O Estado mexicano como “ogro filantrópico”, segundo Octavio Paz (1914-1998) (quarta parte)
Embora o nosso escritor considerasse que, no México, os Presidentes da República, no período posterior à Revolução Positivista, todos pertencessem ao PRI – Partido Revolucionário Institucional, no entanto, achava que eles não encarnavam a figura do tradicional caudilho hispano-americano, em decorrência de terem sido legitimados por uma investidura, ao passo que o caudilho tradicional sobrepõe-se a ela. Paz, a bem da verdade, caracteriza o patrimonialismo republicano mexicano como um tipo de dominação patrimonial estamental, algo semelhante ao que aconteceu no Brasil republicano sob a égide do getulismo. Mas, de qualquer forma, mesmo no México, está presente o caudilhismo, fenômeno que o nosso pensador considerava como algo típico da América Espanhola, um traço cultural possivelmente herdado do nosso passado árabe peninsular. A respeito, escrevia:
“A imagem do caudilho não é mexicana unicamente, mas espanhola e hispano-americana. Talvez seja de origem árabe. O mundo islâmico caracterizou-se pela sua incapacidade para criar sistemas estáveis de governo, quer dizer, não instituiu uma legitimidade supra pessoal. O remédio contra a instabilidade foi e são os chefes, os caudilhos. Na América Latina, continente instável, os caudilhos nascem com a Independência; nos nossos dias chamam-se Perón, Castro e, no México, Díaz, Carranza, Obregón, Calles. O caudilho é heroico, épico; é o homem que está além da lei. O Presidente é o homem da lei: o seu poder é institucional. Os presidentes mexicanos são ditadores constitucionais, não caudilhos. Têm poder enquanto são presidentes; e o seu poder é quase absoluto, quase sagrado. Mas devem o seu poder à investidura. No caso dos caudilhos hispano-americanos, o poder não lhes vem da investidura, mas eles conferem investidura ao poder” [40].
O caudilhismo, no sentir de Paz, produzia a instabilidade. Pelo fato de não ter conseguido elaborar um processo de legitimidade burocrática, a sucessão do caudilho é sempre traumática. Os processos sucessórios dos países latino-americanos, que evoluíram em direção ao patrimonialismo estamental, deram ensejo a uma certa estabilidade: tal é o caso do presidencialismo mexicano. Mas como, na América Latina, o caudilhismo é a regra e não a exceção, a instabilidade é, por consequência, o clima do continente. Em relação a este ponto, o nosso pensador escrevia: “O princípio da rotatividade, que é uma das características do sistema mexicano, inexiste nos seguidores caudilhescos da América Latina. Aqui aparece, ao lado do tema do pai terrível, outra vez o tema da legitimidade. O mistério ou o enigma da origem. Algo particularmente grave para a América Latina, desde a Independência. O caudilhismo, que foi e é o verdadeiro sistema de governo latino-americano, não conseguiu resolver a questão da sucessão. No regime caudilhesco, a sucessão realiza-se pelo golpe de estado, ou pela morte do caudilho. O caudilhismo, concebido como remédio heroico contra a instabilidade, é o grande produtor de instabilidade no continente. A instabilidade é consequência da ilegitimidade. Depois de aproximadamente dois séculos de independência da monarquia espanhola, os nossos povos não encontraram ainda uma forma de legitimidade. Nesse sentido, o compromisso mexicano – a combinação de presidencialismo e dominação burocrática de um partido único – foi uma solução. Mas é cada vez menos uma saída viável” [41].
