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Censura não merece respeito

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Apesar da natureza social-democrata da Constituição de 1988 e da atmosfera que lhe deu origem, a Nova República que ela formaliza vinha sendo um período em que algumas liberdades fundamentais, não propriamente econômicas, mas pertinentes às dimensões política e civil, desfrutavam (e, até certo ponto, ainda desfrutam) de algumas vantagens em relação aos períodos anteriores. Quase não havia razões para temer, a sério, a efetivação de golpes militares, prisões políticas ou censura. Lamentavelmente, o cenário parece estar mudando para pior – e por causas e agentes distintos, de todos os lados.

O Supremo Tribunal Federal, responsável pelo controle de constitucionalidade, se tornou perigosamente ativista. Enxergado por alguns como uma espécie de versão contemporânea do Poder Moderador do Império, ele tem parecido estar mais para um poder subversor. Intrometendo-se em tudo e interpretando a nossa lei central como lhe convém, o Supremo, por exemplo, mutilou algo tão sério quanto o processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, preservando-lhe direitos que, conforme a Constituição, deveria ter perdido, uma vez condenada. Cumpre ressaltar que o verdadeiro golpe aplicado em 2016 foi essa preservação.

O mesmo Supremo, precisamente pelo poder que concentra, voltou a ser ameaça para a ordem jurídica pela qual deveria zelar e para a ordem na pátria diversas outras vezes. Os ministros – ou moralmente “ex-ministros em exercício”, como prefiro referenciá-los – Dias Toffoli e Alexandre de Moraes levaram adiante o nefasto inquérito que determinou a pressão sobre pessoas que haviam feito comentários de contestação ao órgão, alegando a existência de ameaças à instituição, com todos os papéis do processo de investigação, apuração e julgamento sendo implementados pela própria pretensa vítima. Houve espaço até para invasões de domicílio pelo terrível crime de escrever comentários em redes sociais com incríveis quatro “likes” criticando a nossa egrégia Suprema Corte – algo que mais da metade da população conectada à Internet deve ter feito nos últimos tempos.

O caldo entornou ainda mais quando o site O Antagonista, em sua revista virtual Crusoé, publicou uma reportagem que dava conta, com base documental, de denúncia da Odebrecht contra o próprio Dias Toffoli, que fora advogado do PT, figurando com a alcunha “amigo do amigo do meu pai”. Era uma reportagem entre tantas que já foram publicadas com diferentes alvos entre os poderosos da República; aparentemente, porém, tocar nos togados era ir longe demais. Alexandre de Moraes censurou – este é o termo exato e sem qualquer exagero – a reportagem, exigindo sua retirada do ar e impondo multa de R$ 100 mil por dia em que a decisão não fosse cumprida e intimação para que os jornalistas depusessem.

O inquérito dos ministros investiu também contra “comunicadores” governistas, depois da eleição de Jair Bolsonaro, o que contou com aplausos de pessoas pretensamente sensatas. É um perigo; “discurso de ódio” e pregação de subversão são acusações genéricas – e não dá para aplaudir quando são expostas isoladamente, em um país em que já se pregou revolução dos trabalhadores em horário eleitoral, como justificativa para censura prévia. Na lista dos alvos, abundavam pessoas sem nenhum amor a princípios; porém, ao contrário delas, o bom liberal terá fidelidade a suas convicções nucleares e não aprovará, sem acesso às acusações individuais, que o senhor Alexandre de Moraes bloqueie alguém das redes apenas por tecer críticas ao Supremo.

Em paralelo, proliferaram-se os “cancelamentos”. Infelizmente, as gritarias identitárias e “progressistas” já afetam as próprias instituições, por exemplo, através do estabelecimento de cotas femininas em parlamentos, tutelando o voto alheio. Conquanto isso não possa ser generalizado, o ambiente nas universidades é maciçamente cerceador da livre expressão. O desamor das esquerdas pela liberdade dos “reacionários burgueses que devem ser executados no altar da revolução”, seja a revolução do proletariado ou a dos “cis-trans-não binários”, já é mais do que notório.

