O 08 de janeiro de 2023 e a Anistia (primeira parte)

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Digamos que os processos envolvendo os atos de 08 de janeiro de 2023 estivessem nas instâncias adequadas, que os envolvidos nas depredações tivessem suas condutas individualizadas, que seus advogados dispusessem de acesso integral aos autos dos processos, que tivessem sido condenados pelos crimes efetivamente cometidos, isto é, vandalismo (não golpe de Estado e quejandos), isto é, com penas proporcionais e razoáveis, tendo, ainda, o direito de recorrer da condenação nas demais instâncias, como tem qualquer cidadão, à exceção daqueles a quem a Constituição Federal conferiu prerrogativa de foro, e que então alguém aparecesse defendendo anistia; nessas circunstâncias, considerando todos esses “ses”, eu seria o primeiro a querer recepcioná-lo com um pontapé. Tivessem os condenados pelo 08 de janeiro acesso à ampla defesa e ao contraditório, gozando do devido processo legal e, ainda, não havendo condenações por crimes políticos, dado que o tal golpe era um crime impossível, não haveria razão alguma para se falar em anistia. Ocorre que nada disso é o caso e só pode se dar ao luxo de ignorar uma conversa séria sobre o tema quem é partidário do assassínio do Estado de Direito, ou quem é cínico, ou idiota o suficiente para dizer que o modus operandi do STF está correto. Apresento, na sequência, alguns pontos que atestam que tudo sobre esses processos está errado desde o princípio.

Julgamentos no STF

O artigo 102, inciso I, nas alíneas a e b, de nossa Constituição, estabelece as autoridades que podem ser julgadas pela suprema corte, sendo estas o Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios ministros, o Procurador-Geral da República, os ministros de Estado, os Comandantes das Forças Armadas, membros dos Tribunais Superiores, membros do Tribunal de Contas da União e os chefes de missão diplomática de caráter permanente. Como podemos ver, o cidadão comum não consta entre aqueles que podem ser julgados pela instância máxima do país. Como, neste ponto, alguém poderia argumentar que, em se tratando de crimes políticos, essa competência poderia ser do STF, digo que, para além de não haver tal prescrição em nenhuma parte da CF, o inciso II deste mesmo artigo diz que compete à corte julgar o crime político em “recurso ordinário”. Ou seja, a própria Constituição deixa muito claro que, mesmo em se tratando de crimes políticos, o STF atuará como corte revisora, julgando o recurso, mas não a ação original. É insofismável o fato de que a suprema corte não poderia estar julgando estas pessoas, e isso, por si só, já seria fator suficiente para a discussão de uma anistia, já que elas não têm qualquer outra possibilidade de recurso.

Não individualização das condutas

São tempos em que necessitamos repetir o óbvio, então, repitamos: no Estado Democrático de Direito, as pessoas só podem ser punidas por ações que de fato tenham empreendido, o que significa dizer que suas condutas devem ser individualizadas. Se três pessoas decidem assaltar um banco, sendo um o motorista, que aguarda do lado de fora para a fuga, outro quem recolhe o dinheiro e outro quem controla os reféns, em dado momento, disparando e ferindo um deles de morte, por óbvio que o assaltante convertido em homicida receberia uma pena maior do que, digamos, o motorista. Imaginemos, então, que se pretendesse impor a mesma pena aos três, isto é, por homicídio, com o argumento de que, como faziam parte do mesmo grupo, concorreram de forma solidária para o crime hediondo; soaria absurdo, não é mesmo? Mas é exatamente isso que o STF tem feito com a tese estapafúrdia dos “crimes multitudinários”.

Segundo a tese, adotada desde a primeira hora nos julgamentos do 08 de janeiro, em crimes envolvendo um grande número de pessoas, seria desnecessário que a acusação detalhasse a conduta de cada réu, já que haveria um “vínculo psicológico” entre eles. Nas palavras de Moraes: “Em virtude do número de pessoas, não tem necessidade de escrever que o sujeito A quebrou a cadeira do ministro Alexandre, o sujeito B quebrou a cadeira do ministro Fachin.” Assim, dessa forma “esperta”, a acusação deixa de ter o ônus de provar. Conforme argumentou o subprocurador-geral da República Carlos Frederico Santos ainda no primeiro julgamento: “O Ministério Público Federal não tem que descrever a conduta de cada um dos executores do ato criminoso, mas o resultado dos atos praticados pela turba“. Então, vejam só, porque seria difícil individualizar as condutas, opta-se por condenar a reboque para facilitar o trabalho da acusação (bem como a sanha punitivista do STF).

