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A suprema “lacração” eleitoreira

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No país onde a morosidade do Judiciário é reconhecida como fator primordial para o chamado “custo Brasil”, alguns poucos conflitos parecem escolhidos a dedo para tramitarem com uma agilidade de fazer inveja a nações mais avançadas. Foi o que observamos em relação a uma medida proposta pelo Partido dos Trabalhadores (PT) e siglas aliadas no último dia 12 de maio, perante o Supremo Tribunal Federal (STF), e em cujos autos a ministra relatora já havia proferido um primeiro despacho no dia 30 do mesmo mês.

O caso diz respeito a uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), apresentada por legendas de esquerda para exigirem o reconhecimento de um genocídio contra negros supostamente em curso entre nós, assim como a implementação de uma série de políticas públicas descritas no “Plano Nacional de Enfrentamento ao Racismo Institucional e à Política de Morte à População Negra[1]. Para descortinar o manto de hipocrisia em torno desse litígio, é imperioso esclarecer alguns conceitos muito distorcidos pela opinião pública com o propósito de levar você, caro leitor, a acreditar em realidades paralelas e a desviar o olhar do grave cenário reiteradamente discutido neste espaço: o uso do aparato judiciário em prol de interesses pessoais.

Antes que eu seja indevidamente acusada de militar em defesa de algum governante, vou direto ao ponto para mostrar que, mais uma vez, uma corte de justiça foi acionada em vão e concordou em dedicar tempo e recursos ao exame de um litígio descabido. A medida em questão, uma ADPF, essa abreviação diante da qual você não deve se apavorar, nada mais é senão uma ação, regida pela Constituição Federal (CF)[2] e pela Lei 9882/99, cuja finalidade consiste em evitar ou reparar violações a preceitos fundamentais assegurados pela Lei Maior, tais como vida e liberdade. Segundo os autores da ação. certos fenômenos por eles designados como “estigmatização de corpos negros”, “embranquecimento cultural” e análogos seriam atentados à dignidade humana.

A simples compreensão de expressões vazias de sentido como as mencionadas acima já se mostra inviável para qualquer indivíduo minimamente lúcido, que se recuse a aderir às alegações inverossímeis sobre a existência de um apartheid tupiniquim, como se ainda vivêssemos os tristes dias da escravidão, onde corpos humanos eram marcados a ferro e comercializados em praça pública. De tão ridícula, a narrativa dos autores mais se assemelha a um folhetim de época, com direito a senzala, feitores e tronco, que a uma peça judicial.

A par da desonestidade e insanidade que permeiam seu discurso, indago às legendas quais teriam sido exatamente os atos de genocídio praticados pela união federal contra grupos de negros, que os autores são os primeiros a estigmatizarem, mencionando-os como se vivessem em guetos. Não falo de conceitos vagos, e muito menos do histrionismo grosseiro característico do atual ocupante do Planalto, mas de condutas passíveis de serem bem definidas e demonstradas. Ora, é requisito imprescindível à propositura de uma ADPF a indicação do ato por meio do qual o poder público violou o preceito constitucional resguardado, sob pena de indeferimento da petição inicial, por inépcia.

A necessidade de encerramento imediato de processos como este já foi consagrada pelo próprio STF, tendo o ex-ministro Carlos Ayres Britto afirmado de modo explícito, ainda em 2007, que, “omitindo-se a arguente de indicar, de maneira precisa, os atos do Poder Público que estariam sendo impugnados nesta arguição, é de se reconhecer a inépcia da petição inicial[3].

Porém, a ministra Rosa Weber, relatora da ação ora em discussão, não hesitou em contrariar precedente de um ilustre ex-colega e em dar continuidade a uma medida sabidamente descabida, intimando o atual titular do Executivo a prestar informações sobre políticas para negros[4]. Ao seguir com a aventura jurídica de iniciativa das siglas esquerdistas, a suprema togada, além de incorrer em falha processual inadmissível, ainda se mostra disposta a legislar e a interferir nas esferas de competência dos demais poderes.

Ora, se uma sociedade inteira, ou, pelo menos, boa parte dela, concebe o racismo como grave problema a demandar políticas públicas efetivas, cabe tão somente ao eleitor optar por mandatários que, já em campanha, proponham políticas aplicáveis a essa área. Em seguida, uma vez empossados os políticos, cumpre ao cidadão cobrar de seus eleitos o respeito aos compromissos assumidos no período eleitoral, incluindo-se aí uma interlocução profícua entre Executivo e Legislativo.

Contudo, no nosso universo político, onde lideranças apresentam dificuldades em dialogar entre si, ou, se o fazem, travam diálogos em bases nada republicanas, chegamos ao auge da excrescência ao vermos uma togada não-eleita pelo voto popular admitir a choraminga de um certo grupo político para fazer parecer, sob as lentes da mídia, que estaria pressionando o grupo rival ao dos autores quanto à adoção de políticas humanitárias. Curiosamente, todo esse jogo de cena, montado poucos meses antes da acirrada corrida presidencial, gira em torno das figuras dos dois protagonistas. Seriam todos esses fatores atribuíveis à mera coincidência, ou haveria mais um nítido intuito eleitoreiro na conduta da cúpula do Judiciário que, reitere-se, persiste na condução de um processo descabido entre caciques políticos, em detrimento de pilhas de ações a clamarem por uma resolução durante anos?

Seja como for, todas as aberrações jurídicas e os arbítrios recentes praticados por nossos tribunais, sempre sob alguma justificativa ideológica de cunho nobre, têm contribuído decisivamente para o esfacelamento da nossa frágil estrutura institucional. Na letra de O Mundo é um Moinho, o mestre Cartola, se ainda vivesse entre nós, bem poderia se referir à nossa combalida República, sobretudo nos versos finais da canção:

Preste atenção, querida/De cada amor, tu herdarás só o cinismo

Quando notares, estás à beira do abismo/Abismo que cavaste com teus pés

De cada populista que nos governou a partir da Nova República, somente herdamos o cinismo, as crises engendradas e as togas por ele nomeadas, e, após décadas de muito fisiologismo, estatismo e corrupção, nos vemos à beira de um abismo moral, político e econômico, sem podermos contar com magistrados alheios a interesses pessoais politiqueiros e capazes de dirimir nossos conflitos de modo institucional. E, assim, o mundo que elegemos vai triturando nossos sonhos republicanos….

[1] https://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/pt-e-grupos-de-esquerda-pedem-a-stf-leis-contra-genocidio-de-negros/?ref=link-interno-materia

[2] Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: (…) § 1º A arguição de descumprimento de preceito fundamental, decorrente desta Constituição, será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma da lei.

[3] ADPF 55, decisão monocrática, julgamento em 23-8-2007, DJ de 30-8-2007

[4] https://g1.globo.com/politica/noticia/2022/05/30/rosa-weber-pede-informacoes-a-bolsonaro-sobre-politicas-publicas-voltadas-para-populacao-negra.ghtml

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Judiciário em Foco

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Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.

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