A perspectiva familística explica tanto o caudilhismo mexicano como o surgimento do Patrimonialismo, na sua forma mais tradicional, herdada da Espanha. Proveio dessa herança a ideia de que o poder é administrável como bem de família, de que o Estado, que é o produto do poder, pode ser loteado entre amigos e apaniguados, de que parcelas dele podem ser comercializadas se os donos do poder acharem conveniente. A respeito, escrevia Paz: “Do ângulo da persistência do patrimonialismo é fácil de entender este fenômeno [da corrupção]. Em todas as cortes européias durante os séculos XVII e XVIII, eram vendidos os empregos públicos e havia tráfico de influências e favores. Durante a regência de Mariana de Áustria, dom Fernando Valenzuela (o Duende do Palácio), num momento de escassez do tesouro público, decidiu consultar com os teólogos se era lícito vender ao melhor pagador os altos cargos, entre eles os vice-reinados de Aragão, Nova Espanha, Peru e Nápoles. Os teólogos não encontraram nada nas leis divinas, nem nas humanas, que fosse contrário a esse recurso. A corrupção da administração pública mexicana, escândalo de próprios e estranhos, não é, no fundo, mais do que uma manifestação da persistência dessas maneiras de pensar e de sentir, que exemplifica o parecer dos teólogos espanhóis. Pessoas de irreprochável conduta privada, exemplos de moralidade na sua casa e no seu bairro, não têm escrúpulos para dispor dos bens públicos como se fossem próprios. Trata-se não tanto de uma imoralidade como da vigência inconsciente de outra moral: no regime patrimonial são mais bem vagas e flutuantes as fronteiras entre a esfera pública e a privada, entre a família e o Estado. Se cada um é o rei na sua casa, o reino é como uma casa e a nação como uma família. Se o Estado é o patrimônio do Rei, como não vai sê-lo também de seus parentes, seus amigos seus serventes e os seus favoritos? Na Espanha, o Primeiro Ministro chamava-se significativamente, Privado” [42].
Octavio Paz considerava que, no México, o Estado Patrimonial tinha percorrido três grandes etapas: Estado forte na época da Nueva Espanha, no período colonial, Estado fraco, com a privatização do poder pela Igreja e pelos Senhores Patrimoniais Locais (bispos e comunidades religiosas, de um lado e, de outro, ricos proprietários e grandes fazendeiros), no século XIX, após a Independência da Espanha; Estado Patrimonial (Estamental) Forte, com o advento da República positivista, no século XX.
Eis a forma em que o escritor ilustrava essas três etapas, seguindo, para isso, a exposição de conhecido historiador mexicano: “O historiador conservador Carlos Pereyra assinala que as convulsões políticas e o estado caótico do país até a ditadura de Díaz foram, essencialmente, uma consequência da debilidade dos governos desde a Independência. O Estado novo-hispano tinha sido uma construção de extraordinaria solidez e que foi capaz de fazer frente tanto aos revoltosos encomendeiros quanto aos bispos despóticos. Ao cair por terra, deixou uma classe rica muito poderosa e dividida em fações irreconciliáveis. A ausência de um poder central moderador, tanto quanto a inexistência de tradições democráticas explicam o fato de que as facções não demorassem em acudir à força para dirimir as suas pendências. Assim nasceu a praga do militarismo: a espada foi a resposta à debilidade do Estado e ao poder das facções. Por que era débil o Estado mexicano? A debilidade, diz Pereyra, era uma consequência da pobreza. Explico: não pobreza do país, mas do poder político. O Estado era pobre em face de uma Igreja dona da metade do país e uma classe de proprietários e fazendeiros imensamente ricos. Como submeter os bispos e como conseguir que prevalecesse a lei numa sociedade onde cada chefe de familia sentia-se um monarca? Sob a ditadura do general Díaz o Estado mexicano começou a sair da pobreza. Os governos que sucederam a Díaz, passada a etapa violenta da Revolução, impulsionaram o processo de enriquecimento e, muito cedo, com Calles, outro general, o governo mexicano iniciou a sua corrida de grande empresário. Hoje é o capitalista mais poderoso do país embora, como todos sabemos, não seja nem o mais eficiente nem o mais honesto” [43].
