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A intervenção do Supremo nas favelas cariocas – ou: a soberba salvacionista

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No retorno do recesso, eis que o Supremo Tribunal Federal se debruçou logo sobre o tema da segurança pública no Rio de Janeiro, uma ferida cruenta, geradora de consequências bem gravosas no nosso já tão combalido Estado. Tratava-se do exame de uma ação movida pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), mediante a qual o autor pleiteava a proibição de realização de operações policiais nas favelas do Rio de Janeiro durante a pandemia de COVID-19, salvo em circunstâncias excepcionais, durante as quais deveriam ser adotados cuidados específicos.

Ainda em 2020, o ministro Fachin havia concedido uma liminar para impedir a atuação policial em favelas, sob o argumento de que as operações poderiam causar “ainda mais prejuízo a uma população já fragilizada pelo risco do contágio pelo coronavírus em condições ruins de vida.”[1] Decorrido mais de um ano desde a decisão monocrática, o assunto acaba de ser submetido ao Colegiado, quando, então, os demais Ministros acompanharam a espinha dorsal do voto de Fachin, e deliberaram, por unanimidade, fixar certas regras gerais para a atuação policial em comunidades carentes.

Dentre as medidas estipuladas pelo Tribunal, constam: (i) a elaboração, pelo governo do Estado do Rio de Janeiro, de um plano para a redução da letalidade policial; (ii) a limitação das buscas e apreensões em domicílios a medidas exclusivamente diurnas, a serem justificadas e detalhadas; e (iii) a obrigatoriedade de disponibilização de ambulâncias, em locais onde haja possibilidade de confronto armado.[2] Ainda que você se sinta, caro leitor, bem entediado diante de tantas providências concebidas a critério exclusivo dos nossos togados, não desista deste texto, pois prometo não entrar em minudências sobre as novas normas em vigor, e, muito menos, sobre os debates acalorados na cúpula do nosso Judiciário, travados entre magistrados que pareciam disputar o título de salvador-mor dos desvalidos.

Contudo, ao longo de quase dois dias inteiros de julgamento, os humanistas de plantão extrapolaram suas atribuições e cederam à tentação de legislar. Sim, em vez de dirimirem uma disputa concreta, dando razão a uma das partes litigantes ou a ambas, em parte, ou aferindo se uma determinada norma é ou não compatível com a nossa Constituição, resolveram criar regras para situações genéricas e futuras, ou, em outras palavras, leis.

Apenas a título exemplificativo, pensemos no trecho relativo às ambulâncias. O STF não determinou que o governo do Estado do Rio disponibilizasse unidades móveis de atendimento a uma outra parte na ação, em uma hipótese específica. Optou por ordenar que o Poder Executivo local providenciasse ambulâncias para todas as situações que ensejarem a possibilidade de conflitos violentos. Fica, assim, visível o caráter genérico dos casos contemplados na decisão, o que indica a escolha do Tribunal por uma atividade legislativa que não lhe cabe.

Aliás, o precedente Graham x Connor da Suprema Corte Norte-Americana[3], invocado pelo próprio Fachin em sua decisão monocrática, ilustra a conduta desejável de juízes em um Estado de Direito, e que não é nem de longe adotada pelos togados nacionais. De fato, o tribunal estrangeiro, ao apreciar um litígio concreto entre o autor da ação (a vítima de um excesso da força policial) e o réu (policial ao qual o autor atribuiu o ato questionado), se limitou a aferir se, naquele caso, a conduta atendia ou não aos padrões estabelecidos na Constituição do país para o uso da força armada.

Ao contrário do ocorrido no Hemisfério Norte, o nosso Supremo, na situação em discussão, nem disse o Direito, nem dirimiu um conflito entre partes, tendo, antes, passado a ditar às autoridades locais o que fazer na área de segurança, em mais uma extrapolação de suas atribuições.

