“Sobre a Liberdade”, de John Stuart Mill
Introdução
Sobre a Liberdade, também comumente traduzido como Ensaio sobre a Liberdade (do original, no inglês, On Liberty), é um texto clássico, cuja temática situa-se entre a Ciência Política e a Filosofia, de autoria de John Stuart Mill (1806 – 1873). Nome que figura entre os mais expressivos do pensamento britânico – na Economia, na Filosofia e na Lógica – do século XIX, Mill é referido, comumente, como uma das vozes mais influentes e definitivas do liberalismo dito clássico.
Sobre a Liberdade pode classificar-se, no sentido estrito do termo, em Literatura e Crítica, como ensaio (o próprio Stuart Mill assim se refere a ele no prefácio da obra), seja pela sua extensão diminuta, inferior a cem laudas, seja pelo seu formato de texto livre, sem maior rigor metodológico – aliás, ideal à exposição e ao desenvolvimento do conteúdo teórico e filosófico sobre o qual versa. No entanto, a dimensão enxuta do texto não denota menor significância como reflexão: tendo sido publicado em 1859, Sobre a Liberdade rapidamente consagrou-se como texto de referência e, de lá para cá, galgou o patamar – que permanece – de obra seminal.
Comentário crítico
Em Sobre a Liberdade, Stuart Mill põe em foco e em perspectiva, de forma sem precedentes na tradição ocidental de pensamento em matéria de Política e Teoria do Estado (e mesmo em Direito), a questão do ajuste, com motricidade fina, entre a independência do indivíduo e a o controle da sociedade.
Embora os temas da liberdade e da autoridade sejam clássicos na acepção estrita do termo – já estão em Sócrates e em Platão, sobretudo, em A República –, é na obra de Stuart Mill que tem lugar, pela primeira vez, uma tentativa de equacionamento, com concretude e com tecnicidade, entre autoridade e individualidade (afinal, mesmo em obras basilares como o Segundo Tratado sobre o Governo, de Locke, a dissecação dessa natureza não havia tomado forma).
Nesses moldes, está subjacente à concepção de Sobre a Liberdade o intelecto maduro em Política e em Lógica que, à altura da sua elaboração, Stuart Mill já possui, haja vista a publicação prévia de Sistema de Lógica (1843) e de Princípios de Economia Política (1848).
Como pedra de toque para o dito equacionamento entre liberdade e autoridade – ou, em outras palavras, para operar como batuta na interação entre o sujeito e a sociedade –, Stuart Mill assenta e desenvolve teoricamente o assim chamado princípio do dano. Em suma, emerge como legítima a intervenção da sociedade sobre os direitos de liberdade do indivíduo sempre que as suas ações, efetivas ou em potencial, possam causar dano a outrem; a contrario sensu, se configurará espaço de liberdade irrestrita para o indivíduo – isto é, no bojo do qual não se afigura legítima qualquer intervenção da sociedade – com relação às ações cujos resultados digam respeito exclusivamente a ele.
Essa constitui a premissa maior, estabelecida por Stuart Mill, assim, como regra, e que, por isso mesmo, comporta exceções. Ele as enumera e as disseca, então, no desenrolar do ensaio, ao longo dos capítulos em que se divide após a Introdução: II – Sobre a liberdade de pensamento e discussão; III – Sobre a individualidade como um dos elementos do bem-estar; IV – Sobre os limites da autoridade da sociedade sobre o indivíduo; e V – Aplicações.
É notável a qualidade de elaboração e de desenvolvimento de raciocínio e o rigor lógico de Mill, no curso da obra, ao decompor exemplos e problematizações excepcionais do princípio do dano. De resto, com texto estilisticamente acessível, fluido, sem maior número de digressões, apostos ou ordens indiretas.
