Russell Kirk e a Moderna Ordem Liberal
Muitas pessoas acreditam na incompatibilidade entre a tradição conservadora e a doutrina liberal, o que, de fato, não é verdadeiro, no plano teórico e na esfera da política. A verdadeira interlocução entre o conservadorismo e o liberalismo, de acordo com o eminente filósofo conservador inglês Sir Roger Scruton (1944-2020), “não é de absoluto antagonismo, mas sim de simbiose”, pois, mesmo que ambas as concepções doutrinárias sejam bastante distintas, em termos de mentalidade e de práticas de ação, é possível afirmar que “o liberalismo só faz sentido no contexto social que o conservadorismo defende”. Deve-se acrescentar também que tanto a primeira-ministra britânica Margaret Thatcher (1924-2013) quanto o presidente americano Ronald Reagan (1911-2004), os dois líderes responsáveis pelas mais importantes reformas liberais implementadas no final do século XX, eram representantes do conservadorismo político.
Em muitos aspectos, a moderna tradição política conservadora deve ser compreendida como uma das muitas vertentes do liberalismo. Tido como precursor do conservadorismo, o pensamento contrarrevolucionário do filósofo e estadista irlandês Edmund Burke (1729-1790), membro da facção liberal “whig” no parlamento britânico, apresenta uma reação aos excessos da Revolução Francesa, que, orientada por concepções abstratas, ameaçavam os costumes morais, as convenções sociais e a continuidade histórica entre o passado, o presente e o futuro. Na oposição aos elementos ideológicos e revolucionários de algumas vertentes do liberalismo, que, em maior ou em menor grau, anteciparam as práticas socialistas, a vertente conservadora do liberalismo busca, por um lado, preservar a defesa liberal tanto dos direitos individuais à vida, à liberdade e à propriedade privada quanto das instituições do Estado de Direito, da economia de livre mercado e do sistema representativo, ao passo que, por outro lado, desvencilha-se dos elementos progressistas mais radicais. A vertente conservadora do liberalismo é caracterizada pela adoção da prudência, do ceticismo, do organicismo e do tradicionalismo. Indubitavelmente, o historiador, filósofo, politólogo, crítico literário, professor universitário, literato, jornalista e editor Russell Kirk (1918-1994) foi o maior expoente da tradição conservadora burkeana em sua época, tendo sido um dos principais responsáveis pela difusão, no século XX, do pensamento do filósofo e estadista irlandês.
A grande importância de Russell Kirk é limitada, muitas vezes, ao fato de o livro The Conservative Mind [A Mentalidade Conservadora], publicado, originalmente, em 1953, ser considerado a gênese do moderno conservadorismo nos Estados Unidos da América por parcela significativa dos analistas. Por um lado, o pensamento kirkiano foi responsável por apresentar as contribuições teóricas e práticas dos estadistas ou pensadores que foram os maiores expoentes do conservadorismo nos ambientes britânico e americano. Por outro lado, a atuação de Kirk tanto como intelectual quanto como ativista criou em seu país as bases doutrinárias de um movimento político e cultural que perdura até os nossos dias.
