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Sobre cultura, revolução e reforma

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quedadabastilhaO homem pode, além de exercitar sua inteligência na confecção de utensílios, erigir modelos de conduta, cultos religiosos, formas artísticas diversas e muitas outras coisas. Tudo isso é resultado da sua capacidade criadora e tudo isso o distancia da realidade biológica à qual ele, de fato, pertence. O mundo cultural, portanto, é o mundo da ocupação histórica do homem e do desenvolvimento progressivo de todas as suas capacidades. Cultura é tudo aquilo que foi produzido não pela natureza, mas pela inteligência, pela habilidade, pela intencionalidade e pela inspiração do homem.

Cultura é tudo o que o homem criou, modelou, aperfeiçoou e acomodou às suas necessidades e a seus ideais. Os próprios ideais entram na definição de cultura, que pode abranger o complexo conjunto dos costumes e formas sociais no qual o indivíduo está inserido; a cultura é o produto humano da trajetória evolutiva. Negar o mundo cultural seria reduzir o homem à natureza que o contém, mas que também é transformada por ele em um dinamismo que gradativamente o eleva. Sempre que uma cultura for abertamente percebida, algo novo será conquistado e um determinado modo de vida poderá se ver refletido no espelho multifacetado das civilizações.

A cultura também pode ter um sentido semelhante ao de educação, de transmissão de valores, técnicas, símbolos e práticas que asseguram a estruturação social e formam o indivíduo. Em seu sentido mais elevado, essa definição assemelha-se ao termo grego paidéia que pode significar tanto a educação quanto o conteúdo dessa educação, sempre pautada por um ideal de perfeição moral e de excelência individual. Na antiga Roma, o termo cultura era muito utilizado, mas seu sentido era normalmente delimitado, restringindo-se a determinados setores, como era o caso, por exemplo da cultura júris, cultura scientiae, cultura litterarum, etc; na Idade média, o termo encontra-se mais ligado à realidade intelectual da classe de monges dedicada aos estudos universitários; na Renascença, refere-se principalmente aos modelos clássicos do passado; no Iluminismo diz respeito ao saber geral e enciclopédico; no positivismo serve para estabelecer a distinção entre civilizados e não civilizados, chegando-se, por fim, ao sentido antropológico que a compreende como a forma própria de um povo viver, estabelecendo-se então o consenso de que todos os povos têm a sua própria cultura.

 

Bruno Garschagen
Bruno Garschagen

A dimensão política, mais comumente tratada em nossos artigos, está inserida nesse conjuto maior chamado cultura. Não obstante, há uma determinada mentalidade, a mentalidade revolucionária, que, uma vez no poder, trabalha incansavelmente para desestruturar, desestabilizar, modificar ou mesmo destruir a cultura na qual está inserida. A propósito disso, peço licença para comentar a excelente palestra do cientista político Bruno Garschagen, proferida na minha cidade, Fortaleza, em maio de 2015, por ocasião da III Semana da Liberdade, palestra essa intitulada: “Não é política, não é economia; é CULTURA, estúpido!”.

Nessa palestra, Garschagen aponta a Revoluçao francesa como o primeiro registro de uma revolução que pretendeu destruir todo o patrimônio cultural de um povo, para refundá-lo em novas bases. Os jacobinos não queriam apenas destruir o poder que oprimia a sociedade francesa, mas destruir tudo que fora construído até alí, inclusive as coisas benéficas. Esse foi o preâmbulo da referida palestra, cujo ponto principal, me parece, é o diagnóstico da Revolução cultural em curso no Brasil.

Antes de retomarmos as análises do referido palestrante, façamos uma necessária digressão.

Sabe a Sociologia que a solidez do indivíduo encontra-se no seu entrelaçamento social, na solidariedade que o une aos outros homens. A sociedade simultaneamente constrange e impulsiona o indivíduo porque faz dele um dos pilares de sua coesão e requer dele a energia de ação para renovar a si mesma. A sociedade, portanto, arrebata o indivíduo do seu isolamento, fazendo-o ator, mesmo que inconsciente, da produção social e histórica da humanidade, com suas transformações, com suas conquistas, com seus erros e com seus acertos.  A adesão do indivíduo à sociedade se dá de forma mais ou menos elementar: inicialmente na família, posteriormente na escola, no trabalho, excepcionalmente no âmbito político, etc. Em cada um desses campos de atuação, o indivíduo acostuma-se a solicitar de si mesmo a constância nas suas obrigações, que imperceptivelmente o vincula a uma esfera de relações maiores. A coesão social dependerá em grande parte da boa inserção de cada indivíduo na esfera de atuação que lhe é própria.

