“Ética mínima para homens práticos”: o pensamento de Mário Guerreiro
Doutor em Filosofia pela UFRJ, Mário Guerreiro foi um nome atuante nos círculos do Instituto Liberal. Conforme relatado por ele mesmo em nosso livro Instituto Liberal: Quatro décadas em defesa da liberdade, em contato com o professor Og Leme, liderança intelectual de nossa instituição em suas primeiras décadas, descobriu que era liberal e não sabia. Entre suas contribuições, destaca-se o pequeno livro Ética mínima para homens práticos, editado em 1995 pelo próprio instituto.
Com prefácio do professor Alberto Oliva, o livro tem o propósito de identificar os princípios fundamentais de uma forma de ética que seja “válida para todos os indivíduos humanos por poder ser legitimada à luz da razão comum”, entendendo-se ética como “uma disciplina filosófica cujo objetivo de investigação é a procura de princípios regulativos das condutas corretas e incorretas”. As conclusões de Guerreiro vão na direção do liberalismo, relacionando-se, sob a ótica liberal, a reflexão ética com reflexões sobre as normas, isto é, sobre o Direito e seus limites.
Por se tratar de um trabalho calcado no mais puro encadeamento lógico das ideias, sucedendo-se pedagogicamente umas às outras e enfrentando-se a cada página o desafio filosófico do esclarecimento rigoroso dos conceitos, torna-se difícil fazer um ensaio tradicional sobre seu conteúdo. Recomendando vivamente a leitura direta do trabalho, limitamo-nos a expor, sob a forma de breves tópicos, algumas de suas ideias fundamentais:
- Chama-se Princípio de Reciprocidade Positiva a máxima segundo a qual “todo indivíduo humano deve fazer pelo outro (a favor do outro) tudo aquilo que ele gostaria que o outro fizesse por ele (a favor dele)”. Esse princípio, no entanto, por louvável que seja, é considerado demasiadamente elevado e exigente “para que seja posto em prática sistematicamente por pessoas comuns, quer dizer, indivíduos que não são santos nem heróis, mas também não são devassos nem calhordas, não são excepcionais como o gênio e o oligofrênico”. Com isso, o autor pretende encontrar uma visão ética menos elevada, mais mundana, que todos pudessem subscrever. Trata-se do Princípio de Reciprocidade Negativa, segundo o qual “nenhum indivíduo deve fazer ao outro aquilo que ele não gostaria que o outro fizesse a ele”. A isso se refere o sentido da expressão “Ética mínima”: uma orientação moral fundamental, que pode ser acolhida pelo homem comum que não se sinta apto a exercer o Princípio de Reciprocidade Positiva. Essa ética pretende “ter justificadas pretensões de universalidade e, ao mesmo tempo, justificadas pretensões de aplicabilidade prática”, isto é, ser compreensível e aceitável “por qualquer espírito razoável e aplicada aos mais importantes problemas éticos da vida cotidiana de pessoas comuns”.
- Os problemas éticos, na abordagem de Guerreiro, se distinguem por não se aplicarem no domínio da natureza. Ele só entende por ético o que envolve a relação entre pelo menos dois seres humanos, e só seriam “valores éticos” os que estivessem circunscritos à interação entre os indivíduos dessa espécie. A Ética mínima se baseia em um pequeno número de princípios de caráter universal e negativo (no sentido de se referirem ao que não se deve fazer e não ao que se deve fazer) e porque se pautam por preservar “o máximo de liberdade permissível” impondo “o mínimo de restrições necessárias (para o exercício da própria liberdade)”.
- Desejando os indivíduos viver e prover o próprio sustento, as máximas bíblicas “não matarás” e “não roubarás” derivam diretamente do Princípio de Reciprocidade Negativa. Se a aplicação de suas infrações se universalizasse, a vida em sociedade se tornaria inviável, pois a Ética mínima necessária para que ela prospere seria inviabilizada. Daí se deduz que a vida, a liberdade e a propriedade (às quais Guerreiro soma a honra, razão por que admite crimes contra a honra, como a calúnia e a difamação), defendidas pelos liberais como valores supremos, também o são à luz de uma Ética mínima.