Mais uma vez, a tese não tem respaldo na Constituição. Na verdade, existe uma referência à coisa no artigo 65 dó Código Penal, que trata justamente de circunstâncias que atenuam a pena. O agente poderá ter a pena atenuada se “cometido o crime sob a influência de multidão em tumulto, se não o provocou”; isso se dá, pois, ainda quando o agente não foi o instigador, mas foi influenciado pela multidão a agir de determinada forma, entende-se que ele não teria agido dessa forma se isolado, justificando que a pena seja atenuada (ainda que não extinta). O que o STF tem feito é justamente o oposto, usando a tese de crimes multitudinários para agravar as condenações.

A individualização das condutas é um corolário do artigo 5º, inciso XLVI de nossa constituição, que estabelece a individualização das penas: só é possível individualizar as penas se elas corresponderem aos crimes de fato cometidos pelo indivíduo.

Por fim, para que fique ainda mais claro que a acusação não pode se furtar de individualizar as condutas, o artigo 41 no Código de Processo Penal diz: “A denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas”.

Falta de acesso aos autos

Para que um julgamento, qualquer que seja, possa ser reputado como justo, é mister que seja fornecido aos réus o direito à defesa e ao contraditório, o que significa que os advogados devem ter acesso integral aos autos do processo. Mesmo em se tratando de processos que correm sob sigilo, os advogados constituídos devem ter acesso aos autos que fundamentam a acusação. Não obstante, isso não vem sendo cumprido pelo STF. Aliás, desde o início do inquérito das fake news que advogados dos investigados reclamam da falta de acesso aos autos. André Marsiglia, o primeiro advogado a atuar no âmbito do inquérito, na defesa da revista Crusoé no grotesco episódio de censura, reclama de até hoje não ter tido acesso aos autos, sendo que seus clientes seguem sem saber exatamente por que estão sendo investigados.

O modus operandi, de negar acesso integral aos autos vem sendo replicado pela suprema corte nos processos do 08 de janeiro. O argumento de Moraes é que os advogados estão tendo acesso ao que é necessário para a defesa, ou seja, a documentos escolhidos a dedo. Ora, se a acusação tem acesso integral aos autos, mas a defesa não, há um evidente tratamento desproporcional em desfavor dos réus. As defesas dos acusados pela suposta trama golpista em 2022 vêm relatando as mesmas dificuldades em obter acesso integral aos autos e aos documentos originais. Ora, quem é Moraes para dizer o que é ou não necessário para montar a defesa dos réus? Se as provas colhidas são assim tão sólidas, por que não permitir o acesso integral?

A vítima julgando

A razão pela qual temos uma justiça estatal é para que uma terceira parte, isenta e não movida por paixões pessoais, possa tomar decisões esclarecidas, após ser devidamente exposta tanto aos argumentos da acusação quanto da defesa. Esta, aliás, é a função clássica do Estado per se, razão pela qual mesmo minarquistas ferrenhos costumam defender esse papel do poder Judiciário, posto que a alternativa seria a vingança pessoal que conduz à barbárie. Não é preciso gastar muitos neurônios para compreender que, para ser imparcial, isento e não movido por paixões pessoais, o juiz não pode ter parte com o que está julgando, não podendo, por exemplo, ser uma vítima. De todas as perversões contemporâneas do STF, esta é talvez a mais esdrúxula. Desde o pecado original, que foi a abertura do inquérito das fake news, os ministros da suprema corte têm se colocado no polo de vítimas, não ficando constrangidos, no entanto, de julgar aqueles que seriam seus pretensos algozes. Alexandre de Moraes chegou a afirmar em entrevista que, entre os participantes do 08 de janeiro, havia o plano de prendê-lo e até mesmo matá-lo, com os mais exaltados supostamente defendendo que ele fosse “enforcado” na Praça dos Três Poderes. Ora, quem pode julgar aceitável que o sujeito afirme ter sido o alvo de uma tentativa de homicídio, mas continue como relator dos processos, julgando aqueles que pretendiam vitimá-lo? Quão tolos pensam que somos para tentar nos convencer de que os digníssimos ministros julgam com isenção e não movidos pelo orgulho ferido, quando não pelo ódio aberto, como o que Moraes exala, paradoxalmente quando critica o ódio da “extrema direita”?