A partir da péssima escolha de palavras do apresentador de um podcast, quis-se cassar um deputado federal por ele ter, na mesma ocasião, defendido a lei de liberdade de expressão dos Estados Unidos, que permite a existência de um partido nazista. Refiro-me, é claro, ao caso Monark-Kim Kataguiri. Transformou-se, através de um “efeito manada” que nada tem de ingênuo ou espontâneo, um entusiasta da Constituição de uma das maiores democracias do mundo em apologista do nazismo; um defensor da liberdade em aspirante a ditador. Condenar a simples discussão sobre a melhor maneira de lidar com o assunto, como se a questão fosse extremamente fácil e fechada, e querer até colocar na cadeia um influenciador por sugerir que a proibição talvez, quem sabe, não seja o melhor caminho ou a abordagem ideal, foi um exagero pernicioso de muitos confrades do próprio movimento liberal que, há pouco tempo, pareciam mais abertos ao debate.

Nesse contexto, o articulista Joel Pinheiro da Fonseca publicou um texto propondo uma comissão de notáveis e especialistas em diversas áreas para controlar tudo o que pode ser dito ou não nas redes sociais; o texto foi feito para ser uma ironia. Como a Internet não perdoa ninguém e sempre se afoba, muitos o enxovalharam pela “opinião” professada; confesso que achei que a forma como o artigo foi construído dava margem à confusão, mas, como conheço o autor, sabia que uma abordagem como essa não combinaria com ele. O que é realmente grave é que houve também quem aplaudisse a “proposta” e a enaltecesse. À revelia de ter sido feliz ou não em seu sarcasmo, o texto conseguiu evidenciar como poucos o autoritarismo despudorado de gente que está por aí, ao nosso lado, pregando a “tolerância” e a “justiça social”.

O mesmo Joel, diante de uma distópica discussão sobre a pertinência de censurar a produtora de documentários Brasil Paralelo, publicou uma enquete no Twitter questionando se o internauta seria a favor da proibição legal dos filmes da empresa. Fique registrado que o próprio Joel não defende a “medida” (leia-se violência), mas, a meu ver, faria mais sentido perguntar logo “você é um tirano que quer calar a boca de todos de quem não gosta ou não?”. O que justificaria censurar a Brasil Paralelo, mas não o documentário petista da Netflix; aquele filme “O dia que durou 21 anos” que acadêmicos de esquerda amam, mas pinta o Comício da Central como uma manifestação extremamente democrática; ou o filme do Marighella do Wagner Che Guevara Moura?

Seria mais confortável se apenas a esquerda e o Supremo Tribunal Federal flertassem com a censura. Infelizmente não é assim. A mentalidade autoritária também perpassa setores centrais do governo Bolsonaro e de sua militância. Em janeiro de 2021, para ficar em um exemplo, o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello disparou que os jornalistas não podem “interpretar” os fatos, mas apenas noticiá-los. Isso porque ele e o “povo brasileiro”, em suas próprias palavras, não deram aos jornalistas “delegação” para “interpretar”. O ex-ministro queria pontificar quem pode ou não interpretar um texto e o que é ou não interpretação, aparentemente sem saber que quem diz ao jornalista se e quando ele pode ou não fazê-lo não é “o povo” e sim a empresa jornalística privada para a qual ele trabalha (deixando de lado o fato de que o Jornalismo em si já é, para muitos teóricos da área, uma interpretação, mas isso é outra discussão). De todo modo, nesse caso, o autoritarismo ficou apenas na dimensão das palavras impacientes.

Eis que agora estoura uma polêmica sobre um filme do humorista e apresentador de televisão Danilo Gentili lançado há nada menos que cinco anos, “Como se Tornar o Pior Aluno da Escola”.  Nunca vi o filme de Danilo Gentili; há uma cena, que fui observar para poder apreciar a questão, em que um professor, visivelmente o vilão da história, solicita favores sexuais de personagens teoricamente menores de idade. Tudo é apenas sugerido, sem qualquer efetivação explícita, e claramente apresentado como uma prática imoral de um hipócrita. Essa cena foi “interpretada” – leia-se “distorcida” – pela militância governista e pelo próprio governo para significar uma apologia à pedofilia. Sob essa justificativa, o ministério da Justiça do governo Bolsonaro decretou a suspensão do filme em todos os serviços de streaming.

