Domingo Faustino Sarmiento (1811-1888) e o patrimonialismo argentino

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A obra de Domingo Faustino Sarmiento (1811-1888) intitulada: Facundo – Civilização e barbárie no pampa argentino firmou-se na literatura latino-americana, como uma das peças-chave para compreender as instituições e a evolução social da República Argentina. Obra a meio caminho entre o tratado sociológico e o romance social, ocupa hoje lugar de destaque nas letras da América do Sul.

Sarmiento foi um doutrinário no sentido próprio do termo ou seja, um pensador liberal e, ao mesmo tempo, um reformador político e social da estirpe de Pierre-Paul Royer Collard (1763-1845) ou François Guizot (1787-1874). Pensador liberal da democracia,, à maneira de Tocqueville, o ensaísta argentino realizou, na sua pátria, obra significativa, ao se contrapor ao regime ditatorial de Juan Manuel Rosas (1793-1877), a fim de instalar um modelo democrático de governo representativo, pautado pela ideia de liberdade e respeito aos direitos civis.

Podemos afirmar, sem exagero, que Sarmiento realizou uma crítica profunda ao patrimonialismo telúrico dos pampas, tendo elaborado, como forma de superação desse tipo de dominação, uma proposta liberal. O caminho por ele empreendido e que teve pleno sucesso, foi o da educação. Sarmiento acreditava nas luzes do espírito e na capacidade deste para modificar as pesadas estruturas herdadas de séculos de despotismo ibero-americano. Embora na sua tipologia sociológica faça, por vezes, concessões ao naturalismo, tão em voga na sua época, a tese central de sua meditação não se circunscreve a essa limitada vertente, se aproximando, pelo contrário, de um modelo de culturalismo sociológico, vizinho da concepção de pensadores brasileiros como Tobias Barretto (1839-1889) ou Sílvio Romero (1851-1914). Se a Argentina se tornou, no final do século XIX e nas primeiras décadas da centúria passada, um modelo de democracia e de progresso, isso aconteceu em virtude das profundas reformas ensejadas pela obra de Sarmiento, que chegou a ocupar a Presidência da República Argentina.

A propósito do significado da obra de Sarmiento, bem como da ação cultural e educadora desenvolvida por ele, escreveu Regina Zibelman:

“Não parece excessivo sublinhar a importância do Facundo para a literatura argentina e latino-americana, nem de seu autor, Domingo Faustino Sarmiento, para a política do continente no século XIX. Líder político e reformador da educação, lutou nos anos 50 contra a ditadura de Juan Manuel de Rosas (1793-1877) e, entre 1868 e 1874, governou seu país. Como presidente, promoveu a educação pública e a agricultura, adotou uma política liberal para a imigração estrangeira e aprimorou a rede de transportes e comunicação. Resultou de sua atividade o fato de a Argentina apresentar, nos dias de hoje, um dos mais elevados índices de alfabetização da América do Sul. O Facundo, por sua vez, data de 1845, período em que Sarmiento atuava como jornalista e professor, sendo sua obra um estudo pioneiro e profundo sobre a vida nos pampas e sobre o gaúcho, precedendo e abrindo o caminho a ser trilhado depois pelo épico Martín Fierro, de seu conterrâneo José Hernández (1834-1886), e por toda a ficção gauchesca que marca a cultura literária associada à região do Rio da Prata [1].

Martín Fierro e Facundo: duas referências de primeira ordem da literatura argentina do século XIX. A respeito do significado de ambas as obras, escreveu Aldyr García Schlee:

“(…) É preciso reconhecer que, no âmbito da literatura argentina, reserva-se um espaço privilegiado para Facundo, até por seus exageros e imprecisões. Reconhece-se geralmente a existência de duas obras fundamentais, nas quais se refletiram as duas faces da nacionalidade: o Martín Fierro, de José Hernández, e Facundo, de Sarmiento. O Martín Fierro, representativo da vida e da mentalidade pastoril, num enfoque típicamente gaúcho; o Facundo, defensor da cultura urbana, numa perspectiva predominantemente européia. Ambos se completam, oferecendo não apenas uma visão totalizadora da realidade argentina, rio-platense e pampiana do século passado (XIX) mas, ao mesmo tempo, a imagem de uma literatura que surgiu da necessidade de expressar o que havia de subjacente e oculto nos modelos letrados de acento clássico” [2].