Além de um programa já traçado pela sociedade e que nos esforçamos mais ou menos para seguir, cada um de nós constrói ainda uma espécie de juiz interno que nos afiança a legitimidade e a correção de nossas ações e o seu grau de aceitação perante a sociedade. Kant costumava apregoar que o dever moral atua sobre o indivíduo como um imperativo. Pois bem, tal imperativo, ou a obrigação que dele emana, torna possível a coexistência entre os homens e a manutenção da sociedade, pois induz o indivíduo à aceitação das estruturas culturais e dos valores morais já enraizados no meio em que se vive.  A obrigação moral confunde-se, dessa maneira, com a exigência social. No entanto, convém notar que a obrigação moral, o dever,  é atributo dos indivíduos livres. Pelo menos a obrigação tal como fora concebida por Kant, no sentido de uma maturidade intelectual que faz do indivíduo o único capaz de legislar sobre as próprias ações. Dependendo da situação histórica a que se refira, é possível ver na obrigação moral o ponto culminante da estrutura social bem organizada. Em outras palavras, a sociedade na qual o indivíduo age em benefício dos outros pela própria razão e não pela coerção externa encontra-se em um patamar mais desenvolvido que aquelas sociedades em que a ação do indivíduo precisa ser continuamente punida pelos seus desvios. Creio que era a isso que o referido palestrante se referia ao afirmar que uma sociedade livre exige que cada um seja ditador de si mesmo.

Pois bem, sabemos ainda que uma sociedade saudável é normalmente uma sociedade que se constrói por ordem espontânea. Cada indivíduo, ao consagrar-se ao próprio trabalho e à própria família, fortalece uma engrenagem maior do que aquela que o cerca mais intimamente. Cada indivíduo, no seu esforço de construção, de empreendedorismo e de inovação, produzindo o que lhe compete e dando o melhor de si, contribui para algo que o ultrapassa, a sociedade, dela tirando proveito na mesma medida em que a mantém. A isso também o  palestrante se referiu, fazendo notar ainda que a mentalidade revolucionária atua invertendo essa ordem natural das coisas, que é a ordem na qual a sociedade se constrói com base nos mais diversos interesses, necessidades e desejos sem um poder centralizador a definir previamente o que se deve querer, desejar e de que forma se deve agir.  Mais do que isso, ele afirmou que, aqui no Brasil, a engenharia social imposta pelo Estado implica em uma inversão de pespectiva em relação aos direitos, deveres e responsabilidades: os deveres e a responsabilidades que são, como vimos, fundamentais para a coesão e progresso da sociedade, passam a ser vistos não de forma benéfica, mas como um estorvo, como algo negativo do qual o indivíduo precisaria livrar-se, como algo a ser superado pelos direitos concedidos.

Para o palestrante, é impossível construir uma sociedade sadia e próspera, uma cultura virtuosa, se essa sociedade não fundamentar as suas aspirações, os seus desejos, o seu comportamente, a sua ação humana em deveres e responsabilidades. A sociedade brasileira, no entanto, funcionaria na base da concessão de direitos e essa mentalidade contribuiria, por sua vez, para que o discurso da concessão de direitos assumisse o protagonismo do debate político, formando com isso um ciclo vicioso: transformado o discurso da concessão de direitos em prática política, os direitos tornam-se leis; quanto mais leis são criadas garantindo ou concedendo direitos, maior o poder do Estado, maior a participação do governo na vida em sociedade e, quanto maior a intervenção do governo na sociedade (doravante legitimada por uma legislação), menor o apelo à responsabilidade, ao senso moral, ao esforço individual, ao dever.

A revolução cultural está em curso no Brasil e o Estado avança cada vez mais sobre a sociedade civil. Embora já tenha declarado oficial e publicamente seu desejo de construir a hegemonia cultural, o Partido dos Trabalhadores age capciosamente para conquistá-la. Seu  modus operandi vai desde a instrumentalização das minorias que reivindicam seus direitos, passando pela manipulação da linguagem, pela divisão da sociedade, pela tentativa de controle e censura (disfarçada em nomes-fantasias como humaniza redes ou democratização da mídia) chegando ao uso político-partidário da máquina pública e à sistematização e institucionalização da corrupção,  tranformada em método de governo e de perpetuação do poder.

Já que o ilustre conferencista Bruno Garschagen referiu-se inicialmente à Revolução Francesa, também nós o faremos. Mas, para fazer jus ao momento trágico e ao mesmo tempo poético que o Brasil vivencia, citaremos um trecho sobre política escrito por um grande poeta: “Não foram as ideias revolucionarias de 89 que deram à França do século passado a sua relativa grandeza: essa grandeza, tal qual era, resultou da libertação de forças forçadas a serem construtivas pelo espectáculo de destruição que a Revolução lhes deu.” (Fernando Pessoa In Ultimatum e Páginas de Sociologia Política. Lisboa: Ática, 1980.)

Possamos nós também libertar essas forças construtivas e fazer a nossa reforma cultural, revitalizando valores, denunciando crimes, protestando, mas sempre pensando, ponderando, refletindo até que a juventude que hoje acorda do seu sono dogmático socialista seja capaz de entrar na política e renová-la. Já que por trás da catástrofe brasileira há uma hecatombe moral, é preciso ter coragem para defender os imorreudouros alicerces da civilização ocidental, e defendê-los com o mesmo ímpeto dos que tentam derrubá-los. É preciso resgatar um legado, ressucitar máximas e, sobretudo, fazer-se entender diante de um público ávido por ideias nobres e honestas. É assim que começa a Reforma política que eu almejo.

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Catarina Rochamonte

Catarina Rochamonte

Catarina Rochamonte é Doutora em Filosofia, vice-presidente do Instituto Liberal do Nordeste e autora do livro "Um olhar liberal conservador sobre os dias atuais".

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