Evidentemente estaríamos falando de algo muito diferente se houvesse a veiculação de um abuso real de crianças. Uma cena tosca como aquela, que pode ter seu gosto criticado, mas não representa crime algum, não deveria gerar tanta celeuma. Fosse apenas a celeuma, não uma censura despudorada e – essa sim – explícita, o liberalismo nada teria com isso. Boicote-se à vontade; poderíamos julgar o boicote exagerado, movido por mentalidade autoritária, poderíamos “boicotar o boicote” se quiséssemos, mas limitar-nos-íamos a isso. Quando o poder coercitivo do Estado entra em cena porque uma parte da sociedade não gostou do que viu e porque um notório crítico do governo está envolvido, ao contrário, precisamos nos rebelar de forma veemente, ou liberais de verdade não somos. Censura não merece respeito, jamais, de forma alguma, e, se isso não for consensual entre os liberais, então doravante não existe mais liberalismo.

“Não é liberdade de expressão, é crime”, dizem as vozes afobadas, em geral decididas a concordar com o governo, bem, porque sim; os governos não-esquerdistas passaram a ter uma licença moral até para censurar se isso supostamente ajudar a deter a esquerda. O filme norte-americano “Acredite em mim”, de 2018, relata a história real do sequestro e dos abusos sofridos pela adolescente Lisa McVey. É comovente, mas é forte e tem cenas muito mais bem definidas que a cena do filme de Gentili. A atriz já era maior de idade, e as sequências, apesar de incômodas, não são gratuitas, porque um dos aspectos mais importantes da história de McVey é a capacidade que ela demonstrou de usar psicologia reversa para se livrar de seu agressor. Deveríamos proibir esse filme também? Ou proibir quaisquer filmes em que crimes são exibidos? Acredito, ou quero acreditar, que as pessoas saibam que são encenações…

Outros comparam a questão à polêmica da exposição de 2017 “Queermuseu: Cartografias da diferença na Arte brasileira”. A comparação não é razoável. A exposição foi exibida pelo banco Santander e patrocinada com verba da Lei Rouanet, fornecendo material impresso e acesso facilitado para alunos e professores da rede pública ou privada, expondo o público e os infantes a imagens com prática de zoofilia, “desconstrução” de símbolos religiosos e desenhos medonhamente sexualizados. A reação na época foi o boicote. Não houve nenhuma censura. O Estado não proibiu o Santander de fazer absolutamente nada – ao contrário, o bedelho estatal só se meteu na história antes de ela começar, para favorecer o financiamento da própria exposição e para colocá-la no circuito para as escolas.

O que está acontecendo é muito perigoso, mas é particularmente sintomático que mesmo políticos eleitos para defender a pauta liberal estejam concordando com tal absurdo. Não adianta sermos “muito liberais” diante do Supremo Tribunal Federal, erguendo a voz indignados contra a censura por ele promovida, e acharmos que “tanto faz” a censura a Gentili pelo governo federal, ou vice-versa. Essa é uma postura incoerente e, com toda a franqueza, estúpida; agindo assim, quando formos as vítimas, nada teremos de que nos queixar. Muitos só querem tomar providências quando seu calo é pisoteado. A liberdade dos outros só interessa se concordam com a opinião da “tribo”. Do contrário, que sejam silenciados. Se o liberalismo não for empregado como um arsenal de pensamento contra isso, seus inimigos já terão triunfado.

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Lucas Berlanza

Lucas Berlanza

Jornalista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), colunista e presidente do Instituto Liberal, membro refundador da Sociedade Tocqueville, sócio honorário do Instituto Libercracia, fundador e ex-editor do site Boletim da Liberdade e autor, co-autor e/ou organizador de 10 livros.

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