Pretendo caracterizar nestas páginas o Patrimonialismo argentino, a partir da narrativa de Domingo Faustino Sarmiento, na sua obra: Facundo – Civilización y Barbarie en el Pampa Argentino. Para cumprir com o meu objetivo, desenvolverei duas partes: I – Personalidade e perfil intelectual de Sarmiento e II – Facundo e o Patrimonialismo Argentino.

I – Personalidade e Perfil Intelectual de Sarmiento.

Sarmiento foi uma personalidade rica. Caracteriza-lo de maneira completa exigiria uma exposição aprofundada. Excelentes biografias já foram escritas acerca do estadista argentino. Simplesmente pretendo nesta primeira parte da minha exposição, destacar alguns itens que nos permitam ter uma ideia da sua vida, da formação recebida, bem como da sua atuação política, na medida em que esses dados são imprescindíveis para a compreensão do personagem central da obra do nosso autor, Facundo Quiroga.

Desenvolverei os seguintes itens: 1 – Síntese biobibliográfica. 2 – A influência francesa na formação de Sarmiento. 3 – O anti espanholismo de Sarmiento e a sua aversão ao democratismo de Jean-Jacques Rousseau (1717-1778). 4 – A simpatia de Sarmiento pelos Estados Unidos. 5 – Sarmiento, personalidade especial.

1 – Síntese Biobibliográfica.

Domingo Faustino Sarmiento nasceu em 1811 na cidade de San Juan, capital da Província argentina que leva o mesmo nome. A sua família, de origem pobre, tinha, no entanto, alguma relevância social, em decorrência da origem ilustre dos antepassados. A mãe de Domingo, PAULA Albarracín, uma mulher profundamente cristã e trabalhadora, teve sem dúvida grande influência na formação do nosso autor, e soube mitigar com sabedoria e firmeza de caráter a personalidade aventureira do pai, José Clemente, nascido em 1779 e que “recebeu de seus antepassados duas heranças: a pobreza absoluta e o vício de mentir”, como frisa Manuel Gálvez (1882-1962) [3]. Nosso autor, muito pobre para frequentar os cursos de ensino básico, formou-se como autodidata, segundo lembra na sua obra intitulada Recuerdos de Provincia.

Devido ao triunfo, em 1831, das denominadas forças federais (contrárias aos unitários, entre os que se encontrava Sarmiento), foi obrigado a se exilar no Chile. Pertenceu à denominada “Geração de 1837”, um grupo de jovens intelectuais que aspirava a buscar uma solução pacífica para o conflito entre unitários e federalistas [4]. Esses jovens foram influenciados pelos Doutrinários franceses e, como eles, tentaram elaborar um plano de regeneração para o seu país, a partir da livre discussão dos principais problemas que afetavam à República Argentina. As discussões eram realizadas, principalmente, nos salões culturais que funcionavam em Buenos Aires e em outras cidades, de forma semelhante a como François Guizot (1787-1874), Victor Cousin (1792-1867) e outros Doutrinários franceses estimularam, na etapa pós-napoleônica, o debate de ideias, alicerçados em firmes convicções liberais.

Sarmiento casou com Maria Jesús del Canto, com quem teve uma filha, Ana Faustina, que depois seria esposa do impressor francês Júlio Belin (1815-1865), que o nosso autor conheceu durante a sua primeira permanência em Paris, em 1845. De volta à Argentina após o seu exílio no Chile, Sarmiento fundou em San Juan, a Sociedad Literaria. Em 1839, fundou o Colegio de Pensionistas de Santa Rosa, uma instituição de ensino secundário para meninas. No mesmo ano, iniciou a publicação do jornal El Zonda, a partir do qual divulgou as suas ideias liberais. Pouco tempo depois, em 1840, Sarmiento sofreu novamente o exílio no Chile, em virtude da oposição que, com os outros jovens da chamada “Geração de 37”, fez ao regime ditatorial de Juan Manuel de Rosas.

