Código do juiz, cidadão sem código

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Como a reforma do Código Civil pode legitimar retroativamente o arbítrio togado.

No que depender de certas plumas togadas, o futuro do Código Civil brasileiro será, ironicamente, um espelho obediente do passado recente — não o passado da tradição normativa, mas o passado das decisões improvisadas, dos precedentes performáticos e das sentenças moldadas ao sabor da ocasião. O artigo do ministro Luis Felipe Salomão, publicado sob o título cinematográfico “Reforma do Código Civil, de volta para o futuro”, poderia muito bem se chamar “O Privilégio da Última Palavra”, ou ainda: “Código do Juiz, Cidadão Sem Código”.

O texto é bem escrito, sereno, até esperançoso. Mas, como toda engenharia hermenêutica que confunde método com missão, sua suavidade esconde um vício: a ideia de que a modernização legislativa consiste em transformar decisões judiciais em norma positiva, como se o Judiciário fosse o verdadeiro autor da legislação, e o Parlamento, um revisor zeloso.

Sob a justificativa de “atualizar” o Código Civil, o projeto — e o artigo que o embala — propõe algo mais radical: cristalizar em lei o ativismo que já se tornou praxe. De fato, o ministro defende que o texto deve refletir “o entendimento consolidado dos tribunais, sobretudo STF e STJ”, como se a função do legislador fosse institucionalizar interpretações criadas fora do texto em vez de devolver o Direito ao seu leito normativo.

Não é apenas uma inversão de método. É uma inversão de legitimidade.

Em um trecho emblemático, Salomão exalta a decisão do STF no Tema 987 (Marco Civil da Internet), em que a Corte relativizou o artigo 19 para permitir que plataformas digitais sejam responsabilizadas antes mesmo de ordem judicial. O elogio não é fortuito: ele antecipa o projeto de fundo — reescrever a responsabilidade civil à imagem da jurisprudência, ignorando o pacto constitucional de 1988 e a presunção de liberdade que deveria proteger o cidadão contra o arbítrio, mesmo quando disfarçado de diligência.

O artigo 19 não é um obstáculo à justiça — é um limite ao poder. Sua estrutura está assentada em três pilares que o PL parece ignorar: (i) a neutralidade das redes, (ii) a imunidade condicional das plataformas, e (iii) a centralidade da ordem judicial como requisito para remoção de conteúdo. Desconstruí-lo é abrir as comportas para um novo tipo de censura privada: a moderação por medo de responsabilização, não por convicção constitucional.

Contudo, nem só de loas à repressão no ambiente digital se alimenta o texto de Salomão. Em outro trecho igualmente emblemático, embora mais sutil que o primeiro, o ministro saúda decisão do STJ na qual o Judiciário também optou por substituir normas jurídicas pela cosmovisão dos julgadores. Em análise do Tema Repetitivo no. 1200, a corte integrada por Salomão havia determinado que o prazo prescricional para a ação de petição de herança fluísse a partir da data da abertura da sucessão, não podendo ser impedido, suspenso ou interrompido pela ação de reconhecimento de filiação. O julgado, louvado no texto como avanço jurisprudencial, representou um aditamento a dispositivos do Código Civil vigente sobre temática sucessória, assim como uma inovação, por juízes, em matéria de ordem pública e, como tal, sujeita à mais estrita legalidade: a prescrição.

Como o Direito não protege os que dormem, é inadmissível que o devedor permaneça indefinidamente atrelado aos caprichos do seu credor, o segurador aos do seu segurado, e por aí vai. Por isso, em prol da segurança nas relações sociais, cabe à lei estipular prazos (prescricionais) ao final dos quais o titular de uma pretensão deixa de poder exercê-la. Assim como somente a lei pode definir o rol taxativo dos casos em que tais prazos sequer começam a ser computados ou têm seu curso suspenso ou interrompido.

Aplicando regras inexistentes no ordenamento atual, o STJ de Salomão estipulou, para o suposto herdeiro, o início do curso da prescrição a partir da data da abertura da sucessão, e ainda impediu a suspensão ou a interrupção do prazo prescricional pela propositura de uma ação de investigação de paternidade. Assim, por determinação do tribunal, o sucessor duvidoso, antes mesmo do reconhecimento oficial da condição de herdeiro, ou seja, da certeza ensejada por uma sentença em ação investigatória, será investido na pretensão de reivindicar seu quinhão na herança. À margem da norma posta, a corte gerará intranquilidade para herdeiros legítimos que, amanhã, poderão ter de concorrer ao acervo hereditário ao lado de herdeiros incertos, todos vinculados ao mesmo prazo prescricional pela mera vontade de juízes. A novidade é fundamentada em dispositivos do projeto de novo Código Civil, ainda nem aprovados pelo Legislativo, mas por cuja oficialização tanto anseiam os togados de cúpula, como forma de chancela aos seus entendimentos pessoais.

Não à toa o ministro Marco Aurélio Bellizze, relator, no STJ, do acórdão comentado acima, fez questão de consignar que, antes da fixação da tese “inovadora” em matéria de prescrição, o colegiado aguardou a apresentação, ao Senado, do anteprojeto do novo Código Civil, como meio de aferir que os termos encaminhados ao legislador, “como seria de se almejar, não desbordaram do atual posicionamento desta Corte de Justiça”. Mera retorsão retórica para confessar que, longe de se destinar a suprir demandas sociais relevantes, um novo Código servirá tão somente para travestir, sob roupagem legislativa, um compilado de deliberações judiciais, com todas as suas inconsistências e até seus arbítrios.

Quando um ministro do STJ afirma, com entusiasmo, que a reforma pode “melhorar a vida da população” porque vai incorporar as soluções dos tribunais, ele nos convida — com ou sem ironia — a aceitar a jurisprudência como substituto do processo legislativo. Mas leis feitas a partir de precedentes são como Constituições escritas por editorialistas: reativas, oportunistas e perigosamente dependentes do clima do dia. Distanciadas da rigidez das normas jurídicas e emanadas de autoridades não eleitas, as “leis” togadas espelham a volatilidade dos humores e das convicções de seus prolatores.

O futuro previsto pelo ministro Salomão é, portanto, menos uma reforma e mais uma consagração. Aliás, ao escolher o “futuro” como termo vedete para seu texto, apresentando-o como algo quase idílico e sinônimo necessário de avanços, Salomão assume seu viés progressista, seja no menosprezo ao passado como algo “retrógrado”, seja na fé incondicional em uma dialética histórica destinada a conduzir a humanidade a um porvir de igualdade e justiça. A toda essa utopia que já redundou em experimentos sociais desastrosos, preferimos a tradição do primado da Constituição, da legalidade e da previsibilidade jurídica.

Assumimos nossa opção por um retorno ao passado, sim! Ao passado do respeito à lei, ao texto, à contenção dos intérpretes. Ao passado de juízes comedidos, de separação de poderes levada a sério, de códigos escritos por legisladores, não por votos colegiados. O que se anuncia como avanço é, na verdade, a cristalização da juristocracia — e o cidadão, este continuará sem código. Ou pior: à mercê de “códigos” modificados fora do crivo do Parlamento, a critério de figurões desprovidos de representatividade popular.

*Katia Magalhães – advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no You Tube.

*Leonardo Corrêa – Advogado, LL.M pela University of Pennsylvania, sócio de 3C LAW | Corrêa & Conforti Advogados, um dos Fundadores e Presidente da Lexum.

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