O chamado movimento intelectual conservador americano, conforme o relato apresentado pelo historiador George H. Nash, pode ser entendido como uma coalizão entre três correntes distintas, cada uma delas orientada por um determinado livro. Herdeira das críticas elaboradas pelos autores individualistas da chamada “Old Right” (velha direita) aos programas governamentais intervencionistas do New Deal, implementados pela presidência de Franklin Delano Roosevelt (1882-1945), a primeira facção foi a dos “libertários”, que, guiados pela famosa obra The Road to Serfdom [O Caminho da Servidão], do filósofo e economista austríaco Friedrich August von Hayek (1899-1992), lançada em 1944, opuseram-se ao planejamento econômico estatal e ao centralismo administrativo defendido pela agenda progressista liberal do Partido Democrata, ao ressaltar a importância do livre mercado como condição necessária para a preservação das liberdades individuais. O segundo grupo, formado pelos “anticomunistas”, inspirou-se, principalmente, na autobiografia Witness [Testemunha], do jornalista americano Whittaker Chambers (1901-1961), publicada em 1952, na qual o autor narra, dentre outros fatos, o próprio envolvimento com as ideias marxistas, sua atuação em favor dos soviéticos, sua conversão ao Cristianismo e a luta que iniciou contra a ideologia esquerdista, tendo denunciado a infiltração de agentes comunistas no governo dos Estados Unidos da América, bem como nos órgãos da imprensa, em diversas instituições educacionais e nos ambientes culturais. Finalmente, a terceira agremiação é composta pelos “tradicionalistas”, também denominados, em oposição aos chamados “neoconservadores”, de “conservadores culturais” ou de “paleoconservadores”, que, entretanto, preferem o rótulo apenas de “conservadores”, tendo sido inspirados pelo famoso livro supramencionado de Russell Kirk, que, além de ter fornecido um nome ao movimento, rompeu a aparente hegemonia do liberalismo progressista. O monumental estudo A Mentalidade Conservadora recuperou a dignidade do conservadorismo nos Estados Unidos da América e ofereceu uma genealogia à corrente, tendo apresentado os principais autores e estadistas que deveriam servir como orientação. De modo distinto ao que ocorreu com os anticomunistas e com os libertários, o tradicionalismo kirkiano fornece uma visão que transcende os elementos da política e da economia, pois também ressalta a importância da moral e da cultura.
Todavia, a ampla produção intelectual kirkiana vai além das sólidas muralhas do conservadorismo, visto que as pesquisas do erudito homem de letras abrangeram os campos da História, da Filosofia do Direito, da Educação, dos Estudos Culturais, da Crítica Literária, da Análise Social e da Economia, dentre outros variados temas, além de Russell Kirk ter legado uma vasta produção literária no campo da ficção sobrenatural, sendo autor de três romances, bem como de duas dezenas de contos. Diferentemente da maioria dos intelectuais contemporâneos, o denominado “Mago de Mecosta” viveu uma existência integrada, na qual a sua atuação pública, por intermédio de um princípio místico e sacramental, harmonizou-se com a sua vida privada, visto que testemunhou com grande convicção os valores morais propagados nas suas obras.
I – Vida e obra de Russell Kirk
O último trabalho escrito por Russell Kirk foi a sua autobiografia The Sword of Imagination [A Espada da Imaginação], lançado postumamente em 1995, sendo o melhor relato sobre a sua trajetória intelectual. Tendo sido redigido em terceira pessoa, conforme o modelo das narrativas autobiográficas clássicas estabelecido desde Júlio César (100-44 a.C.) até Henry Adams (1838-1918), o livro é um vívido relato da luta do autor contra os “gângsteres” intelectuais de nossa época, sendo um texto fundamental para compreender as relações entre a sua vida e a sua obra.
Em 19 de outubro de 1918, Russell Amos Kirk nasceu na cidade de Plymouth, próxima a Detroit, no sudeste de Michigan, tendo falecido, aos 75 anos, no dia 29 de abril de 1994, em sua residência ancestral, denominada Piety Hill, localizada na pequena vila de Mecosta, no noroeste do mesmo estado. Era o filho primogênito do maquinista Russell Andrew Kirk (1897-1981) e da garçonete Marjorie Rachel Pierce Kirk (1895-1943), que também foram os progenitores de uma menina sete anos mais nova do que o irmão. O menino herdou do pai o ceticismo em relação às teorias sociais abstratas, a indiferença aos modismos e o apreço pela sabedoria do senso comum. A mãe contribuiu, de modo decisivo, no despertar da imaginação do filho, por intermédio da leitura dos contos de fadas e das estórias infantis clássicas, tendo estimulado o gosto pela leitura. Já o seu avô materno, Frank H. Pierce (1867-1931), aguçou no imaginativo neto a paixão pela História. A época em que nasceu foi descrita pelo próprio Kirk, em sua autobiografia, como sendo um período no qual a casca da velha ordem moral e social havia sido quebrada em consequência da Primeira Guerra Mundial, da Revolução Bolchevique e do colapso do Império dos Habsburgos.