Numa curiosa aproximação, o nosso pensador traçava um paralelo entre o Estado Patrimonial mexicano e o russo, destacando os elementos semelhantes entre ambas realidades, mas acrescentando, também, a diferença fundamental. Ela consistiu no fato de o Estado russo ter enveredado pelo caminho do poder total, em decorrência do fato de o Partido, na Rússia, ter-se tornado o verdadeiro Estado, ao passo que, no México, o Partido não passou de um instrumento do Estado. Vale a pena transcrever os termos dessa comparação, que ressalta a inegável acuidade sociológica do nosso autor:
“Lembrei o caso da Rússia, porque, por mais longínquo que pareça, ilumina imediatamente as peculiaridades da situação mexicana. Como na Rússia de início do século (XX), o projeto histórico dos intelectuais mexicanos e, também, o dos grupos dirigentes e da burguesia ilustrada, pode-se resumir na palavra modernização (indústria, democracia, técnica, laicismo, etc.). Como na Rússia, diante da relativa debilidade da burguesia nativa, o agente central da modernização foi o Estado. Por último, como na Rússia, o nosso Estado é o herdeiro de um regime patrimonial: o vice-reinado novo-hispano. No entanto, há diferenças capitais. A primeira: entre o Estado novo-hispano e o moderno interpõe-se o breve mas marcante período democrático da República Restaurada (1867-1876). A segunda: enquanto o Estado totalitário liquidou a burguesia russa, submeteu os camponeses e os operários, exterminou os seus rivais políticos, assassinou os seus críticos e criou uma nova classe dominante, o Estado mexicano tem compartilhado o poder não só com a burguesia nacional, mas também com os quadros dirigentes dos grandes sindicatos. Já destaquei que a relação entre os governos mexicanos, os dirigentes operários e camponeses e a burguesia é ambígua, uma espécie de aliança instável não isenta de querelas, notadamente entre o setor privado e o público. Tudo isso pode-se resumir numa diferença que abarca a todas e que é capital: enquanto na Rússia o Partido é o verdadeiro Estado, no México o Estado é o elemento substancial e o Partido é o seu braço e o seu instrumento. Assim, embora México não seja realmente uma democracia, tampouco é uma ideocracia totalitária” [44].
Uma das características marcantes do Estado patrimonial mexicano – extensiva, também aos outros Estados ibero-americanos – consistia, segundo Octavio Paz, no fato de as respectivas sociedades não se terem diversificado em correntes de opinião que acompanhassem uma diversificação da representação de interesses. Como tudo, na América Latina, decorreu do fato da hipertrofia do Estado sobre a sociedade, terminou acontecendo que ela não se diferenciou em Partidos que exprimissem uma diversidade política. Não encontramos nem no México, nem nos restantes países da América Latina, Partidos Conservadores solidamente definidos [45]. De outro lado, não achamos Partidos Socialistas de índole democrática. A respeito do fenômeno apontado, escrevia o nosso autor:
“O espectador mais distraído descobre imediatamente, neste panorama, duas grandes ausências. Uma, a de um Partido Conservador como o Republicano dos Estados Unidos ou os Partidos Conservadores da Grã Bretanha, França, Alemanha e Espanha; outra, a de um autêntico Partido Socialista com influência entre os trabalhadores, os intelectuais e a classe média. Isto é verdadeiramente lamentável e revela, cruelmente, uma das carências mais graves do México e da América Latina, a inexistência de uma tradição socialista democrática” [46].
3 – Patrimonialismo Estamental.
O pensador mexicano considerava que, na América Latina, apenas o México tinha conseguido superar a modalidade de patrimonialismo caudilhista, para evoluir em direção a uma forma mais sofisticada, a do patrimonialismo estamental. O nosso pensador não conhecia, decerto, de forma suficiente, a história do republicanismo brasileiro, onde, como frisamos atrás, também vingou um modelo de patrimonialismo estamental, ao ensejo do ciclo castilhista-getuliano [47]. A particularidade mexicana, no contexto do continente latino-americano, decorre, segundo Paz, da prática dessa modalidade de dominação. O patrimonialismo estamental, centrado na figura do presidente da República legitimado pelo Partido Único, essa seria a peça-chave da dominação patrimonialista no México. Essa estrutura tem um efeito cultural importante: instaura a preponderância da variável política sobre a econômica, fato que o nosso autor considerava um traço pré-moderno da cultura mexicana. O primeiro a pôr em funcionamento essa maquinária foi o general Lázaro Cárdenas (1895-1970).