- A Ética mínima não pode derivar da simples busca do maior prazer possível, de vez que um indivíduo pode encontrar prazer infligindo sofrimento ou a morte aos outros indivíduos humanos.
- A coerência não é um valor ético, mas um valor metodológico. Da mesma forma, virtudes como a prudência não são valores éticos, mas práticos. Um criminoso pode ser mais prudente, no exercício de sua atividade criminosa, do que um homem honesto no exercício de seus afazeres lícitos. Valores práticos estão subordinados à facilidade com que levam à consecução de um objetivo, ainda que esse objetivo seja imoral, ou seja, fira a Ética mínima. Valores éticos, ao contrário, só se verificam quando a Ética mínima é respeitada. Quando se trata de infração aos valores éticos, os fins não justificam os meios.
- A caridade e a generosidade são belas virtudes, mas só existem efetivamente quando são atos de desprendimento, espontâneos e sem coerção de uma autoridade externa. Quando os indivíduos são tratados como meios para um fim por forças externas a eles, geralmente tem-se o que Guerreiro chama de “coletivismo”, baseado na obra de seu prefaciador, o professor Alberto Oliva. “Se os objetivos não justificam os meios, não há objetivo capaz de justificar que um indivíduo humano seja tratado como um meio em função de qualquer finalidade, por mais nobre e desejável que esta possa parecer (pois não há nada mais nobre do que uma pessoa humana e sua liberdade”, defende o autor.
- Legalidade, referente ao que é admitido pelo Direito positivo, pelo ordenamento jurídico de uma nação, é diferente de legitimidade, isto é, aquilo que é correto à luz do Direito natural e da Ética – nesse caso, a Ética mínima explicitada por Guerreiro. Não obstante, nosso autor está muito preocupado com a manutenção do Estado de Direito, do ponto de vista político, o único “bem comum” cuja existência ele reconhece ao lado dos bens individuais perseguidos por cada um, no que ele se inspira em Friedrich Hayek. Sendo assim, rechaça o recurso, especialmente em ambiente democrático, a estratégias de desobediência civil, como aquelas apregoadas por Henry David Thoreau ou pelos anarcocapitalistas da tendência chamada “agorista”. Conforme Guerreiro, “o Poder Judiciário espera que cumpramos leis que não são feitas por ele, e o Poder Legislativo é o canal competente para fazer e desfazer leis, representando os anseios da sociedade civil organizada. Contudo, enquanto uma lei é vigente, tem de ser cumprida, e, se uma lei considerada injusta pela maioria dos membros da sociedade civil permanece intocável, há algo de errado nos representantes do povo ou nos representados (ou em ambos)”.
- Do Princípio de Reciprocidade Negativa que fundamenta a Ética mínima, deduz-se também que “nenhum indivíduo humano pode obrigar outro injustificadamente a fazer qualquer coisa” e “ninguém pode ser injustificadamente obrigado a fazer qualquer coisa”. A conclusão é que a Ética mínima consagra aquilo que Isaiah Berlin chamaria de “liberdade negativa”, isto é, a ausência de coerção, salvo quando a vida, a liberdade e a propriedade alheias estão sendo violadas: “uma coerção só se justifica quando um indivíduo desempenha uma conduta prejudicial aos outros. Indivíduos humanos devem ser inteiramente livres para agir desde que não produzam danos nem riscos de danos para outros”. Em caso de danos, que vão desde os danos morais até a morte, justifica-se a imposição de uma gradação de punições, restringindo a liberdade dos infratores em prol da liberdade de todos os demais.
- Sob esse princípio, as coerções podem ser ilegais e ilegítimas, legais e legítimas ou legais e ilegítimas. Uma coerção legal e ilegítima, porém, dentro de uma ordem democrática, deve ser combatida mediante a revogação das leis que a determinam e não mediante o seu descumprimento.