Na capital chilena Sarmiento desenvolveu ampla atividade no terreno da agitação de ideias. Escreveu regularmente para os jornais El Mercurio, El Heraldo Nacional e El Nacional e fundou El Progreso. Criou e dirigiu em Santiago, a partir de 1842, a Escuela Normal de Preceptores, que foi a primeira instituição latino-americana dedicada à formação de docentes. A Universidade do Chile reconheceu os seus trabalhos pedagógicos, tendo-o nomeado fundador da Facultad de Filosofía y Humanidades. O Ministro do Interior do Chile, Manuel Montt Torres (1809-1880) incumbiu Sarmiento, em 1844, de aperfeiçoar o sistema de educação pública do país andino. Para cumprir com a missão encomendada, o nosso autor viajou pela Europa, Africa e pelos Estados Unidos, ao longo desse ano, a fim de estudar, neles, os sistemas educacionais. Essas experiências foram consignadas na sua obra de ensaios intitulada: Viajes por Europa, Africa y América, (Prólogo de Juan Carlos Casas, Miami: Editora Stock Cero, 2014).

De regresso de sua viagem, Sarmiento casou, em segundas núpcias, no final de 1848, com Benita Martínez Pastoriza, viúva de seu amigo Domingo Castro y Calvo, tendo adotado o filho deles, Domingo Fidel (conhecido popularmente como Dominguito, e que teria fim trágico na batalha de Curupayty, na Guerra do Paraguai, em 1866). O segundo casamento do nosso autor durou pouco, tendo-se separado em1849. Ainda no Chile, Sarmiento escreveu o seu livro de ensaios pedagógicos intitulado Educación Popular. Posteriormente regressou à Argentina, em companhia do seu filho adotivo. E, 1854, Sarmiento entrou na Maçonaria, na Loja Unión Fraternal Número 1, de Santiago do Chile, talvez motivado pelo fato de que os homens liberais de prol da Argentina fossem maçons e, também, porque vislumbrava nessa organização a possibilidade de lhe abrir as portas ara a vida política no seu país natal.

Fruto do exílio chileno foi, outrossim, a principal obra de Sarmiento, Facundo, Civilización y Barbarie en el Pampa Argentino. No livro, o escritor deixou claramente desenhada a figura do caudilho bárbaro. Embora pretendesse, em primeira instância, traçar o perfil do chefete provincial Facundo Quiroga, no entanto Sarmiento alargou a sua análise até abarcar a pessoa do líder patrimonialista por excelência da história argentina do período, e contra o qual desatou a sua luta política: o ditador Rosas.

Sarmiento pertenceu, como frisamos atrás, à denominada Geração de 1837, que foi profundamente marcada pelos Doutrinários franceses, bem como pela influência romântica, embora, na sua obra, apareçam também traços de caráter neoclássico, bem como, no final da sua vida, uma certa inspiração positivista, se bem que moderada, a julgar pela sua obra intitulada Conflictos y armonías de las razas de América. Sob a liderança do general Justo José Urquiza (1801-1870), Sarmiento tomou parte no denominado Ejército Grande, que derrubou Rosas em 1852. Ao longo dos anos 60 do século XIX, nosso autor exerceu o cargo de governador de sua província, San Juan, foi nomeado por Mitre Ministro do Interior e Relações Exteriores do Governo de Buenos Aires, foi eleito Senador e posteriormente, em 1868, nomeado Embaixador da República Argentina nos Estados Unidos. Terminada essa missão, Sarmiento fez rápida viagem à França, antes de regressar a Buenos Aires.

Entre 1868 e 1874 exerceu as funções de Presidente da República Argentina. A obra fundamental do seu governo esteve centrada na área educacional, que era a sua grande reocupação: duplicou o número de escolas públicas pelo país afora e abriu mais de cem bibliotecas populares. De outro lado, a gestão de Sarmiento caracterizou-se porque deu grande importância à imigração estrangeira, favorecendo notadamente a entrada de trabalhadores de origem norte-americana. O seu governo esteve marcado, também, pelo fim da Guerra do Paraguai. O escritor argentino faleceu em 11 de setembro de 1888, na cidade de Assunção, no Paraguai, aonde tinha viajado para acompanhar a sua filha. Os seus despojos mortais encontram-se no célebre Cemitério de La Recoleta, em Buenos Aires.