Após ter recebido dos pais e dos avôs a formação do caráter e da imaginação, Russell Kirk estudou na Starkweather School e na Plymount High School, tendo obtido, no ano de 1940, o título de B.A. em História pela Michigan State University. Em 1941, recebeu o M.A. em História, pela Duke University, por uma pesquisa sobre o estadista sulista conservador americano John Randolph de Roanoke (1773-1833), cujo resultado é seu primeiro livro, John Randolph of Roanoke: A Study in Conservative Thought [John Randolph of Roanoke: Um estudo sobre Pensamento Conservador], lançado, originalmente, em 1951, tendo recebido, sob a denominação John Randolph of Roanoke: A Study in American Politics [John Randolph of Roanoke: Um estudo de Política Americana], três reedições revistas e ampliadas pelo próprio autor. Durante o período da Segunda Guerra Mundial, serviu ao Exército americano, sob a patente de sargento, no estado de Utah, onde desempenhou em uma fábrica de armas químicas apenas funções burocráticas. Ingressou, em 1948, na University of Saint Andrews, na Escócia, tendo sido agraciado com o prestigioso título de Doctorem Literatum, no ano de 1952, em decorrência da pesquisa detalhada que, no ano seguinte, foi lançada no formato de seu mais notório livro, o já mencionado A Mentalidade Conservadora, que se tornou grande marco intelectual do conservadorismo, sendo tido como a mais importante obra acerca da temática.
Lecionou em diferentes instituições de ensino superior, dentre as quais se destacam a Michigan State University, a University of Detroit, a Long Island University, a Pepperdine University, o Hillsdale College e a Grand Valley State University, entretanto, optou por trabalhar, a maior parte de sua vida, como conferencista, como editor e como escritor, devido ao fato de não compactuar tanto com o baixo nível intelectual dos professores e dos alunos quanto com o burocrático, ideológico e limitador modelo de educação superior vigente, há muitas décadas, em todos os países ocidentais. Realizou inúmeras conferências em seu país e na Europa, com destaque especial para a atuação em programas de formação do Intercollegiate Studies Institute e para a série de palestras trimestrais que proferiu na Heritage Foundation. Com o objetivo de difundir o pensamento conservador junto ao público acadêmico, fundou, em 1957, o periódico trimestral Modern Age, no qual ocupou o cargo de editor até 1959. Para divulgar livros conservadores, fundou, em 1960, o periódico trimestral de resenhas The University Bookman, tendo sido o seu editor até a morte. Ocupou os cargos de juiz de paz em Morton Township, de diretor do programa de ciências sociais do Educational Research Council of America e de presidente tanto da Philadelphia Society quanto da Wilbur Foundation.
O volume da produção intelectual de Russell Kirk é impressionante. Legou-nos cerca de 3.000 artigos de opinião para jornais, 814 artigos acadêmicos veiculados em diferentes periódicos, 255 resenhas de livros, 68 prefácios ou introduções para livros de outros autores, 26 livros acadêmicos e 9 volumes de contos sobrenaturais ou coletâneas de pequenas estórias de fantasia, terror, ficção científica e sátira política. A sua magnificência intelectual foi amplamente reconhecida, não apenas em seu país. Diversos trabalhos de sua autoria foram traduzidos para outros idiomas e lançados no exterior. Os escritos do ilustre conservador estão disponíveis em alemão, em búlgaro, em chinês, em coreano, em espanhol, em holandês, em italiano, em norueguês, em polonês, em russo, em tcheco e também em português. Além de ter sido agraciado com doze doutorados honoris causa em áreas distintas, concedidos por diferentes instituições de ensino superior, teve a honra de ser o único intelectual condecorado por Ronald Reagan com a Presidential Citizen’s Medal for Distinguished Service to the United States [Ordem de Mérito da Presidência por Eminentes Préstimos aos Estados Unidos], tendo o famoso estadista afirmado sobre o ilustre erudito que:
“Como profeta do conservadorismo americano, Russell Kirk ensinou e inspirou uma geração. De sua sublime e elevada posição em Piety Hill, penetrou profundamente nas raízes dos valores americanos, escrevendo e editando trabalhos centrais de filosofia política. Sua contribuição intelectual foi um profundo ato de patriotismo.”
