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Reflexões sobre a Mãe de todas as Guerras

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Há cem anos terminava o conflito que, como se acreditava, acabaria com todos os outros. “A guerra que acabaria com todas as guerras”, como diziam. Mas foi justamente o oposto. Aquela que terminaria com os horrores das outras, no fim, intensificou todos os outros conflitos posteriores. Sangue e lágrimas, como nunca, seriam derramados no século XX. Esta guerra foi a última guerra dos reis, aquela que enterrou milênios de tradição monárquica na Europa, aniquilou as dinastias mais poderosas que o mundo já conhecera e escancarou as portas para as repúblicas; foi o anúncio do fim dos impérios, foi a evidência dos efeitos colaterais e das falhas da industrialização e da economia pujante que o Ocidente exibia. O ocaso da Europa como centro do mundo político, militar, econômico e de progresso, com seu protagonismo quase inabalável por séculos, tem sua raiz nessa guerra.

Em 1914, no dia 28 de julho, estourava a Primeira das duas grandes Guerras Mundiais. Como nunca antes, nem durante a guerra Franco-prussiana, a guerra da Criméia ou mesmo as guerras Napoleônicas, tanto sangue manchou o solo, não da Europa, mas do planeta. No dia 11 de novembro de 1918, essa loucura bélica teria seu fim, desfigurando e moldando a face do mundo como nenhum outro conflito fez na História, cavando os sulcos que as correntes das águas do mundo seguiriam, em todo século XX, firmando as causas que embasariam um confronto ainda maior e mais sangrento: a Segunda Guerra Mundial.

Cem anos após essa catástrofe, porém, é necessária certa reflexão. Somos rebentos diretos dessa calamidade que, contudo, pode nos ensinar muito sobre a própria humanidade e como ela se comporta, no tempo.

Os séculos e milênios não são totais. Os períodos e as localidades em que os Homens viveram e fizeram sua História carecem de absolutismo. A História jaz em um terreno chamado realidade, em características que a transpassam e a embasam, para sua existência. Essa metahistória é crucial para a caminhada da humanidade no mundo, seja em qualquer época em que ela vive. A Natureza humana é metahistórica: como nossa condição é determinada por leis e características próprias de nossos seres, esta condição natural é algo determinante para qualquer ato humano existir; mesmo certezas que vão para além do Homem e sua natureza também precedem a História: 2 com 2 sempre dará 4, e essa Verdade sempre existiu e existirá, no universo, não importando as mudanças que abarquem toda a Criação. Nossos atributos naturais funcionam da mesma maneira.

A Primeira Grande Guerra não escapa do drama humano que perpassa as areias do tempo. Ela, como um fruto de sua época, só ocorreu por conta das circunstâncias contemporâneas e prévias, dentro de conjunturas que determinaram, não apenas a invasão da Sérvia pelo Império Austro-húngaro, mas sim todos os eventos que precederam tal ação, assim como a ajuda que a Rússia daria aos sérvios em resposta à retaliação do Imperador austro-húngaro contra os sérvios. Uma verdadeira montanha de fatos desconexos foi crucial para a deflagração e a escalada de uma guerra que eclipsaria todas as outras anteriores – para terem uma pequena noção, os grandes conflitos do século XIX, como a Guerra da Criméia ou a Guerra de Secessão Americana, inteiros, somam um número de mortes equivalente ao de “meras” batalhas na Grande Guerra, como as do Somme e Verdun, ambas com um milhão de mortos cada.

Todas as peças-chave para a escalada de tal guerra eram tão conectadas, mas ao mesmo tempo tão soltas entre si, que este evento não pode ser descrito, como todo grande evento na História, como algo necessário e obrigatório dentro do desenvolvimento da humanidade e seu progresso no tempo. Apenas para servir de exemplo, se a Sérvia tivesse permitido que investigadores do Império Austro-húngaro averiguassem o que estava por trás da morte do Arquiduque Ferdinando, possivelmente não haveria nada além de um conflito regional dos Balcãs; se a França não tivesse armado a Sérvia com canhões e rifles modernos, possivelmente ela não estaria tão propícia a financiar e incentivar grupos terroristas contra a Austro-Hungria como fez; se a Rússia não tivesse mobilizado suas tropas na fronteira e esperasse o primeiro ministro e o presidente da França chegarem à Paris para, enfim, acertarem as comunicações sobre a guerra contra a Alemanha (já que esta declarou guerra ao Czar enquanto os líderes franceses se encontravam em um navio para a França), talvez não haveria uma guerra, ou mesmo se o governo alemão não fosse tão precipitado em declarar guerra a Rússia, França e Reino Unido, uma penumbra de dúvidas poderia impossibilitar que aquela tensão diplomática se tornasse um conflito bélico.