- A Justiça institucional, isto é, estatal, tem o monopólio da punição, um dos raros que Guerreiro considera legítimos “por razões verdadeiramente estratégicas”.
- O Princípio de Reciprocidade Mínima, embora os domínios da Ética e do Direito positivo sejam distintos, se aplica a ambos, pois se refere tanto à esfera privada quanto à pública, tanto aos fundamentos da legalidade quanto aos fundamentos da legitimidade. Por isso, a consequência política da Ética mínima é a defesa de um Estado mínimo, um Estado limitado em suas dimensões. Em essência, o Direito positivo “nada mais é do que uma ética dotada do poder de punição”. A Ética mínima não versa apenas, porém, sobre questões previstas no Direito positivo. Mário Guerreiro se refere, por exemplo, ao gesto de “furar uma fila”. Ainda que o Estado não proíba essa atitude, não havendo uma lei a seu respeito, é possível considerá-la eticamente incorreta.
- Há uma diversidade de maneiras de ser feliz. A Ética mínima contempla o reconhecimento e o respeito a um pluralismo de finalidades nas vidas individuais, desde que não se relativizem os valores básicos, o que, no campo político e institucional, implica a desconfiguração do Estado de Direito.
- A Ética mínima se alicerça no individualismo, tanto o substantivo – em contraposição ao coletivismo, “visão de mundo em que indivíduos humanos são tratados como meios”, como já mencionado – quanto o metodológico – em contraposição ao holismo, “visão metodológica de acordo com a qual entidades abstratas tais como “classes sociais” e “Estado” passam a adquirir vida própria, são dotadas de intenções e finalidades e ficam pairando acima das cabeças dos agentes sociais (que são sempre indivíduos interagindo e cooperando com outros indivíduos”.
- Apesar de não estabelecer sua Ética mínima com base nisso, o autor rejeita a ideia de que os indivíduos humanos não são capazes de atos genuinamente altruístas. “Ninguém pode obrigar ninguém a abrir mão dos seus legítimos interesses, mas ninguém pode censurar alguém que abre mão deles para ajudar alguém ou os deixa de lado por amar alguém”, sintetiza. Assemelha-se, nesse sentido, ao espírito que movera Adam Smith a escrever sua Riqueza das Nações, que também não consistia, de maneira alguma, na negação da caridade ou da fraternidade.
- A Ética mínima depende da noção de que o indivíduo humano é dotado de livre arbítrio, de que faz escolhas e é responsável por elas. Se adotássemos o determinismo nas ações humanas, deveríamos “ser todos tutelados por nossos pais ou por competentes agentes do Estado”, mas, como estes também estariam na mesma condição, não haveria meios de instaurar o Estado de Direito e legitimar o Direito Positivo, tampouco o Direito natural e a Ética.
- A agressão à integridade física alheia só pode ser admitida pela Ética mínima se houver consentimento mútuo (Guerreiro fornece o exemplo de uma luta de boxe, em que ambos se agridem, mas isso está pré-acordado).
O livro de Mário Guerreiro enfrenta, em seu conjunto, uma discussão que cotidianamente é travada entre liberais, com alguns restringindo o pensamento liberal ao âmbito político e econômico, enquanto outros querem fazer dele uma cosmovisão com uma ampla teoria ética ou moral. A meu ver, o liberalismo claramente é uma doutrina política, mas assentada em pressupostos éticos, dos quais a teoria do professor Guerreiro é uma das formulações possíveis. Não se estende, porém, a todos os campos da moralidade. Um judeu, um hindu e um católico, por exemplo, poderão discordar quanto à moralidade ou pertinência do consumo de determinados tipos de carne. Os princípios espirituais aos quais aderiram determinam concepções diferentes quanto ao que é o certo ou o errado relativamente a esse assunto. A Ética mínima de Guerreiro, atendo-se ao fundamento ético que o liberalismo contempla, dirá apenas que devem se respeitar. O que passa daí não cabe ao liberalismo determinar.