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Tudo posso naquele togado que me fortalece

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No Brasil da verborragia barroquista, nutrimos uma tradicional aversão a números, essas cifrazinhas prosaicas que só provocam bocejos, pois, desprovidas do encanto das canções, das poesias e dos discursos pacificadores de socorro aos mais pobres, não servem para conquistar o amor romântico, para despertar admiração e, muito menos, para vencer eleições. Porém, longe da tediosa rotina da aritmética voltada ao equilíbrio entre receitas e despesas, famílias se endividam, empresas quebram e países perdem capacidade de investimento e de oferta de serviços públicos minimamente decentes.

Em notinhas singelas que passaram despercebidas ao grande público, a mídia noticiou que o ministro Alexandre de Moraes teria adiado a votação das contas da campanha Lula-Haddad de 2018[1]. No primeiro relance, nada de excepcional diante da internacionalmente notória morosidade do Judiciário, onde litígios costumam se arrastar por anos a fio, à espera de uma caneta disposta a exercer suas funções institucionais. No entanto, o caso em apreço se reveste de duas singularidades que imporiam o seu exame prioritário: a origem da fatia majoritária das receitas questionadas, provenientes do dinheiro do cidadão, e a identidade do candidato beneficiário das contas suspeitas, que não é ninguém menos que o próximo inquilino do Planalto.

Insatisfeita com a escassez de detalhes sobre o assunto e curiosa acerca da destinação dada aos fundos expropriados do meu bolso via impostos, resolvi me debruçar sobre a petição da Procuradoria Geral Eleitoral, em que os membros do MP elencam todas as irregularidades detectadas nas contas apresentadas pela chapa Lula-Haddad, antecessora da Haddad-Manuela d’Ávila, cuja substituição ocorreu por razões policiais ainda muito vivas em nossas memórias. Pelo menos, naquelas não contaminadas pela letargia patológica alastrada nos últimos meses.  São 36 laudas de menção a fatos duvidosos, cuja íntegra pouparei a você, caro leitor exausto diante de tantos desmandos, mas dentre os quais destacarei alguns tópicos que me parecem de peculiar gravidade[2].

Já nos primeiros parágrafos, os procuradores salientam que a Assessoria de Exame de Contas Eleitorais Partidárias do Tribunal Superior Eleitoral (ASEPA/TSE), após a análise minuciosa de todas as rubricas e até de documentos novos trazidos pela equipe de campanha, emitiu, ainda em junho de 2022, um parecer conclusivo “sugerindo a desaprovação das contas, com recolhimento de R$ 14.889.050,69 ao Tesouro Nacional” (pg. 3). Logo no capítulo intitulado “Impropriedades”, o MP, com base nas evidências e ratificando os comentários da ASEPA, constatou violação explícita às nossas normas eleitorais, pois “doações recebidas antes de 9.9.2018 deixaram de ser incluídas na prestação de contas parcial, contrariando o que dispõe o art. 50, § 6º, da Resolução TSE 23.553/2017.” (pg. 6)

No capítulo “Irregularidade nas receitas”, os procuradores observaram o recebimento de recursos oriundos de fontes vedadas, de outros provenientes de fontes não-identificadas, e a ausência de vínculo contratual prévio entre os candidatos e uma empresa de financiamento coletivo, ensejando a irregularidade de módicos R$ 555.553,26 (páginas 11-13). No item “Irregularidades nas despesas”, o MP verificou omissões de gastos eleitorais, associadas à falta de comprovação de efetivo pagamento de despesas, redundando na irregularidade do gasto de R$ 210.525,00 (pg. 16). Ainda nessa rubrica, os procuradores constataram a irregularidade das despesas com fretamento de aeronave no valor de R$ 161.300,00, devido à recusa da campanha em apresentar as respectivas notas fiscais e o contrato com a empresa de táxi aéreo (pg. 20). Mais vultosos ainda foram os custos não demonstrados com serviços gráficos, no singelo valor de R$ 253.645,20, sem qualquer documentação fiscal passível de justificá-los (pg. 22).

Chegando ao patamar dos milhões de Reais, o MP também corroborou o posicionamento da ASEPA, constatando a irregularidade da modesta verba de R$ 13.438.324,10, por refletir um “pagamento desproporcional ao período de campanha e por falta de comprovação da efetiva execução do objeto” (pg. 31). Assim, tendo em vista estes e diversos outros pormenores, que retratam, em números, o abuso do dinheiro público e a cobiça pelo poder a qualquer preço, literalmente falando, os procuradores, ainda no dia 11 de outubro deste ano, enunciaram a seguinte conclusão:

“(…) Diante das irregularidades expostas, as contas não podem ser tidas como aprovadas e o Ministério Público Eleitoral sugere a determinação de recolhimento ao Tesouro Nacional do montante de R$275.265,77 e ressarcimento ao erário da importância de R$8.562.170,42, devidamente atualizados” (pg. 36).