A respeito, Paz escrevia: ”O estilo de governar de Cárdenas foi também admirável. Para os presidentes do México é muito grande a tentação de se converterem em ídolos. Cárdenas resistiu a ela. Enquanto esteve no poder, tivemos a sensação, estranha entre todas, de que nos governava um homem, um ser como nós. Porém, o cardenismo não intentou a experiência democrática, mas fortaleceu o partido único. O general Cárdenas imitou os antigos chefes revolucionários que tinham fundado o Partido Nacional Revolucionário, transformado por ele em Partido da Revolução Mexicana e que hoje se chama de Partido Revolucionário Institucional. Nesses três nomes encerra-se a história da burocracia política que domina o país no último meio século. Ninguém pode entender o México se ignora o PRI. As descrições marxistas são insuficientes. Entranhado nas estruturas do Estado, como uma casta política com características próprias, grande canal da mobilidade social, pois abarca do municipio da aldeia às esferas mais altas da política nacional, o partido único é um fenômeno que não aparece no resto da América Latina (salvo em Cuba, recentemente e com traços bem diferentes). No México, certamente, o poder é mais desejado do que a riqueza. Se você for milionário, ser-lhe-á muito difícil – quase impossível – passar dos negócios à política. Pelo contrário, você pode passar da política aos negócios. O enorme prestígio do poder em face do dinheiro é um traço antimoderno do México. Outro exemplo de como os modos de pensar e sentir pré-modernos, pré-capitalistas, aparecem na nossa vida diária” [48].
Característica marcante do patrimonialismo estamental mexicano foi o fato, destacado por Paz, de os donos do poder chamarem os intelectuais para colaborar na gestão do Estado, notadamente quando se fazia necessário elaborar novos modelos de organização constitucional, ao ensejo da revolução positivista, no período que vai de 1920 a 1940. Mas essa colaboração, ressalva o nosso autor, sempre foi desenvolvida no contexto de uma rigorosa cooptação. Os intelectuais mexicanos desse período terminaram sendo enganados pelo Executivo hipertrofiado: ele os chamava para colaborar, mas não os queria escutar!
A respeito, Paz frisa: “A vocação intelectual da geração de Daniel Cossío Villegas (1898-1976) foi inseparável de sua vontade de reforma social, política e moral. Num primeiro momento, todos eles conceberam a sua atividade não defronte ou contra, mas dentro do Estado. O governo revolucionário tinha-os chamado para colaborar na tarefa de reconstrução nacional. E eles, ao aceitarem esse chamado, assumiram por inteiro a responsabilidade dessa colaboração. Inclusive a crítica ao poder se fez dentro do poder. A diferença com os intelectuais europeus ou com a situação do México contemporâneo é radical. Entre 1920 e 1940, os intelectuais do México acreditaram que a sua missão era a de serem conselheiros dos príncipes revolucionários. A realidade os desenganou cruelmente: aqueles príncipes, como quase todos os da história, ou estavam surdos ou não queriam ouvir” [49].
Quanto à estrutura sociológica do patrimonialismo estamental mexicano, o nosso autor a entendia como um jogo de dominação entre cinco grandes elementos: a Tecnocracia Administrativa, a Casta Política, o Capitalismo Privado, as Burocracias Operárias e os Estudantes e Intelectuais (que seriam os porta-vozes da classe média). Nesse conjunto de grupos sociais, prevalecem as decisões da Tecnocracia Administrativa e da Casta Política que, de um ado, não são homogêneas, havendo muitos conflitos de interesses entre uma e outra. De outro lado, Paz destacava que essas duas instâncias de dominação precisavam constantemente de estar negociando as decisões fundamentais com os outros três grupos. Tratar-se-ia, portanto, do ponto de vista da racionalidade administrativa, de um modelo tipicamente patrimonialista, do tipo que Paul Milyukov (1859-1943) identificou como “racionalidade administrativa variável”: não se estrutura, no interior do Estado, uma racionalidade plena, apenas uma racionalidade condicionada pela manutenção da estrutura do poder em mãos dos estamentos privilegiados [50].