Em 1960, durante uma conferência de uma instituição anticomunista, Russell Kirk conheceu a jovem Annette Courtemanche, uma estudante de Letras que era 22 anos mais jovem do que ele e que era a única moça a palestrar no evento. Após desenvolver uma profunda amizade intelectual com a jovem por intermédio de ampla troca de cartas, casou-se com ela em 19 de setembro de 1964, tendo a união do casal gerado quatro filhas, sendo estas Monica, Cecilia, Felicia e Andrea. Outro importante fruto desse matrimônio, além da prole, foram a grande amizade e o companheirismo entre Russell e Annette, que possibilitaram ao pensador uma melhor sistematização de suas ideias e um maior desenvolvimento das suas potencialidades intelectuais. Após a sua morte, sua viúva criou o Russell Kirk Center for Cultural Renewal, que, até os nossos dias, preserva o importante legado do pensamento kirkiano e colabora na formação acadêmica de muitas pessoas.
O estilo de vida de Russell Kirk esteve pautado nos mesmos princípios conservadores que defendeu em suas obras. Depois de ter peregrinado por anos em uma longa jornada na busca pelas razões de sua fé na ordem transcendente, converteu-se ao Catolicismo em 1964 e, desde então, passou a ter uma concepção sacramental mais profunda da realidade que o cercava, levando às páginas impressas uma visão de humanidade cheia de cores e mistérios, composta por uma série de tradições e costumes guiados pela Lei Natural. Apesar de não ter descuidado dos estudos e das atividades profissionais, após o casamento, viveu em função da família, sendo um marido exemplar, bem como um pai carinhoso e atencioso. Preferia o ambiente calmo da pequena cidade de Mecosta, em Michigan, à agitação dos grandes centros urbanos. Optou por uma existência modesta em Piety Hill, cercado de livros, de amigos e de estudantes, em vez do sucesso efêmero do mundo acadêmico e político. Mesmo viajando bastante para ministrar conferências, passou a maior parte do tempo, nos últimos anos da vida, com a família e os amigos, dedicando-se às tarefas de orientar os estudos de muitos jovens, de organizar sua produção intelectual e de finalizar a escrita de sua autobiografia.
II – A essência do conservadorismo
A defesa do conservadorismo, tanto no plano moral e cultural quanto no plano político, é a marca característica do pensamento de Russell Kirk, que ecoa as reflexões tanto de Edmund Burke quanto de diversos outros pensadores e estadistas que, em maior ou menor grau, deram continuidade ao legado burkeano. No vasto conjunto da produção intelectual kirkiana, a análise e a divulgação dos ideais conservadores está presente em diversos artigos e em diferentes livros.
Indubitavelmente, sua obra mais importante e mais famosa é o livro A Mentalidade Conservadora, devido ao fato de ter sistematizado em termos principiológicos e históricos o conservadorismo político moderno, tendo exposto os seus princípios fundamentais e apresentado sua genealogia nos ambientes britânico e americano, sendo responsável pela recuperação da dignidade dessa corrente intelectual política junto ao público. Ao partir da definição de conservadorismo, o autor fez uma ampla e profunda análise dessa vertente de pensamento cultural e político desde os seus primórdios, no final do século XVIII, com a influente reação contrarrevolucionária burkeana até as reflexões culturais e a produção artística do literato T. S. Eliot (1888-1965), em meados do século XX, tendo destacado as variadas contribuições doutrinárias de John Adams (1735-1826), de George Canning (1770-1827), de Sir Walter Scott (1771-1832), de Samuel Taylor Coleridge (1772-1834), de John C. Calhoun (1782-1850), de James Fenimore Cooper (1789-1851), de Orestes Brownson (1803-1876), de Alexis de Tocqueville (1805-1859), de Nathaniel Hawthorne (1804-1864), de Benjamin Disraeli (1804-1881), do cardeal John Henry Newman (1801-1890), de James Fitzjames Stephen (1829-1894), de George Gissing (1857-1903), de Arthur Balfour (1848-1930), de Irving Babbitt (1865-1933), de Paul Elmer More (1864-1937) e de George Santayana (1863-1952), dentre muitos outros. O livro, que não pretendia ser um escrito político, recebeu enorme destaque e reconhecimento graças à exposição em seis cânones dos princípios fundamentais do conservadorismo e da apresentação da genealogia de seus mais importantes representantes britânicos e americanos, tendo desafiado, assim, o aparente consenso do progressismo liberal vigente em seu país. De acordo com a exposição de Kirk, os seis cânones fundamentais do conservadorismo são:
1º) Crença em uma ordem transcendente, ou em um corpo de leis naturais, que rege a sociedade, bem como a consciência;
2º) Afeição pela prolífera diversidade e mistério da existência humana, em oposição à uniformidade limitadora, ao igualitarismo e aos propósitos utilitaristas da maioria dos sistemas radicais;
3º) Convicção de que a sociedade civilizada requer ordens e classes, oposta à noção de uma “sociedade sem classes”;
4º) Crença de que liberdade e propriedade estão estreitamente ligadas;
5º) Fé no uso consagrado e desconfiança dos “sofistas, calculistas e economistas” que reconstruirão a sociedade com base em projetos abstratos;
6º) Reconhecimento de que a mudança pode não ser uma reforma salutar: a inovação impetuosa pode ser uma conflagração destruidora, em vez da tocha do progresso.