As principais obras de Sarmiento são as seguintes, com o ano de publicação: Facundo, Civilización y Barbarie en el Pampa Argentino (1845); Vida de Aldao (1845); Método gradual de enseñar a ler el Castellano (1845); Viajes por Africa, Europa y América (1849); Argirópolis (1850); Recuerdos de Provincia (1850); Campaña del Ejército Grande (1852); Las ciento y una – Cartas a Alberdi (1853); Comentario a la Constitución de la Confederación Argentina (1853); Memoria sobre Educación Común (1856); El Chacho – Vida del caudillo riojano Angel Vicente Peñalosa (1865); Las Escuelas, bases de la prosperidad (1866); Conflicto y armonía de las razas en América (1886).

2 – A influência francesa na formação de Sarmiento.

Sarmiento foi um doutrinário, não na linha puramente burguesa de Guizot, mas seguindo a trilha da democratização assinalada por Alexis de Tocqueville. Não acreditava numa democracia pura e simples, tipo democracia direta rousseauniana. O seu modelo democrático deveria estar presidido por uma elite ilustrada. Esse caráter aristocrático dá à posição de Sarmiento um certo tom elitista e conservador, que o distancia, certamente, dos espíritos democráticos tout-court. Mas digamos que o ensaísta argentino está em boa companhia: o espírito doutrinário e Tocqueville. O crítico literário Aldyr Garcia Schlee (1934-2018) caracterizou, da seguinte forma, esse traço da formação intelectual de Sarmiento:

“O autor de Facundo foi chamado de soldado da civilização; mas também de cruzado da liberdade de comércio e do respeito daltônico às cores nacionais. Foi acusado de estar entre os intelectuais que, nas Províncias Unidas, pensavam em francês, comerciavam em inglês, de costas para a Argentina e com o coração na Europa – a democrática aristocracia ilustrada, sem barões, sem marqueses, sem condes e sem duques como os nossos, que achicava sem pena e sem escrúpulos a nação em benefício de uma classe e de uma cidade (Buenos Aires) – aqueles para os quais a nacionalidade dependia das câmaras de comércio britânicas” [5].

Como Royer-Collard, pai dos doutrinários, Sarmiento era católico. Professava um tipo de catolicismo liberal, que se ajustaria muito bem ao perfil de um intelectual como o historiador portugués Alexandre Herculano (1810-1877). Era um católico moderado e aberto à ideia de progresso. Era, também, contrário ao ultramontanismo. Assim caracterizou Manuel Gálvez (1882-1962) o seu catolicismo: “Sarmiento fala como um católico, embora envenenado pelo afã de progresso material. Jamais se coloca no ponto de vista de Deus, mas no avanço das sociedades. Não pensa na utilidade moral da oração, no bem que monges e freiras fazem ao mundo somente com a oração nos seus conventos. Ele ve ali homens e mulheres perdidos para o crescimento da população, não almas ganhas para o serviço de Deus. Como ele, faz quarenta anos (no começo do século XX), pensavam os católicos da Argentina. O simples fato de ir à missa, embora sem acompanhá-la com o missal, era um ato de fervor (…). Sarmiento, em que pese alguns ataques ao clero em geral, tem menos vergonha de se apresentar como religioso do que a maioria dos católicos do seu tempo, já que traduziu e editou um par de livrinhos piedosos” [6].

A formação que recebeu Sarmiento foi inspirada na leitura dos filósofos doutrinários, bem como dos pensadores que, na França, receberam a influência daqueles, como Tocqueville. Romantismo filosófico e literário, bem como liberalismo moderado: essas foram as correntes que definiram o panorama intelectual do rapazola, que, junto com os seus amigos, lia sofregamente os livros que lhes emprestava um jovem advogado, Manuel Quiroga Rosas. Eis os autores estudados: Lerminier, Cousin, Jouffroy, Guizot, Villemain, Tocqueville, Leroux, Chateaubriand, Lamartine, Dumas e Victor Hugo.