A respeito, Paz escrevia: “O poder central, no México, não reside nem no capitalismo privado nem nas uniões sindicais, nem nos partidos políticos, mas no Estado. Trindade secular, o Estado é o Capital, o Trabalho e o Partido. No entanto, não é um Estado Totalitário nem uma ditadura (…). No México, o Estado pertence a uma dupla burocracia: a tecnocracia administrativa e a casta política. Ora, essas burocracias não são autônomas e vivem em contínua relação de rivalidade e de cumplicidade, de alianças e rompimentos com os outros dois grupos que compartem a dominação do país: o capitalismo privado e as burocracias operárias. Estes grupos, por sua vez, tampouco são homogêneos e estão divididos por querelas de interesses, de ideias e pessoas. Há também um outro setor, cada vez mais influente e independente: a classe média e os seus porta-vozes, os estudantes e os intelectuais” [51].
O constante confronto entre a Tecnocracia Administrativa e a Casta Política, terminou fazendo com que, no México contemporâneo, prevalecessem os interesses patrimonialistas sobre o esforço em prol de organizar uma gestão racional do Estado. O perfil de privatização do poder por parte dos Estamentos terminou comprometendo a eficiência e a modernização do Estado. Trata-se de uma situação contraditória. A história do México atual oscila, a cada seis anos, não entre a modernização pura e simples e o atraso, mas entre os interesses privatistas das clientelas políticas que se revezam no poder ao redor do trono do Presidente; ora, nessa luta termina sendo minimizado o esforço modernizador veiculado pela Tecnocracia Administrativa. Assim destacou Octavio Paz essa confusa realidade cujo traço fundamental é a preservação do Estado patrimonial, ou seja, a pervivência da tradição que faz com que as instituições políticas sejam sempre geridas como propriedade privada dos donos do poder:
“Falta-me mencionar outra característica notável do Estado mexicano: apesar de ter sido o agente cardinal da modernização, ele próprio não conseguiu se modernizar plenamente. Em muitos de seus aspectos, especialmente no seu relacionamento com o público e na maneira de conduzir os negócios, continua sendo patrimonialista. Num regime desse tipo, o chefe do Governo – o Príncipe ou o Presidente – consideram o Estado como seu patrimônio pessoal. Por tal motivo, o corpo de funcionários e empregados governamentais, dos ministros aos contínuos e dos magistrados e senadores aos porteiros, longe de constituir uma burocracia impessoal, forma uma grande família política ligada por vínculos de parentesco, amizade, compadrio, regionalismo e outros fatores de índole pessoal. O patrimonialismo é a vida privada incrustada na vida pública. Os ministros são os familiares e os criados do rei. Por isso, embora todos os cortesãos comunguem no mesmo altar, os regimes patrimonialistas não se petrificam em ortodoxias nem se transformam em burocracias. São o contrário de uma igreja e daí que, contrariamente ao que ocorre em corpos como a Igreja Católica ou o Partido Comunista, os vínculos entre os cortesãos não são ideológicos mas pessoais. Nas burocracias políticas e eclesiásticas, a ordem hierárquica é sagrada e está regida por regras objetivas e princípios imutáveis tais como a iniciação, o noviciado e a aprendizagem, a antigüidade no serviço, a competência, a diligência, a obediência aos superiores, etc. No regime patrimonial o que conta, em última instância, é a vontade do Príncipe e de seus colaboradores mais próximos” [52].