Na época da publicação do livro, a maioria dos críticos à perspectiva kirkiana acusaram a obra A Mentalidade Conservadora de ser extremamente acadêmica, devido ao fato de apresentar uma narrativa mais descritiva do que prescritiva, de modo que parecia não oferecer uma análise concreta, nem novas soluções, para as diversas aflições das sociedades modernas. A resposta de Russell Kirk a essas vozes dissonantes foi oferecida em seu livro A Program for Conservatives [Um Programa para Conservadores], lançado em 1954 e reeditado em 1989 com o título Prospects for Conservatives [Perspectivas para Conservadores], que destaca alguns pontos práticos que precisam ser enfrentados para a renovação do entendimento das ordens moral e social. No intento de sugerir meios adequados para preservar as “coisas permanentes”, foram elencados os seguintes pontos:
1º) Proteger o intelecto da esterilidade e da uniformidade da sociedade de massas;
2º) Ressuscitar as aspirações do espírito e os ditames da consciência numa época que não valoriza a honra;
3º) Preservar a verdadeira humanidade das pessoas contra a massificação promovida nas sociedades industrializadas;
4º) Garantir a justiça social evitando a inveja de cada homem contra os semelhantes;
5º) Satisfazer as justas aspirações individuais e rejeitar os desejos injustos;
6º) Preservar a variedade e a complexidade social;
7º) Manter o controle do Estado nas mãos da sociedade e obrigar os governantes a agirem de acordo com a reta razão;
8º) Garantir uma continuidade, pela educação, entre diferentes gerações.
O programa conservador defendido por Russell Kirk não é uma ideologia reacionária ou imobilista que se volta contra a mudança social defendida pelo reformismo dos liberais clássicos. Além de defender tanto os direitos inalienáveis da pessoa humana à vida, à liberdade e à propriedade privada quanto as instituições do Estado de Direito, da economia de livre mercado e do sistema representativo, semelhantemente às propostas da maioria das vertentes do liberalismo, o conservadorismo kirkiano pode ser caracterizado como sendo uma profunda síntese de conselhos pautados na virtude da prudência, que, ao rejeitar os modernos elementos ideológicos e revolucionários, alerta para os riscos de se fazer tábula rasa dos valores e costumes, testados historicamente, em nome da arrogância racionalista de se criar uma nova ordem a partir dos caprichos humanos.
Dentre os inúmeros escritos de Russell Kirk, duas biografias intelectuais merecem destaque especial. A primeira delas é Edmund Burke: A Genius Reconsidered [Edmund Burke: Redescobrindo um Gênio], de 1967, na qual é apresentado um amplo resumo do contexto histórico, da vida e das ideias centrais do filósofo e estadista irlandês, sendo uma das melhores introduções ao pensamento político burkeano. O outro volume é Eliot and His Age: T. S. Eliot’s Moral Imagination in the Twentieth Century [A Era de T. S. Eliot: A Imaginação Moral do Século XX], de 1971, que, além de ser a melhor biografia intelectual sobre o poeta, dramaturgo e ensaísta americano naturalizado inglês, pode ser considerado uma das obras-primas de Russell Kirk, pois, ao tomar como fio condutor o pensamento eliotiano, assim como a biografia, o contexto histórico, a produção artística e as reflexões críticas do famoso literato, estrutura e condensa várias ideias da própria visão kirkeana de conservadorismo a respeito de tópicos fundamentais como a natureza humana, a cultura, a educação, a História, a sociedade e a política, ao ressaltar o modo como as inovadoras criações do biografado sempre estiveram em constante diálogo com a tradição.