“Esses Escritores – escreve Manuel Gálvez – os mais notáveis de seu tempo, os que mais podem apaixonar aos jovens espiritualmente inquietos, significam o romantismo na literatura e o liberalismo democrático em política. Talvez romantismo e liberalismo sejam uma só coisa: ambos mostram o predomínio do sentimento sobre a razão, das frases declamatórias sobre a realidade e das ideias demagógicas contra a hierarquia e a ordem clássicos” [7].

Em que pese a admiração que Sarmiento tinha pelos doutrinários, no entanto distanciou-se da avaliação negativa que Guizot fazia da oposição dos liberais argentinos em face do despótico Rosas. O nosso autor não entendia como um espírito ilustrado podia tomar partido em favor desse homem sanguinolento que representava, simplesmente, um atentado à civilização ocidental. Eis as palavras de Sarmiento a Respeito:

“Monsieur Guizot disse, na tribuna francesa: ‘Há na América dois partidos: o partido europeu e o partido americano; este é o mais forte’. E quando lhe comunicam que os franceses pegaram em armas em Montevidéu e associaram seu futuro, sua vida e seu bem-estar ao triunfo do partido europeu civilizado, contenta-se em acrescentar: ‘os franceses são muito intrometidos e comprometem sua nação com os demais governos’. Bendito seja Deus! Monsieur Guizot, o historiador da Civilização europeia, aquele que deslindou os novos elementos que modificaram a Civilização romana e que penetrou no emaranhado labirinto da Idade Média, para mostrar como a nação francesa foi o crisol em que se esteve elaborando, misturando e refundindo o espírito moderno; Monsieur Guizot, ministro do rei da França sobre a manifestação de ideologias profundas entre os franceses e os inimigos de Rosas, oferece esta conclusão: ‘Os franceses são muito intrometidos!’ Os outros povos americanos que, indiferentes e impassíveis, observam a luta e as alianças de um partido argentino com todo o elemento europeu que lhe venha prestar seu apoio, por sua vez exclamam, cheios de indignação: ‘Estes argentinos são muito amigos dos europeus!’ E o tirano da República Argentina se encarrega, oficiosamente, de completar-lhe a frase, acrescentando: ‘Traidores da causa americana!’ Certo! Dizem todos: traidores, esta é a palavra. Certo! Dizemos nós; traidores da causa americana, espanhola, absolutista bárbara! Não tereis ouvido a palavra selvagem que anda revoluteando sobre nossas cabeças?” [8].

Entre Guizot e Tocqueville, o nosso autor certamente penderia mais para o segundo. No início da sua obra Facundo, Sarmiento considera que o ideal seria contar com a colaboração de um intelectual feito Tocqueville, que deslindasse o intrincado emaranhado da história argentina, a fim de que, com olhar científico, desvendasse as linhas mestras desse modo de ser americano, tão diferente das civilizações conhecidas. Se prestarmos atenção à estrutura de Facundo, veremos que o escritor argentino seguiu as pegadas de seu modelo: estudou inicialmente o que poderíamos chamar de geografia física do país, para passar, num segundo lance, a abordar a geografia humana e política das Províncias argentinas, mais ou menos se inspirando nas duas partes em que o escritor francês dividiu a sua Democracia na América [9]. A respeito, escreveu Sarmiento:

“Na América do Sul em geral, e, sobretudo, na República Argentina, faz falta um Tocqueville que, premunido dos conhecimentos das teorias sociais, como viajante científico de barômetros, oitantes e bússolas, penetrasse no interior de nossa vida política, como num campo vastíssimo e ainda não explorado nem descrito pela ciência, e revelasse – para a Europa, para a França, tão ávida de etapas novas na vida das diversas porções da humanidade – este novo modelo de ser que não tem antecedentes bem marcados e conhecidos [10].

