A herança cordial: por que o patrimonialismo ainda define o Brasil

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Historiador, sociólogo, crítico literário e professor universitário, Sérgio Buarque de Holanda se consagrou ao interpretar a formação da sociedade brasileira e seus padrões persistentes de comportamento. Raízes do Brasil, publicado em 1936, tornou-se sua obra mais influente ao propor uma leitura incômoda sobre as origens culturais que estruturam o nosso modo de vida.

O contexto de 1936 era marcado por instabilidade política. O país havia rompido com a Primeira República, e Getúlio Vargas consolidava um governo cada vez mais autoritário. As instituições eram frágeis, o Executivo ganhava centralidade, e o Estado forte surgia como promessa de modernização. Nesse cenário, um conjunto de intelectuais tentava compreender por que o Brasil buscava avançar, porém seguia preso a velhos padrões. Sérgio Buarque insere-se nesse debate oferecendo um diagnóstico que confrontava visões idealizadas da tradição brasileira.

A tese central do autor busca explicar como a colonização ibérica configurou a nossa vida social. Portugal e Espanha, ao contrário da ética burocrática nórdica ou protestante, tinham uma estrutura estatal centralizadora, mas com sociabilidade ancorada na casa e na família. Ao serem transplantados para o Brasil, esses traços produziram uma sociedade sem coesão institucional. A vida coletiva passou a se organizar muito mais a partir do núcleo familiar do que de uma esfera pública autônoma.

É nesse ponto que Sérgio Buarque provoca os conservadores que enxergavam na tradição uma saída para o país. Para ele, a tradição brasileira é justamente responsável pelo personalismo e pela informalidade que produziram desordem. Retomar o passado significaria, portanto, reforçar as mesmas raízes que travaram nossa modernização.

O autor identifica dois princípios de sociabilidade: o tipo aventureiro e o tipo trabalhador. O primeiro busca recompensa imediata e prestígio fácil. O segundo encara o esforço e a disciplina como condição para o êxito. Na lógica colonial portuguesa, prevaleceu o espírito de aventura. O ideal não era alcançar prosperidade pelo trabalho, mas viver como um grande senhor, valorizando o ócio e desprezando o labor manual. Essa mentalidade, segundo Buarque, moldou um Brasil que desejava ganhos sem custos, cargos sem mérito e poder sem dever.

Aqui, vale lembrar que essa interpretação se diferencia da de Gilberto Freyre. Enquanto Freyre, em Casa-grande & Senzala (1933), enxerga a herança ibérica de forma mais conciliadora, destacando a plasticidade cultural e a miscigenação, Sérgio Buarque enfatiza os efeitos negativos desse mesmo legado sobre a construção da vida pública. Já Raymundo Faoro, posteriormente, aprofundaria esse diagnóstico ao apontar o estamento burocrático como controlador do Estado e reprodutor do patrimonialismo. Há convergências entre eles, mas cada autor ilumina o problema por ângulos distintos. Essa comparação mostra que Raízes do Brasil se insere em uma tradição crítica mais ampla, oferecendo um marco dentro das interpretações sobre a formação nacional.

Sérgio Buarque sustenta que o Brasil se desenvolveu com raízes rurais. A casa-grande formou nossa sociabilidade, e as cidades surgiram sem romper com a cultura do mando privado. O resultado foi a persistência de uma esfera pública frágil, na qual a lealdade pessoal vale mais do que regras impessoais e favores continuam prevalecendo sobre direitos.

A partir do diálogo com Max Weber, o autor mostra que a cidade moderna deveria ser o polo da racionalidade e do civismo. No Brasil, isso não ocorre. As cidades crescem como extensões da ordem patriarcal e não como negação dela. Nossa urbanização, portanto, não significou emancipação da vida pública, mas sua captura por interesses particulares.

Nesse ponto, emerge a figura do homem cordial, conceito muitas vezes mal interpretado como sinônimo de gentileza. Em Buarque, cordialidade deriva de cordis, do coração, indicando a prevalência do emocional sobre o racional. O homem cordial dissolve a fronteira entre público e privado, trata o Estado como extensão da família e utiliza relações pessoais como meio legítimo de obter benefícios. A dificuldade de aceitar a impessoalidade revela um obstáculo profundo ao desenvolvimento de instituições modernas.

Ao expandir a análise para além da obra, torna-se possível observar como esse padrão cultural se manifestou em nossa literatura. Em O Continente (1949), Erico Verissimo dramatiza essa mesma lógica. A família Terra Cambará personifica o personalismo, a política do compadrio e o predomínio das emoções sobre normas. O que, em Sérgio Buarque, é teoria sociológica, em Verissimo, se torna carne e osso.

Se olharmos para o Brasil recente, a pertinência do diagnóstico se evidencia. O caso envolvendo o Banco Master e seu proprietário, Daniel Vorcaro, mostra como relações pessoais ainda moldam o acesso ao poder. A fala de que era impossível operar sem proteção política exemplifica a continuação do patrimonialismo no século 21. A norma cede lugar à amizade estratégica. A regra geral perde para o contato certo. A fronteira entre Estado e interesse privado segue difusa. Nada mais atual do que o homem cordial em operação no mercado financeiro e na política.

Ler Raízes do Brasil hoje nos permite reconhecer que as tensões entre afeto e razão, entre o privado e o coletivo, entre tradição e modernização, não são meros acidentes históricos. Elas são as engrenagens profundas de nossa formação. A reflexão de Sérgio Buarque permanece incômoda porque nos obriga a encarar a continuidade do que pensamos ter superado. Ao iluminar o passado, ele esclarece o presente e nos desafia a imaginar um futuro no qual a impessoalidade, o mérito e a vida pública finalmente se tornem valores de fato consolidados no Brasil.

*Júlia Baldi é associada do Instituto de Estudos Empresariais (IEE).

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