O embuste do golpe

Por fim, temos a cereja do bolo: a narrativa de que os baderneiros estavam tentando dar um golpe de Estado. Já analisei a questão de forma detalhada em outras oportunidades, mas basta dizer aqui que, embora não tivessem de fato inspirações republicanas, posto que muitos se plantaram em portas de quartéis pedindo um golpe militar contra a posse de Lula e foram provocar as depredações que assistimos, não dispunham dos meios para concretizar um golpe de Estado — aliás, que raio de golpe é esse que ocorre em um domingo, quando os prédios dos poderes estavam vazios? Como também já observei, o próprio relatório da Polícia Federal sobre as tratativas golpistas de 2022 desarma (ainda que involuntariamente) essa tese. Como a PF repete diversas vezes no documento, os então comandantes do Exercício e da Aeronáutica durante o governo Bolsonaro foram intransigentes em sua recusa de mobilizar as tropas para qualquer aventura golpista, com o comandante do Exército, Freire Gomes, chegando a ameaçar o então presidente com prisão caso insistisse na coisa. A lógica nos leva a concluir que, se estando Bolsonaro na presidência e à frente de um governo com vários quadros militares, tanto da reserva quanto da ativa, as Forças Armadas se recusaram a dar um golpe, que não havia a menor possibilidade de que, já sob o governo Lula, elas avançassem nessa empreitada, de modo que nunca houve risco real de que o 08 de janeiro desencadeasse um golpe de Estado. O chamado golpe, nesse caso, seria um crime impossível, isto é, que não poderia ser levado a cabo, independentemente das intenções dos envolvidos, sendo inimputável, como diz de forma clara o artigo 17 do Código penal: “Não se pune a tentativa quando, por ineficácia absoluta do meio ou por absoluta impropriedade do objeto, é impossível consumar-se o crime”.

Fontes:

https://www.jusbrasil.com.br/topicos/10688723/artigo-102-da-constituicao-federal-de-1988

https://www.tjdft.jus.br/consultas/jurisprudencia/jurisprudencia-em-temas/a-doutrina-na-pratica/agravantes-e-atenuantes-genericas-1/circunstancias-atenuantes/ter-o-agente-cometido-o-crime-sob-a-influencia-de-multidao-em-tumulto-se-nao-o-provocou

https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2023/09/14/tese-do-crime-de-multidao-sustenta-julgamento-de-1-reu-do-8-de-janeiro.htm

https://www.jusbrasil.com.br/topicos/10729020/inciso-xlvi-do-artigo-5-da-constituicao-federal-de-1988

https://www.jusbrasil.com.br/topicos/10676044/artigo-41-do-decreto-lei-n-3689-de-03-de-outubro-de-1941

https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/l13793.htm

https://www.poder360.com.br/opiniao/o-que-os-ministros-do-stf-tanto-escondem/

https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2025/04/22/julgamento-nucleo-2-tentativa-golpe-estado.htm

https://www.migalhas.com.br/depeso/386115/o-direito-de-defesa-depois-do-8-de-janeiro

https://www.cnnbrasil.com.br/politica/moraes-diz-que-plano-de-manifestantes-do-8-1-incluiu-enforca-lo-na-praca-dos-tres-poderes/

https://www.jusbrasil.com.br/topicos/10637960/artigo-17-do-decreto-lei-n-2848-de-07-de-dezembro-de-1940

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Gabriel Wilhelms

Gabriel Wilhelms

Graduado em Música e Economia, atua como articulista político nas horas vagas. Atuou como colunista do Jornal em Foco de 2017 a meados de 2019. Colunista do Instituto Liberal desde agosto de 2019.

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