Liberais e conservadores, uni-vos!

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Os predicados da liberdade e das virtudes morais, quando apresentados isoladamente, são universalmente aceitos: nem mesmo ditadores histéricos e coléricos costumam denegrir publicamente a liberdade ou fazer apologia a vícios. Entretanto, quando se considera uma das formas mais elementares de liberdade — a econômica —, é muito comum associá-la com ganância, licenciosidade, permissividade, egoísmo e outras deturpações morais, o que pode levar desavisados a crerem que a liberdade desestimula a virtude. Porém, essa associação é totalmente imprópria, não só porque liberdade e virtude são inseparáveis e indivisíveis, mas principalmente porque serve de pretexto para a supressão da liberdade em favor de objetivos “superiores” decretados pelos mandachuvas — tanto os que têm votos como os que não os têm, mas vestem togas — com suas canetas ameaçadoras sempre à mão.

Mas a verdade é que, quando existe o império da lei, a economia de mercado estimula as virtudes morais. E isso significa que liberais (não no sentido norte-americano, mas no brasileiro, ou seja, defensores da liberdade econômica) e conservadores têm mais pontos em comum do que se costuma imaginar. Para entender tais semelhanças, é conveniente começar por mencionar que em uma sociedade virtuosa e de cidadãos livres há três instituições básicas, a saber: o Estado de Direito, a economia de mercado e a democracia representativa.

O Estado de Direito

Um dos desafios da modernidade no campo político é o de criar regras jurídicas que ao mesmo tempo garantam a autonomia dos indivíduos e limitem a possibilidade de danos perpetrados por terceiros. O ordenamento da sociedade segundo os três Poderes clássicos reflete uma visão realista da natureza social do homem, a qual exige uma legislação adequada para proteger a liberdade de todos. Para tal fim, é essencial que cada Poder seja equilibrado pelos demais e por outras esferas de competência que o mantenham no seu justo limite. Esse é o princípio do Estado de Direito, no qual prevalece a soberania da lei, definida como um conjunto de normas gerais, abstratas e prospectivas de conduta, e não como a expressão da vontade de um indivíduo ou de grupos esparsos de indivíduos. Aliás, na história da civilização, foi a necessidade de regras de justa conduta que levou à necessidade de existência de um ente para formulá-las e as fazer respeitar, ou seja, o Estado.

O Estado de Direito é uma solução prática para minimizar os riscos de corrosão ou mesmo de destruição da liberdade de consciência e de ação dos cidadãos por parte do próprio Estado. Seu objetivo é restringir, tanto quanto possível, as tarefas e os poderes do setor público e do processo político, ampliando ao máximo possível a liberdade individual. É a instituição mais adequada para a implantação da justiça e a única forma de organização jurídica capaz de permitir a convivência livre e harmoniosa dos indivíduos. Todavia, não é uma mera norma legal, mas uma complexa doutrina metalegal e um profundo ideal político, que diz respeito àquilo que o Estado e as leis devem ser. No plano prático ele pode ser entendido como o “império da lei”, ou seja, o respeito à autoridade moral das leis — e não à imoralidade das “leis das autoridades” —, a rigorosa delimitação constitucional dos poderes públicos, a submissão da lei ao princípio da isonomia e à eficácia da justiça.

Alguns princípios básicos configuram o Estado de Direito, como, entre outros: a supremacia da lei, a isonomia, a ausência de privilégios, o respeito aos direitos individuais, a aplicação da justiça, a promoção (e não transferência) da responsabilidade individual, a existência de salvaguardas processuais, a limitação do poder discricionário, o respeito às minorias e o constitucionalismo. O Estado de Direito é uma condição necessária para o bom funcionamento da economia de mercado e para a instauração de uma democracia representativa que não se torne despótica. Ou seja, onde não prevalece o Estado de Direito não podem existir liberdade econômica e democracia verdadeira, porém a sua prevalência não é suficiente para garantir nem uma nem outra.

A economia de mercado

A ordem de mercado pode ser sintetizada na explicação de Hayek de que não existe uma economia (como se fosse um aposento da casa sem comunicação com os demais), mas um sistema extremamente complexo formado por miríades de economias interconectadas, que são as famílias, as empresas e os negócios em geral, e de que a ciência que estuda essas interconexões é a cataláctica (ou cataláxia), que procura analisar as ordens espontâneas produzidas pelo mercado mediante as ações dos indivíduos e baseadas em normas de direito de propriedade, de respeito aos contratos e de obrigações. Uma das características essenciais de uma economia de mercado é a descoberta permanente que proporciona aos participantes, dado que o processo de mercado decorre da ação humana ao longo do tempo de milhões de indivíduos (que nem se conhecem), em condições de incerteza genuína, isto é, não mensurável.

Então, a relação entre moral e economia é necessária e intrínseca: atos econômicos e comportamentos morais se complementam intimamente, e a distinção entre ambos não significa separação entre os seus âmbitos, mas uma importantíssima reciprocidade. A dimensão moral da economia transforma em finalidades indivisíveis, não separadas e não alternativas a eficiência econômica e a promoção de um desenvolvimento solidário. João Paulo II nos deixou uma defesa clara e veemente da economia de mercado segundo essa concepção:

“A atividade econômica, em particular a da economia de mercado, não se pode realizar num vazio institucional, jurídico e político. Pelo contrário, supõe segurança no referente às garantias da liberdade individual e da propriedade, além de uma moeda estável e serviços públicos eficientes. A principal tarefa do Estado é, portanto, a de garantir essa segurança, de modo que quem trabalha e produz possa gozar dos frutos do próprio trabalho e, consequentemente, sinta-se estimulado a cumpri-lo com eficiência e honestidade. A falta de segurança, acompanhada pela corrupção dos poderes públicos e pela difusão de fontes impróprias de enriquecimento e de lucros fáceis fundados em atividades ilegais ou puramente especulativas é um dos obstáculos principais ao desenvolvimento e à ordem econômica” (Carta Encíclica Centesimus Annus, Loyola, São Paulo, 1991, nº 48, p. 65).