Outro trabalho que necessita receber maior atenção é a curiosa obra The Intelligent Woman’s Guide to Conservatism [O Guia do Conservadorismo para a Mulher Inteligente], de 1957, que, após anos fora do mercado editorial, foi reeditada, em 2019, com o título Concise Guide to Conservatism [Guia Conciso para o Conservadorismo], tendo sido, sob a denominação de Breve Manual de Conservadorismo, lançada em português. O livro reúne os textos revistos pelo próprio autor das doze palestras que Russell Kirk ministrou no final da década de 1950 para um grupo do Partido Republicano de mulheres. O trabalho em questão apresenta uma visão sintética do conservadorismo e ressalta as conexões dessa doutrina com a fé religiosa, a consciência, a individualidade, a família, a comunidade, o governo justo, a propriedade privada, o poder e a educação, discutindo, também, as relações entre permanência e mudança, bem como o significado da República, não enquanto sistema político, mas como ideal de vida pública.
O conservadorismo de Russell Kirk, em muitos aspectos, manifestou-se de forma mais acentuada não em grandes tratados, mas por intermédio de diversos ensaios, reunidos em diferentes coletâneas. A primeira delas foi Beyond the Dreams of Avarice: Essays of Social Critic [Além dos Sonhos de Avareza: Ensaios de Crítica Social], de 1956, na qual encontramos em vários artigos a mais sistemática crítica kirkeana à ideologia liberal progressista contemporânea. No volume Enemies of the Permanent Things: Observations of Abnormity in Literature and Politics [Inimigos das Coisas Permanentes: Observações sobre as Aberrações em Literatura e Política], de 1969, o autor discutiu, ao longo de diferentes textos ensaísticos, a maneira pela qual os vícios modernos, tanto na literatura quanto no estadismo, estão relacionados ao processo de “desagregação normativa” criado pelas ideologias secularistas, que tentam ocupar o lugar das verdades tradicionais acerca das normas internas da alma e das normas externas da sociedade. Devido ao fato de representarem o corolário das reflexões elaboradas pelo pensamento kirkiano, as suas mais famosas coletâneas de ensaios são The Politics of Prudence [A Política da Prudência], de 1993, e Redeeming the Time [Redimir o Tempo], de 1996, que reúnem os textos revistos pelo autor das diversas conferências que ele ministrou na Heritage Foundation entre o final da década de 1970 e início dos anos 1990, nas quais discorreu sobre aspectos variados tanto das ordens política e social quanto das ordens cultural e moral.
Cabe aqui uma breve exposição mais detalhada sobre o livro A Política da Prudência, que discute de forma sintética os princípios do conservadorismo, tendo lançado críticas severas aos erros das ideologias contemporâneas. Ao romper com a inadequada dicotomia entre a direita e a esquerda nos embates políticos, Russell Kirk defende que, em nossa época, as duas forças antagônicas são os reformadores pautados na experiência e prudência que defendem as “coisas permanentes”, de um lado, e, de outro, os ideólogos entorpecidos pelas ideologias que desejam revolucionar a ordem moral e social. Nesse sentido, o conservadorismo kirkiano não é apenas um adversário das diferentes formas de socialismo, mas, também, um crítico tanto da reducionista absolutização do livre mercado proposta por alguns membros da vertente libertária do liberalismo quanto do chamado neoconservadorismo, fundado na crença ingênua segundo a qual a democracia seria o meio de salvação da humanidade, cujo intento é a exportação artificial do modelo americano para outras nações. Sem negar a importância das estruturas econômicas e das instituições políticas, o conservadorismo kirkiano enfatiza os valores morais e culturais dos indivíduos, bem como o papel da família e das comunidades locais, especialmente as igrejas, visto que as pessoas são os verdadeiros agentes sociais.