Ora, enquanto guardião da Constituição Federal, o STF deveria saber que a gestão das políticas públicas de segurança cabe ao Executivo dos Estados, pois nossa Lei Maior é explícita ao dispor que as polícias militares se subordinam aos governadores de Estado.[4]  Em linha com a CF, a Lei no. 13.675/18[5], que trata da organização e do funcionamento dos órgãos de segurança pública, atribui aos Executivos locais o dever de elaborar e implementar seus próprios planos sobre a matéria.

Segundo uma interpretação razoável, a intenção dos legisladores foi conceder aos governadores autonomia suficiente para estabelecer o modus operandi das polícias militares, às quais cabem o policiamento ostensivo e a manutenção da ordem pública, dentro dos parâmetros constitucionais e legais em vigor.

Portanto, se indivíduos sofrerem lesões em decorrência de violência policial, espera-se que a polícia civil investigue os casos e que o Ministério Público tome as providências judiciais cabíveis – e, se todos os braços institucionais do sistema de segurança falharem amiúde, como vem indiscutivelmente ocorrendo no Estado do Rio, espera-se que a população eleja novos perfis de mandatários locais, com propostas minimamente verossímeis para o enfrentamento de problemas tão complexos.

Contudo, inaceitável é ver a nossa Corte Suprema legislando e interferindo no âmbito de competência do Executivo local, em uma verdadeira intervenção no nosso Estado. Na prática, as providências ditadas pelo STF poderão acarretar vários entraves burocráticos à atuação da Polícia Militar do Rio, custos adicionais e, o que é pior, uma ineficiência ainda mais acentuada, vivida nos seus tons mais trágicos pelas camadas desfavorecidas.

Já ouvi relatos de alguns moradores de “comunidades” – o eufemismo queridinho da mídia para a realidade sombria das favelas -, segundo os quais esses cidadãos trabalhadores teriam sido impedidos por bandidos de todo gênero, sejam eles narcotraficantes ou milicianos, de se dirigirem aos seus locais de trabalho, em virtude de conflitos armados entre facções de meliantes. Em outras palavras, a imposição de verdadeiros cárceres privados em regiões não alcançadas pelo Poder Público, e cuja realidade desesperadora não será nem um pouco mitigada pelos ditames dos togados Supremos, blindados em sua Ilha Brasiliense.

Porém, do alto da sua soberba, os integrantes do STF jamais devem ter parado para escutar, com atenção, as queixas de quem vive no desalento, e de cujos míseros rendimentos também saem impostos para sustentá-los. Sua prioridade, sobretudo nos últimos tempos, tem sido alardear supostos impulsos salvacionistas, o que lhes tem servido de pretexto para legislar indevidamente, e para fazer valerem seus próprios projetos de engenharia social, ou, melhor dizendo, seus desejos.

Na sua Divina Comédia, Dante Alighieri encontra as almas dos soberbos, curvados sob imensas pedras, e, desse modo, forçados a olharem os seres do “andar de baixo”, que lhes tinham passado despercebidos durante toda a sua existência terrena. Talvez, mais cedo ou mais tarde, o purgatório dantesco venha a receber certas togas oriundas de um país pobre, iníquo, e capitaneado por instituições cada vez mais frágeis e desacreditadas.

[1] “Fachin proíbe operações policiais nas comunidades do Rio durante a Covid-19” – Conjur, 05.06.20.

[2] “STF fixa regras para operações policiais em favelas do Rio de Janeiro; entenda” – Gazeta do Povo, 03.02.22

[3] https://caselaw.findlaw.com/us-supreme-court/490/386.html

[4] Art. 144 (…) Parágrafo 6º – As polícias militares e os corpos de bombeiros militares, forças auxiliares e reserva do Exército subordinam-se, juntamente com as polícias civis e as polícias penais estaduais e distrital, aos Governadores dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios.

[5] Art. 22 (…) 5º Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios deverão, com base no Plano Nacional de Segurança Pública e Defesa Social, elaborar e implantar seus planos correspondentes em até 2 (dois) anos a partir da publicação do documento nacional, sob pena de não poderem receber recursos da União para a execução de programas ou ações de segurança pública e defesa social.

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Judiciário em Foco

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Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.

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