Esse convívio diuturno entre cortesãos movidos por interesses patrimonialistas e tecnocratas inspirados por metas de modernização, faz com que o trabalho destes últimos se torne infrutífero e que as velhas estruturas do Estado continuem agarradas ao passado de clientelismos e privilégios. Em suma, a estrutura patrimonial das instituições políticas termina comprometendo o processo de modernização da sociedade e do próprio Estado. O resultado é o atraso do país. Eis a forma em que o nosso autor explicava essa doença do sangue patrimonialista num corpo com algumas feições de modernidade:
“No interior do Estado mexicano há uma contradição enorme que ninguém conseguiu ou intentou sequer resolver: o corpo de tecnocratas e administradores, a burocracia profissional compartilha os privilégios e os riscos da administração pública com os amigos, os familiares e os favoritos do Presidente de plantão e com os amigos, os familiares e os favoritos de seus Ministros. A burocracia mexicana é moderna, propõe-se a modernizar o país e os seus valores são valores modernos. Diante dela, às vezes como rival e outras como associada, levanta-se uma massa de amigos, parentes e favoritos unidos por laços de ordem pessoal. Esta sociedade cortesã renova-se parcialmente a cada seis anos, ou seja, cada vez que ascende ao poder um novo Presidente. Tanto pela sua situação quanto pela ideologia implícita e o seu modo de recrutamento, esses corpos cortesãos não são modernos: são uma supervivência do patrimonialismo. A contradição entre a sociedade cortesã e a burocracia tecnocrata não paralisa o Estado mas torna difícil e sinuosa a sua marcha. Não há duas políticas dentro do Estado: há duas maneiras de entender a política, dois tipos de sensibilidade e de moral” [53].
Nesse contexto de dominação patrimonialista, o Partido a serviço das clientelas políticas arrebanhadas pelo Presidente da República é o grande canal de ascensão social e a esperança das novas gerações. Não se trata, no caso mexicano, de um Partido terrorista, que pretenda mudar a essência humana a ferro e fogo. O Partido Revolucionário Institucional é uma agremiação de conveniência da burocracia estatal e das clientelas políticas, é um instrumento patrimonialista que serve aos interesses de cooptação dos donos do poder e que, ao mesmo tempo, responde às necessidades dos novos segmentos sociais que buscam lugar ao sol.
Octavio Paz caracteriza, nestes termos, a função mediadora do PRI: “A natureza peculiar do Estado mexicano revela-se pela presença, no seu interior, de três ordens ou formações diferentes (mas em contínua comunicação e osmose): a burocracia governamental propriamente dita, mais ou menos estável, composta por técnicos e administradores, feita à imagem e semelhança das burocracias das sociedades democráticas do Ocidente; o conglomerado heterogêneo de amigos, favoritos, familiares, serviçais e protegidos, herança da sociedade cortesã dos séculos XVII e XVIII; a burocracia política do PRI, formada por profissionais da política, associação não tanto ideológica quanto de interesses de grupelhos e individuais, grande canal da mobilidade social e grande fraternidade aberta aos jovens ambiciosos, geralmente sem fortuna, recém saídos das universidades e dos colégios de educação superior. A burocracia do PRI está a meio caminho entre o partido político tradicional e as burocracias que militam sob uma ortodoxia e que agem como milícias de Deus ou da História. O PRI não é terrorista, não quer mudar os homens nem salvar o mundo: quer se salvar a si mesmo. Por isso quer se reformar. Mas sabe que a sua reforma é inseparável da do país. A questão que a História colocou ao México desde 1968 não consiste unicamente em saber se o Estado poderá governar sem o PRI, mas se os mexicanos deixar-nos-emos governar sem um PRI” [54].
Octavio Paz entendia que a organização patrimonialista do Estado mexicano não deixou nenhum segmento social de fora, tendo-se caracterizado por uma ampla labor de cooptação. A fim de aproximar e tornar dependente dele todo o setor produtivo, o Estado, após a Revolução Porfirista, passou a controlar rigorosamente operários e capitalistas, mediante as organizações sindicais inseridas como peças da engrenagem da burocracia estatal, sendo as únicas entidades capazes de negociar com o governo. É curioso como, no texto a seguir, o escritor mexicano identifique os estamentos da Tecnocracia Administrativa e da Casta Política com “burocracias paralelas”, quando, de fato, como acabamos de ver, o processo de dominação é exercido diretamente através deles. A realidade talvez fosse inversa: o poder patrimonial modernizador e tradicional desses estamentos, teria sido complementado mediante a organização sindical do setor produtivo.