Por mais que as tensões políticas, econômicas, militares e colônias compusessem as bases que levariam à deflagração da Primeira Guerra, um emaranhado de decisões precisava existir para a deflagração ocorrer. No mundo dos homens, no entanto, mil e um fatores podem fazer com que essas deliberações aconteçam. O Arquiduque Ferdinando não precisava continuar a perambular pelas ruas com seu carro, após a explosão de uma granada que quase destruiu seu carro, porém ele queria agradar a esposa – uma decisão familiar, sem dúvidas, mas, dentro da dinastia dos Habsburgos e dentro da política europeia desde a assimilação da cultura germânica pelo Ocidente, é uma decisão tanto política quanto militar o herdeiro do trono ter uma boa relação com sua mulher, a futura Imperatriz – e, assim, foi parar justamente no lugar onde ele e sua consorte morreriam pelas mãos de Gavrilo Princip.

O fato de a guerra não ser inevitável se dá pelo motivo de as grandes potências da época (França, Império Alemão, Império Austro-húngaro, Reino da Itália e o Império Russo) não quererem, a todo custo, um conflito que durasse anos e que consumisse seus países. Mesmo que, em suas mentes, admitissem que a possibilidade de uma guerra em larguíssima escala estourasse, acreditavam que a Rússia não interferiria nos Balcãs, se Francisco José, Imperador Austro-Húngaro, decidisse anexar algum país de lá. A Alemanha garantia uma aliança com Francisco José e essa segurança dada pelo governo alemão asseverou uma guerra contra a Sérvia – guerra esta que era necessária, já que o herdeiro do trono havia sido assassinado por um grupo terrorista, o Mão Negra, financiado pelo governo Sérvio, este que financiava vários outros grupos nacionalistas extremistas, além de ter uma característica expansionista.

O Império Russo, contudo, estava sendo garantido por sua aliança com a França. Na mente do Czar, tal aliança era tão segura que nem foi preciso contatar os líderes da França para pôr seu maciço exército nas fronteiras do país, pronto para invadir seus inimigos.

É curioso como o cenário é ao mesmo tempo caótico e ordenado. Podemos ver todas as tensões preexistentes entre os países, como a crise do Marrocos entre a França e a Alemanha, a nos Balcãs e o expansionismo imperialista dos austro-húngaros, a concorrência econômica entre o Reino Unido e a Alemanha, o nacionalismo impregnado na maior parte das potências e nos grupos terroristas… e ainda assim, o “acaso”, o desconexo, permeia todo o cenário.

Esse peso da casualidade pode ser visto e teorizado em qualquer tempo histórico, incluindo aquele que passa apenas ao redor do pequeno mundo do indivíduo, em sua vida familiar e profissional. Isso põe em questão qualquer teoria, das mais totais às mais modestas, que tente penetrar na marcha temporal que engloba o Homem. De início, pode-se constatar que nenhuma teleologia faz muito sentido. Se a eventualidade de qualquer fato é decisiva para ações que movem indivíduos e coletivos, então não adiantará nada uma teoria com um gancho estruturalista para abordar os eventos históricos e o andar da História através das gerações. “Mentalidades de classe”, ou mesmo ideologias de grupos não serviriam para averiguar nenhuma grande mudança, ainda que, ao mesmo tempo, não fossem descartadas como importantes nas decisões e ações ocorridas.

