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A suprema chancela ao calote

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Não é apenas nos domínios da liberdade de expressão e da corrupção que nossa elite togada vem proferindo decisões teratológicas e nocivas ao curso regular da vida em sociedade. Também na seara contratual, juízes de vários cantos do país, incluindo a cúpula da magistratura, têm legislado e interferido indevidamente em relações privadas, como se depreende de decisão recente em matéria locatícia, discutida neste espaço.

Nos últimos tempos, começaram a pulular determinações da nossa Suprema Corte (STF) autorizando certos estados da federação a suspenderem o pagamento de créditos por eles devidos. Foi o que ocorreu, na semana passada, em uma ação proposta junto ao STF pelo estado do Maranhão, mediante a qual o ente federativo pleiteava a suspensão temporária do pagamento de empréstimos contraídos junto à União Federal e até junto a bancos privados estrangeiros (onde a União constava como garantidora), sob a alegação de que a redução na alíquota do Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) o teria impossibilitado de arcar com as obrigações por ele contraídas.

Comovido diante dos argumentos dos representantes maranhenses, o ministro Alexandre de Moraes, em mais uma decisão monocrática, autorizou a suspensão das parcelas de dívidas contraídas pelo Maranhão, e ainda impediu os credores do Estado, a saber, a União e os bancos privados, de executarem as garantias prestadas . O fundamento invocado pelo togado não poderia ser mais nobre: a suposta necessidade de evitar que atos praticados pela União (credora) viessem a comprometer, em caráter irreversível, a continuidade dos serviços públicos assegurados à coletividade local. Abstração feita do simpático tom salvacionista adotado por Moraes, será que, examinado em profundidade, tal despacho faz algum sentido?

Como é do conhecimento de qualquer estudante de cursos jurídicos, contratos são firmados para serem cumpridos, pois geram, para os signatários, expectativas recíprocas de obtenção de valores, de prestação de serviços ou da entrega de algum bem. As partes, atreladas a vínculos contratuais assumidos por sua livre escolha, e por um prazo também pactuado entre elas, só podem ser eximidas de suas obrigações em hipóteses excepcionalíssimas que, a despeito de sua vontade, efetivamente as impeçam de cumprir seus deveres. Trata-se, aqui, dos chamados casos de força maior, em geral referentes a fatos catastróficos da natureza, tais como inundações ou terremotos, ou a transtornos sociais imprevisíveis, como, por exemplo, guerras ou insurreições, eventos estes que autorizam a parte por eles afetada a permanecer inadimplente com suas obrigações – e, ainda assim, por um determinado período.
Para além das hipóteses de força maior, o descumprimento de deveres contratuais, por uma das partes, costuma ensejar, para a outra, o direito de romper o vínculo e obter a devida compensação pela falta da parte inadimplente. Elos contratuais são sagrados para qualquer sociedade civilizada, e sua fragilização costuma ser um bom termômetro de imaturidade e insegurança em uma determinada nação.

A redução na alíquota do ICMS está muito longe de caracterizar um evento de força maior – em primeiro lugar, devido à continuidade na cobrança do imposto, que não foi eliminado em qualquer legislação, e, em segundo, em virtude da existência dos demais tributos estaduais que compõem a receita estadual do Maranhão. Aliás, bons gestores (sobretudo na esfera pública) devem operar com diques e folgas orçamentárias, de modo a não sujeitar a capacidade econômico-financeira do ente gerido a possíveis oscilações, como, por exemplo, a redução de alíquotas tributárias. Se não o fazem, não podem seus credores ser atingidos pelos frutos de sucessivas administrações pífias ao longo de décadas!

Até porque, contrariamente ao afirmado por Moraes em sua canetada, não haveria que se falar em dever de cooperação entre a União e seu estado federado, pois esta situação específica não envolve uma relação de poder, mas sim um vínculo entre pessoas jurídicas de direito público que, em algum momento, decidiram firmar um contrato, e que, assim sendo, teriam de cumpri-lo sob pena de arcarem com as compensações cabíveis!

Outrossim, chega a ser curioso aludir a uma suposta hipossuficiência financeira de um estado como o Maranhão, que incorre em gastos excessivos com sua máquina pública e seus poderes, como é o caso de sua Assembleia Legislativa (Alema), um dos corpos legislativos mais onerosos da federação, e cujos custos, segundo pesquisas, representaram, no ano de 2020, 2,6% de todo o orçamento estadual, ou, em cifras, R$ 418.225.776,85 (quatrocentos e dezoito milhões, duzentos e vinte e cinco mil, setecentos e setenta e seis reais e oitenta e cinco centavos) . Ora, por que não economizar um pouco com a alta casta de servidores estaduais para quitar suas obrigações? Pergunta delicada, que os togados Brasileiros nem pensam em formular.

Igualmente grotesca é a preocupação de Moraes com a “continuidade da execução de políticas públicas ou a prestação de serviços essenciais à coletividade”, fingindo esquecer que, de acordo com dados recentes do IBGE, o estado do Maranhão registrou a maior perda de qualidade de vida e o pior desempenho socioeconômico . De que serviços exatamente estaria tratando o togado?

O primeiro efeito nefasto direto da decisão em análise consistirá no acúmulo do endividamento da União, que não apenas deixará de reaver as parcelas que lhe forem devidas pelo Maranhão, como também terá de arcar com a integralidade das dívidas junto aos credores privados estrangeiros. O segundo já se faz sentir, pois, com base nesse precedente relatado por Moraes, seu colega Fux acaba de determinar a suspensão do pagamento das dívidas de Alagoas , e, muito em breve, não duvido que os demais governadores, em situações análogas, façam fila diante do STF para pleitearem e obterem os mesmos benefícios.

A consequência indireta residirá na progressiva fragilização dos vínculos contratuais no Brasil, onde ações destinadas à execução de contratos costumam tramitar por anos, e onde os devedores costumam ser vistos como a parte frágil da relação, ou hipossuficiente em juridiquês, a merecer toda a espécie de assistencialismo assegurado pelas togas. A dificuldade no cumprimento de cláusulas contratadas acarreta, por óbvio, uma crescente desconfiança em relação ao mercado nacional, e retração nos investimentos.

Em capítulo de Os Erros Fatais do Socialismo, Hayek discute a habitual antipatia para com a atividade mercantil, devido não apenas à ignorância econômica de intelectuais, como também ao sigilo inerente à maioria das transações comerciais, e, ainda, aos mistérios envolvendo o dinheiro em si, e as complexas estruturas de moeda e crédito que, “embora indispensáveis para a formação de uma ordem ampliada, tendem a ocultar da observação analítica os mecanismos que as orientam”. Em matéria de empréstimos, onde a desconfiança se mostra ainda mais elevada, o mestre austríaco menciona que “talvez alguns ainda acreditem, como Cícero conta a respeito de Catão, o Velho, que emprestar dinheiro é tão mau quanto matar”, e que “as opiniões atuais sobre as taxas de juros e empréstimos determinados pelo mercado não são mais lisonjeiras ”.

Infelizmente, no Brasil, ainda impera a visão retrógrada e intervencionista acerca das relações contratuais, inclusive as que geram impactos negativos sobre nossas tão combalidas contas públicas. Visão esta, cumpre frisar, partilhada pelos supremos togados, que, na qualidade de guardiões da nossa Constituição Federal, deveriam zelar pela integridade dos contratos enquanto atos jurídicos perfeitos. Isso se eles, de fato, guardassem a nossa Lei Maior…

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Judiciário em Foco

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Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.

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