo de Estado, e ainda existe sob a forma totalitária em Cuba e na Coréia do Norte, o Museu Ocidental e o Museu Oriental do socialismo marxista.

Marx era no fundo um anarquista hebraico-cristão, apesar de sua afirmação de que “a religião é o ópio do povo” (entenda-se “do povão”).

Se sua concepção trifásica da História, continha uma tese, uma antítese e uma síntese, a concepção bíblica da História também é trifásica: o Paraíso, o Paraíso Perdido e o Paraíso Reconquistado – como mostram os dois grandes poemas épicos de John Milton: Paradise Lost e Paradise Regained.

Tudo começa no melhor dos mundos possíveis e termina no melhor dos mundos possíveis, apesar das contrariedades das etapas intermediárias.

Se a religião era o ópio do povo, Marx era um viciado irrecuperável e não sabia.

Isso não é algo excepcional na História das Ideias. Vejam o caso de Augusto Comte. Não havia nenhum lugar para Deus e para a religião no pensamento positivista de Comte. Os estágios religioso e metafísico tinham sido superados pelo estágio positivo em que a ciência era dominante.

Auguste Comte
Auguste Comte

De repente, Comte tem uma crise mística e cria a Religião da Humanidade, com o Templo da Humanidade e os dias dos santos substituídos pelos dias dos benfeitores da humanidade: Darwin, Laplace, Pasteur, etc.

Antes dele, Robespierre também abolira a crença em Deus e a substituíra pela crença no “Ser Supremo”. Qual a diferença?  Seus templos eram a natureza pura e sábia, e seu sumo sacerdote o próprio líder dos jacobinos.

A sub-reptícia influência da religião mostra-se claramente nos pensamentos de Hegel, Marx e Comte. Freud diria que são claramente detectáveis neles mecanismos de substituição, mediante os quais noções de caráter religioso mantêm uma forma religiosa, mas adquirem um conteúdo profano.

Quando, por curiosidade, visitei o Templo da Humanidade, situado na Rua Benjamin Constant (Rio de Janeiro, RJ) deparei à porta com uma estátua de uma mulher amamentando uma criança. A Virgem Maria amamentando o menino Jesus? Não, a Humanidade amamentando seus filhos…

Hoje existem três Templos da Humanidade: um em Paris, outro no Rio e outro ainda em Porto Alegre. Só não sei se ainda existem sacerdotes e crentes. Em compensação. Há milhares de acólitos fervorosos da utopia marxista.

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Mario Guerreiro

Mario Guerreiro

Doutor em Filosofia pela UFRJ. Professor do Depto. de Filosofia da UFRJ. Membro Fundador da Sociedade Brasileira de Análise Filosófica. Membro Fundador da Sociedade de Economia Personalista. Membro do Instituto Liberal do Rio de Janeiro e da Sociedade de Estudos Filosóficos e Interdisciplinares da UniverCidade.

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