Sarmiento amou Paris desde o primeiro momento. A sua permanência na capital francesa deu ensejo a um processo de enriquecimento intelectual e mundano. Gostava dos museus, do ambiente de leitura e de estudo, dos boulevards, dos bailes. Eis o retrato que faz o biógrafo de Sarmiento, Manuel Gálvez, acerca da experiência do nosso autor na Cidade Luz, nos idos de 1845:

“Já está em Paris. Começa a vê-la um pouco através de Eugênio Sué (1804-1857). Em tom que revela o seu contentamento, vai descrevendo-a com delicados toques. Entusiasma-se ao contar como, em Paris, o homem de estudo encontra tudo o que deseja: museus que abarcam a história do mundo, coleções de plantas, exposições de quadros. Ao falar dos animais antediluvianos, confessa-se evolucionista: esses animais, ‘de criação em criação, podem-nos chamar de tetranetos’. Mas cabe observar que isso, como boa parte destas páginas, é escrito em tom meio de broma. Sarmiento não acredita que o luxo corrompa as energias morais, nem que o prazer enerve. Encontra a prova disso no francês de então, do qual afirma: ‘é o guerreiro mais audacioso, o poeta mais ardente, o sábio mais profundo, o elegante mais frívolo, o cidadão mais cioso, o jovem mais dado aos prazeres, o artista mais delicado e o homem mais agradável no trato com os outros’. Não condena, nem por um instante, as frivolidades e os prazeres, muito pelo contrário, inveja-os. Declarava não ter tempo para essas coisas, nem gosto, nem dinheiro, mas exclama: ‘Ah, se tivesse quarenta mil pesos, mais nada! Que ano dar-me-ia em Paris! Que página luminosa poria nas minhas lembranças para a velhice!’ Contenta-se com olhar, e logo, quando escreve a Chile, com defender os bailes, que para ele possuem a virtude de que nivelam a sociedade ao misturar as classes e ao refinar os costumes das mulheres do povo. Apesar das diversões e andanças por Paris, não lhe falta tempo para estudar. Segue até um curso sobre o bicho-de-seda nas Bergeries de Sénart. Para isso, deve-se transladar a Mainville, nos arredores de Paris. Mas o incômodo da mudança resulta muito proveitoso; e não apenas por aquilo que aprende, mas porque ali conhece a Júlio Belin, filho de um impressor parisiense, a quem convence para ir ao Chile, a fim de instalar uma gráfica. Belin partirá dois anos depois, e será o seu sócio e o seu genro” [11].

Sarmiento teve, sempre, uma posição crítica em face da política francesa diante da luta dos unitaristas contra Rosas. Considerava que os políticos de Paris tinham das questões do Rio da Prata uma visão superficial e muito acomodada aos seus interesses imediatos, sem que percebessem os valores que estavam em confronto. Era inconcebível, para o escritor, que houvesse rosistas gozando do apoio oficial em Paris. Eis o que escreve, a respeito, o biógrafo de Sarmiento, se referindo às várias manifestações dos políticos franceses, em 1845, quando da visita que o nosso autor fez ao Parlamento:

“Neste capítulo sobre Paris, o maior lugar está ocupado pela política e a questão do Rio da Prata. Sessão na Câmara dos Deputados. Sarmiento destaca os nomes mais célebres: Berryer, Odilon Barrot, Arago, Cormenin, Lamartine, Emilio Girardin. Thiers fala como chefe da oposição. No dia seguinte Guizot, chefe do governo, responde-lhe. O argentino traça deles excelentes retratos. Mas, salvo o talento retórico dos dois grandes homens, tudo o desilude. O escritor liberal Miguel Cané (1851-1915) dirá, anos mais tarde, no seu ensaio Sarmiento em Paris: ‘A partir de então – refere-se Cané à sua presença naquelas sessões – parece-me que o regime parlamentar está condenado, aos seus olhos’. Abundam em Paris os ‘rosistas’. Pertencem a esse grupo, no sentir de Sarmiento, o editor de El Correo de Ultramar e o redator de La Presse, bem como monsieur Pichon, ex cónsul da França em Montevidéu; os funcionários do Ministério de Relações Exteriores, o Almirante Mackan e até o próprio Guizot… Sarmiento não pode dizer que esses franceses ignorem os acontecimentos do Prata. Eles sabem o que a França e a Inglaterra buscam nos nossos países e têm motivos para encontrar justificada a patriótica resistência de dom Juan Manuel (Rosas) aos seus excessos imperialistas” [12].