Com efeito, esse caos não é tão caótico, mas se mostra incontrolável a tal ponto que não nos permite fazer projeções naturais para a História. Não se pode confundir, aqui, consequências diretas de ações na História com essas teleologias que visam demonstrar rotas naturais por onde a humanidade seguirá, no curso do tempo. Uma ação sempre gera a implicação, como, por exemplo, o ato de cortar uma árvore irá fazer com que ela caia no chão, porém o efeito “caótico” está justamente no futuro das decorrências desse ato: a árvore pode não cair no chão, ficando presa nos galhos de outras árvores, talvez impossibilitando o lenhador de retirá-la do local; ela pode cair para um lado não premeditado pelo lenhador; o machado pode quebrar e, enfim, ele nunca conseguir derrubar a árvore; o homem pode desistir de cortar a árvore no meio do processo, um animal pode atacá-lo… os exemplos podem se estender ainda mais, e estamos falando apenas do simples ato de cortar lenha (!).

Sendo a Primeira Guerra Mundial a mãe de nossa situação atual, de diversos países espalhados pela Europa, do enfraquecimento das monarquias e do número de repúblicas que se seguiu ao ocaso dos grandes Impérios do Velho Mundo, a regra vale para nossas Repúblicas e democracias atuais. Se as coroas caíram das cabeças dos monarcas, não foi por conta de uma marcha inevitável contra um passado retrógrado, mas sim por uma miríade de detalhes imbuídos nesse devir. O futuro, em qualquer cenário, não é algo necessário e isso é uma constatação lógica.

Tratando-se de uma guerra, crises de ansiedades em comandantes e generais, bem como nas tropas; a condição das colheitas, a temperatura no campo de batalha e até mesmo posições geográficas e se choveu ou não em algum lado do terreno de batalha, são as condições que poderiam virar o jogo da guerra. Os rumos que o Ocidente tomou no início do século XX foram tanto influenciados pela quantidade de ratos nas trincheiras quanto pelo sentimento republicano que crescia na Europa – mas será que se houvesse menos ratos, doenças e água nas trincheiras alemãs, se tempestades afastassem a marinha britânica do cerco aos portos teutos e se deslizamentos dificultassem a vida nas batalhas montanhesas para os sérvios, haveria essa quantidade de repúblicas atualmente? Elas seriam tão naturalmente boas que brotariam “do nada”, como um alarme de relógio programado para despertar alguém do sono? Com certeza, não.

Será que o comunismo conseguiria triunfar da maneira que trunfou, se a Tríplice Aliança fosse a vitoriosa? O fascismo teria tanto espaço para se fazer presente sem o revanchismo alemão e austríaco? O monarca alemão permitiria milícias nazistas nas ruas? Adolf Hitler seria o sujeito que foi? Enfim… existiria nazismo nos anos 30 e 40? Se, tendo as coisas ocorrido do modo que ocorreram, sabemos o que foi crucial para o crescimento do nazismo e fascismo, jamais poderíamos, no entanto, esbanjar alguma certeza se a Tríplice Aliança fosse a vitoriosa, ou se as monarquias não fossem dissolvidas.

Essa noção da História, porém, não serve apenas para rebater revolucionários e progressistas no geral. Conservadores podem muito bem (na verdade, devem) olhar para o passado e dele tirar lições proveitosas, entendendo, assim, mais de si mesmos, de seus próprios movimentos. Se a situação política da Europa mudou, se séculos e milênios de ordem foram simplesmente revirados e abandonados para a construção de repúblicas e novas formas de governo, isso só pode nos dar uma certeza: nada dura, por mais poderoso que seja, nesse mundo. Isso também vale para nós, nossas ideias, a ordem que defendemos e nossas concepções de progresso e prosperidade. O mundo pode, a qualquer momento, virar de cabeça para baixo e remexer toda ordenação atual e todo mapa geopolítico vigente.

A Mãe de todas as Guerras tem ainda muito a nos ensinar, mas apenas refletindo sobre seu começo já podemos vislumbrar o verdadeiro oceano que é a Natureza humana, essa constante que é ao mesmo tempo inconstante dentro da História. Em vão pensam aqueles que só veem um futuro dourado pela frente, um crescimento contínuo e necessário dentro do Ocidente ou mesmo da humanidade. Esse progressismo não passa de um sonho infantil quando os ventos das grandes tempestades realmente nos alcançam, mudando tudo o que conhecemos.

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Hiago Rebello

Hiago Rebello

Graduado e Mestrando em História pela Universidade Federal Fluminense.

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