Na vida econômica em particular e na vida humana em geral, a primazia da moral é uma lei demonstrável e fundamental para a prosperidade, é um princípio filosófico e empírico que não pode ser violado. Quando isso ocorre, estimulam-se os vícios morais, como preguiça, desonestidade, corrupção, coerção, avareza, apropriação do Estado por máquinas partidárias, conflitos entre os três Poderes e tantos outros que, como traças, corroem a sociedade.

A democracia representativa

A verdadeira democracia não se restringe ao mero respeito formal a certas regras, nem à “vontade da maioria”, e nem aos discursos convenientes de poderosos, mas deve ser o resultado da aceitação dos valores inspiradores dos sentimentos democráticos mais autênticos: a dignidade da pessoa humana, o respeito aos direitos individuais e a consciência de que o bem comum deve ser o fim e o critério regente da vida política. Um dos maiores riscos para as democracias consiste no relativismo moral, que induz subjetivamente à negação da necessidade de critérios objetivos e universais para estabelecer o fundamento e a reta hierarquia de valores. Ora, ao negarmos a existência de verdades consagradas durante muitos séculos na civilização ocidental — a tradição judaico-cristã — para guiar e orientar a ação humana no campo político, então as ideias e as convicções podem ser facilmente instrumentalizadas e utilizadas para fins de poder. Uma democracia sem valores morais sólidos que a fundamentem pode facilmente converter-se em um totalitarismo aberto ou disfarçado (“democracia relativa”), como a história é farta em demonstrar.

A democracia é apenas um dos possíveis ordenamentos da ordem política e social, certamente aquele com menos defeitos que os homens descobriram no processo evolutivo das ordens espontâneas no plano político. Contudo, ela não pode e não deve ser vista como um fim absoluto, mas como um meio, um instrumento a serviço da dignidade da pessoa humana e do bem comum. Seu conteúdo moral não é automático, porque depende da sua conformidade ou de sua falta de conformidade com a lei moral à qual deve estar submetida, tal como acontece, a rigor, com qualquer outra forma de ação humana. Isso significa que a democracia depende da moralidade dos fins que busca e dos meios que utiliza para atingi-los.

Uma democracia representativa, no âmbito de uma sociedade virtuosa, deve atender a diversos requisitos, dentre os quais: o empenho dos eleitos na busca do bem comum; a dimensão moral da representação; o fato de que o Estado existe para servir aos cidadãos (e não para servir-se deles); a punição a qualquer forma de corrupção política, que é uma das mais graves deformações do sistema democrático, porque ela agride a um só tempo os princípios da moral e as normas da Justiça; o acesso de todos às responsabilidades públicas; o respeito total à liberdade de informação, em todos os setores da vida social, a saber, o econômico, o político, o cultural, o educativo e o religioso; o respeito à vontade da maioria, mas com o resguardo da garantia, também, dos direitos da minoria; a não ideologização do Estado e o seu não aparelhamento por representantes do partido que eventualmente ocupa o poder; e a descentralização do poder (princípio da subsidiariedade).

Liberais precisam ser mais conservadores (e vice-versa)

O homem que age e reage no campo moral é o mesmo homem racional e volitivo que age e reage nos campos da economia, da política e da religião, e é também o mesmo que age e reage nos campos cultural, esportivo e artístico. Por outro lado, a vida de todos nós — queiramos ou não — está condicionada à economia que, por sua vez, está vinculada à quantidade e à qualidade dos bens produzidos, ou seja, à atividade produtiva, que é o campo cheio de vida e animação em que deve florescer a liberdade interior dos indivíduos, das associações de indivíduos e das relações entre indivíduos, relações essas que se constituem na fonte da responsabilidade e, portanto, da moralidade das ações humanas e, por conseguinte, dos acertos e erros, das virtudes e dos vícios que existem no mundo.

Não são poucos os economistas liberais que não dão a devida atenção à importância das pautas morais nos processos econômicos e sociais, assim como existem conservadores pouco atentos ao valor da liberdade econômica e da economia de mercado. Seria desejável que ambos reconhecessem a importância e a interdependência das ligações entre economia e moral. Aliás, face à lamentável situação de deterioração institucional que estamos presenciando no Brasil, essa união entre liberais e conservadores, mais do que prudente e urgente, é vital.

Somente uma unidade assim concebida pode ser capaz de vir a formar no futuro uma novus ordo saeculorum, em cujo centro deve estar a liberdade integral e indivisível: a democracia ou liberdade política, a economia de mercado ou liberdade econômica e o pluralismo ou liberdade religiosa e de opinião, ressaltando-se que esta última é a primeira das liberdades, porque é a fonte e a síntese das outras duas. Tais elementos permitem a conciliação entre liberais e conservadores em defesa de uma práxis política objetiva, em cujo centro está a primazia da pessoa humana e que se coloca como diametralmente oposta a qualquer forma de planejamento central, de monopólio do Estado, de intervencionismo e dirigismo econômico, de niilismo, de relativismo moral e de totalitarismo.

-Artigo publicado originalmente na Revista Oeste.

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Ubiratan Jorge Iorio

Ubiratan Jorge Iorio

É economista, professor e escritor.

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