Ora, se o parecer do MP Eleitoral, baseado nas constatações da equipe técnica do próprio TSE, tivesse chegado ao nosso conhecimento logo após sua emissão, ou seja, em plena corrida eleitoral, entre o primeiro e o segundo turnos, talvez a rejeição sugerida pelos procuradores tivesse impactado o resultado da disputa. De fato, embora a nossa Lei das Eleições não contemple qualquer punição efetiva ao candidato cujas contas tiverem sido reprovadas[3], é possível que vários cidadãos comuns, embora alheios aos tecnicismos do universo do direito ou da contabilidade, tivessem hesitado, ou até desistido de votar em alguém que, além de condenado em várias instâncias e jamais absolvido por crimes de corrupção e lavagem de dinheiro, insistia em malbaratar recursos públicos para consolidar um espúrio projeto pessoal de poder.

Contudo, não satisfeito em deixar a votação das contas de 2018 para a última 6ª feira, dia 4, o ministro Moraes ainda retirou o caso de pauta, sem proferir uma linha sequer como justificativa para a repentina postergação no exame do assunto, e em caráter sine die. Aliás, o descaso desse magistrado com o uso de verbas públicas se reflete em uma inexplicável recusa em praticar ato inerente ao seu ofício judicante, em uma omissão que pode vir a beneficiar diretamente o futuro vice-presidente da nossa Republiqueta, e, em tempos não muito distantes, padrinho do togado em questão na vida pública[4]. Seria tudo mera coincidência da nossa conjuntura política ou haveria alguma desordem promovida contra a administração, apenas para a satisfação de interesse ou sentimento pessoal? Por sequer conhecer os envolvidos, não posso responder, mas apenas exercer meu legítimo direito à dúvida.

Isso, enquanto ainda pudermos questionar algo, faculdade que pode nos ser tolhida de todo em breve. O mais recente amordaçado foi o Prof. Marcos Cintra, candidato, nesta corrida, pela chapa da senadora Soraya Thronicke, e cuja conta no Twitter acaba de ser derrubada, por determinação togada, após a singela afirmação, trazida por Cintra em sua página pessoal, de que as dúvidas suscitadas pelo atual presidente sobre as urnas merecem resposta[5]. Como se percebe da vivência diária no Brasil, a única preocupação de Moraes consiste em nos amordaçar mais a cada dia, até extinguir por completo as nossas individualidades e nos deixar idiotizados na adoração diuturna da sua “democracia”, babando e repetindo tudo o que nos for enfiado goela abaixo pelos grandes veículos de comunicação de massa.

O grande Hayek, ainda em 1960, enxergava os riscos do arbítrio e do autoritarismo em regimes ditos democráticos, sempre que a democracia não se restringir a coagir o indivíduo por meio de normas gerais, mas tentar apontar para os fins específicos a serem alcançados, entregando aos “funcionários especialistas” a escolha sobre o modus operandi para atingi-los. Nas palavras do pensador, “o que hoje constitui perigo para a liberdade individual não são os poderes que as assembleias democráticas podem deter, mas, sim, os poderes que outorgam aos administradores encarregados de alcançar certos objetivos. (…) De forma significativa, percebemos não só que os apoiadores da democracia ilimitada logo se tornam defensores da arbitrariedade e da ideia de que devemos deixar aos especialistas a decisão acerca do que é bom para a comunidade, mas também que os apoiadores mais entusiastas dos poderes ilimitados da maioria são geralmente os mesmos administradores que sabem, melhor do que todos, que, uma vez assumidos esses poderes, serão eles, e não a maioria, que de fato os exercerão[6]. Se acrescermos à palavra “administradores” o epíteto “da justiça”, perceberemos toda a aplicabilidade da lição acima aos recentes feitos dos nossos togados, que são ou seriam apenas funcionários responsáveis pela administração da justiça, por dar a cada parte litigante o que lhe cabe.

Se Hayek vivesse no Brasil dos nossos dias, certamente depararia com material farto para examinar até que ponto a preocupação retórica com o bem-estar social não só nos deixou miseráveis como também servis. E, agora, aqui estamos todos de joelhos perante as togas, incluindo, dentre os vassalos de casta superior, a classe política artificialmente beneficiada pela cúpula da magistratura.

[1] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2022/11/moraes-atende-a-pedido-do-pt-e-adia-votacao-de-contas-de-lula-e-haddad-nas-eleicoes-de-2018.shtml

[2] https://static.poder360.com.br/2022/10/Procuradoria-eleicoes-2018-Haddad-campanha-presidencial.pdf

[3] Lei 9504/97: Art. 30 – A Justiça Eleitoral verificará a regularidade das contas de campanha, decidindo:

(…) III – pela desaprovação, quando verificadas falhas que lhes comprometam a regularidade.

[4] https://www.saopaulo.sp.gov.br/sala-de-imprensa/release/geraldo-alckmin-anuncia-alexandre-de-moraes-para-a-seguranca/

[5] https://www.otempo.com.br/politica/judiciario/marcos-cintra-vice-de-soraya-thronicke-tem-conta-derrubada-no-twitter-1.2762223

[6] “A Constituição da Liberdade”, ed. Avis Rara, 2022, pg. 128

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Judiciário em Foco

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Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.

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