Seja como for, eis as palavras do nosso pensador: “O Estado revolucionário fez algo mais do que crescer e se enriquecer. Como o Japão durante o período Meiji, através de uma legislação adequada e de uma política de privilégios, estímulos e créditos, impulsionou e protegeu o desenvolvimento da classe capitalista. O capitalismo mexicano nasceu muito antes que a Revolução, mas amadureceu e se estendeu até chegar a ser o que é, graças à ação e à proteção dos governos revolucionários. Ao mesmo tempo, o Estado estimulou e favoreceu as organizações operárias e camponesas. Esses grupos viveram e vivem à sua sombra, já que são parte do PRI. No entanto, seria inexato e simplista reduzir a sua relação com o poder público a um tipo de relação súdito-senhor. A relação é bastante mais complexa: de um lado, num regime de partido único como é o do México, as organizações sindicais e populares são a fonte quase exclusiva de legitimação do poder estatal; de outro lado, as uniões populares, notadamente as operárias, possuem certa liberdade de manobra. O governo precisa dos sindicatos, tanto quanto os sindicatos do governo. Na realidade, as duas únicas forças capazes de negociar com o governo são os capitalistas e os dirigentes operários. Por último, não contente com impulsionar e, em certa medida, modelar à sua imagem o setor capitalista e operário, o Estado pós-revolucionário completou a sua evolução com a criação de duas burocracias paralelas. A primeira é composta por administradores e tecnocratas; constitui o pessoal governamental e é a herança histórica da burocracia novo-hispana e da Porfirista. É a mente e o braço da modernização. A segunda é formada por profissionais da política e é a que dirige, em seus diversos níveis e degraus, o PRI. As duas burocracias vivem em contínua osmose e passam, incessantemente, do Partido ao Governo e vice-versa” [55].
[40] PAZ, Octavio. “El presente y sus pasados”, in: El ogro filantrópico, ob. cit., ibid.
[41] PAZ, Octavio. “El presente y sus pasados”, in: El ogro filantrópico, ob. cit., p. 24.
[42] PAZ, Octavio. “El presente y sus pasados”, in: El ogro filantrópico, ob. cit., pp. 98-99.
[43] PAZ, Octavio. “El presente y sus pasados”, in: El ogro filantrópico, ob. cit., pp. 87-88.
[44] PAZ, Octavio. “El presente y sus pasados”, in: El ogro filantrópico, ob. cit., p. 91.
[45] A exceção, no caso concreto dos Partidos Conservadores, talvez seria a Colômbia. Cf. a respeito, o meu livro: Liberalismo y Conservatismo en América Latina, 1ª edição, Bogotá: Tercer Mundo, 1978.
[46] PAZ, Octavio. “El presente y sus pasados”. In: PAZ, Octavio, El ogro filantrópico, ob. cit., p. 97.
[47] Cf. A minha obra: Castilhismo, uma filosofia da República. 2ª edição, corrigida e acrescida. (Apresentação de Antônio Paim). Brasília: Senado Federal, 2000.
[48] PAZ, Octavio. “El presente y sus pasados”, in: El ogro filantrópico, ob. cit., p. 30.
[49] PAZ, Octavio. “El presente y sus pasados”, in: El ogro filantrópico, ob. cit., p. 73.
[50] Cf. WITTFOGEL, Karl. Le despotisme oriental, ob. cit., p. 69.
[51]. PAZ, Octavio. “El presente y sus pasados”, in: El ogro filantrópico, ob. cit., pp. 88-89.
[52] PAZ, Octavio. “El presente y sus pasados”, in: El ogro filantrópico, ob. cit., pp. 91-92.
[53] PAZ, Octavio. “El presente y sus pasados”, in: El ogro filantrópico, ob. cit., p. 92.
[54] PAZ, Octavio. “El presente y sus pasados”, in: El ogro filantrópico, ob. cit., pp. 93-94.
[55] PAZ, Octavio. “El presente y sus pasados”, in: El ogro filantrópico, ob. cit., p. 88.–
Artigo publicado originalmente no site do autor.