3 – O Antiespanholismo de Sarmiento e a sua Aversão ao Democratismo de Rousseau.

A memória que Sarmiento tinha da Espanha era negativa. Circunscrevia-se à reação daqueles que, na Argentina, lutaram contra a poderosa Metrópole nas guerras de Independência, que pipocaram nas colônias hispano-americanas ao longo dos dois primeiros decênios do século XIX. Manuel Gálvez, na sua Vida de Sarmiento [13], deixou consignada essa reação do autor de Facundo, nos seguintes termos:

“(Sarmiento) afirma que a Inquisição queimou nas suas fogueiras a literatura espanhola, motivo pelo qual ‘os escritores desapareceram aos poucos’; Espanha “ficou desoladoramente bárbara” e o seu espírito, doente, não conseguiu até hoje se restabelecer. Por essa razão, em três séculos – continua Sarmiento na sua crítica demolidora – ‘não houve, na Espanha, um homem que pensasse’. Insiste em que Espanha ‘não teve um único escritor de renome, nenhum filósofo, nenhum sábio’ e afirma, sem duvidar, que ‘o desgraçado Cervantes sepultou, com ele, no túmulo, o único troféu que poderia ostentar a nação mais pobre de escritos que se conhece’”.

Paralela à aversão que o escritor argentino sentia em face da Espanha, era a alergia que tinha diante do pensamento de Jean-Jacques Rousseau, que constituía, para ele, a negação mesma da verdadeira democracia. A filosofia do pensador genebrino era basicamente irrealizável, porquanto brigava com os fatos e com a natureza humana. A propósito, o biógrafo de Sarmiento escreve:

“(…) Falando das Lições de Direito Político do grande pensador e escritor católico Juan Donoso Cortés (1809-1853), afirma em 26 de outubro de 1844 que no Chile, quando há discussões, é costume reproduzir as ideias de Mably, de Rousseau ‘e de outros utopistas do século passado, cujas doutrinas foram rejeitadas como irrealizáveis e carentes de qualquer fundamento pela experiência de meio século de estudos constitucionais’. É interessante saber que Sarmiento, considerado como o protótipo do democrata, considera como utópicas e carentes de qualquer fundamento as ideias de Rousseau, pai da democracia” [14].

Rousseau, com certeza, não era considerado por Sarmiento como pai da democracia, mas da “retórica utópico-democrática”, como diria Thomas Jefferson (1743-1826) [15]. Entra, aqui, a influência, além dos constitucionalistas americanos de fins do século XVIII (os denominados “Federalistas”) [16], também de Benjamin Constant de Rebecque (1767-1830), em cuja obra os doutrinários franceses leram a crítica contra o utopismo de Rousseau. Essa crítica alicerçava-se na ideia de que a soberania é limitada e de que o cidadão não pode abrir mão dos seus direitos e repassa-los a uma autoridade, que é eleita por todos para garantir a felicidade geral da Nação. Toda soberania é limitada e é dentro de determinados limites rigorosamente estabelecidos que o poder constituído pode exercer a representação daquela. A propósito, frisava Constant:

“Quando se afirma que a soberania do povo é ilimitada, está se criando e introduzindo perigosamente na sociedade humana, um grau de poder demasiadamente grande que, por si próprio, constitui um mal, independentemente de quem o exerça. Não importa que ela seja confiada a um, a vários ou a todos: sempre constituiria um mal (…). É o grau de poder, não os seus depositários, que deve ser denunciado” [17].

Ora, pensava Sarmiento, o mal de Rosas e dos outros tiranos argentinos consistia justamente em considerar que, posto que foram eleitos em algum momento, o poder a eles conferido era absoluto e não limitado. À estreita e despótica concepção de Rousseau, o ensaista contrapunha as fontes do liberalismo democrático, os Constitucionalistas americanos e Benjamin Constant de Rebecque.

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Ricardo Vélez-Rodríguez

Ricardo Vélez-Rodríguez

Membro da Academia Brasileira de Filosofia e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, professor de Filosofia, aposentado pela Universidade Federal de Juiz de Fora e ex-Ministro da Educação.

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