Assim, são bastante interessantes e, de novo, com expressivo quilate de rigor lógico-argumentativo, v.g., as considerações sobre liberdade de expressão – em que exsurge pertinente, inclusive, a propagação de opinião ou ideia falsa, porque, explica ele, a sua refutação qualifica o debate. Todavia, salvo engano interpretativo, é ao discorrer sobre a liberdade social (e política) que se leem os méritos intelectuais de melhor outorga em Sobre a Liberdade. Especial destaque, no ponto, para a categorização de distintas formas de tirania, inclusive a tirania da maioria, trecho em que há evidente intertextualidade com Tocqueville e a sua Democracia na América.
Na verdade, de todas as problematizações, exercícios teóricos de hipotetização etc. com os quais Mill trabalha – e não apenas no que se refere à liberdade social e política –, pelo menos um denominador comum emerge: a correlação umbilical entre liberdade e cidadania.
Concebida por Mill como limitação para os poderes do Estado, a liberdade constitui-se como estatuto, por um lado, de salvaguarda de direitos fundamentais ditos de primeira dimensão, e, por outro lado, de estruturação representativa do exercício do poder político. Aliás, ao conceber correlação íntima entre a liberdade, por definição, e o estatuto político-jurídico da cidadania, o teor de Sobre a Liberdade faz lembrar as reflexões (também oitocentistas, tanto na data quanto na sua conformação ideológica) de Benjamin Constant no seu célebre Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos.
Em adição, um comentário intelectualmente honesto a respeito de Sobre a Liberdade não pode deixar de mencionar que muito do que se lê nas suas páginas, hoje, já um quarto de século XXI, parece óbvio ou banal. É verdade.
A título ilustrativo, na obra, a ideia de que o indivíduo é soberano sobre o próprio corpo e a própria mente. Isso não significa, no entanto, que Sobre a Liberdade tenha envelhecido – mesmo porque os clássicos não envelhecem. Assim nos parece, hoje, isso sim, porque muito do ideário que Stuart Mill advogava tornou-se, desde o seu tempo, “standards” consolidados (neste trecho do comentário, aliás, cabe honrá-lo relembrando a sua defesa precursora da extensão do sufrágio, ou direito de voto, às mulheres).
Portanto, a aparente obviedade de muito do que está dito em Sobre a Liberdade, aos olhos de um contemporâneo, evidencia, precisamente, o tanto de arrojado que, ao tempo da sua publicação, havia nas ideias que a obra traz.
Por exemplo, em meados do século XIX, a própria noção de intimidade e privacidade como direitos fundamentais e inerentes à pessoa humana está ainda em gestação. Mill, no entanto, faz autêntico libelo em favor da individualidade, imprescindível ao bem-estar da pessoa humana. Da mesma forma, está em vigor, àquela altura, o absolutamente rígido paradigma de costumes próprio da Era Vitoriana. Mill, contudo, coloca-se como partidário, como já dito, da soberania da pessoa sobre o seu corpo e a própria mente.
Desse modo, percebe-se que não é correto interpretar Sobre a Liberdade como obra datada, mas como profundamente humanista, no ideário que a inspira. Ao menos por esse viés, trata-se de texto que jamais pode envelhecer.
Conclusão
Foi dito, ao início, que Sobre a Liberdade é uma obra seminal. Estas breves linhas – imagina-se – assim demonstram. A pertinência perene da sua leitura reside, por um lado, no fato de que o texto constitui exemplar do pensamento liberal britânico de meados do século XIX e, como tal, insere-se em retrospecto na tradição evolutiva do liberalismo. Por outro lado, mais do que expressão ou produto do seu tempo, Sobre a Liberdade reveste-se de atemporalidade e universalidade – os atributos dos clássicos – na vanguarda e no humanismo que marcadamente a distinguem. Todos esses predicados convidam, em seu conjunto, à leitura da obra, em especial, como título introdutório à bibliografia de John Stuart Mill, em que Utilitarismo (1861) e Sujeição das Mulheres (1869) mostram-se, igualmente, bastante dignos de nota.
*Fabio Miguel Baraldo é advogado radicado em São Paulo, após percurso de formação acadêmica e período de experiência profissional no Exterior (Reino Unido, Holanda, EUA, Itália), com atuação consultiva e contenciosa externa para a resolução de disputas cíveis de alta complexidade.