III – As raízes históricas da civilização americana
A análise das instituições e da história dos Estados Unidos da América são o meio utilizado por Russell Kirk para estabelecer em sua própria nação, a partir dessa experiência concreta específica, uma completa visão universal dos valores da civilização ocidental que devem ser conservados em seu país. Os fundamentos teóricos de seus estudos históricos são as noções de sociedade e de cultura apresentadas pelo pensamento burkeano, pela crítica eliotiana e pela metafísica neotomista, acrescidas das semelhantes concepções de Filosofia da História propostas nos escritos de Santo Agostinho (354-430), de Christopher Dawson (1889-1970), de Arnold Toynbee (1889-1975) e de Eric Voegelin (1901-1985), dentre outros.
De acordo com a análise de Russell Kirk, uma nação sem princípios é uma sociedade incivilizada. Em seu livro The American Cause [A Causa Americana], de 1957, defendeu que os conceitos fundamentais dos Estados Unidos da América são os mesmos que norteiam todas as demais nações que fazem parte da civilização ocidental, sendo esses os princípios de ordem, de liberdade e de justiça, que devem pautar as instituições políticas e orientar a ação dos indivíduos. Nessa referida obra, demonstrou que todas as sociedades de base civilizacional judaico-cristã e greco-romanas são compostas por três subsistemas autônomos e interdependentes que fornecem um corpo de princípios para a vida social. O primeiro e mais importante é o sistema moral, fundado na religião cristã, que garante uma correta visão sobre o homem, reconhece sua dignidade, aponta os seus direitos e deveres naturais, e também demonstra a imperfectibilidade dos projetos humanos devido à marca do pecado original. O segundo é o sistema político, que trata das relações públicas dos cidadãos entre si e com o Estado, visto como autoridade legítima por ser o representante dos valores da sociedade e o garantidor da ordem. O terceiro, mas não menos importante, é o sistema econômico, que abrange as relações privadas de produção e troca entre os indivíduos, além de limitar o papel do governo como colaborador do desenvolvimento material da sociedade, enquanto árbitro de conflitos em potencial.
Em seu monumental livro The Roots of American Order [Os Fundamentos da Ordem Americana], de 1974, a experiência dos Estados Unidos da América é apresentada por Russell Kirk não como o resultado de um mero excepcionalismo, mas como o resultado dos valores da civilização ocidental, sendo caudatária de princípios recebidos da tradição. Ao refutar o mito da historiografia liberal, de acordo com o qual a independência dos Estados Unidos da América teria sido um empreendimento revolucionário iluminista, o amplo relato kirkiano demonstrou que a formação cultural e institucional da nação americana foi eminentemente conservadora, devido ao fato de o processo de formação nacional desse país ser herdeiro dos importantes legados da revelação de Deus ao povo de Israel, da política e da filosofia da Grécia antiga, da cultura e das instituições da civilização romana, e da cristandade ocidental formada na Antiguidade e no Medievo, bem como das diferentes etapas do desenvolvimento histórico da modernidade. Nesse sentido, as experiências da Filadelfia, com a Declaração de Independência, em 1776, e com a Constituição, em 1787, seriam herdeiras de acontecimentos nas cidades de Jerusalém, de Atenas, de Roma e de Londres.
Ao longo dos vários ensaios da coletânea The Conservative Constitution [A Constituição Conservadora] de 1990, republicado, em 1997, com o título Rights and Duties [Direitos e Deveres], Russell Kirk fez um importante alerta sobre a necessidade da vigência de regras jurídicas objetivas, pautadas na Lei Natural e nos costumes, que devem atuar como salvaguardas da ordem, da liberdade e da justiça, além de ter criticado o secularismo, que tenta eliminar a dimensão religiosa como verdadeiro fundamento das regras de convivência social. Opondo-se ao multiculturalismo, demonstrou no livro America’s British Culture [A cultura britânica da América], de 1993, que a manutenção da ordem social necessita da existência de valores culturais comuns, expressos pela mentalidade, pela língua e literatura, pelos costumes e pelas instituições sociais da nação, sendo que, no caso americano, não é possível abdicar dos princípios e das instituições legados pela herança britânica, que conectam a nação americana com os valores mais amplos da civilização ocidental, em favor da adoção de um autoindulgente “American Way of Life” (caminho americano da vida) ou da arrogante tese do “excepcionalismo americano”.
IV – Cultura e educação
Em muitos aspectos, o conservadorismo kirkiano defende os mesmos princípios universais apresentados nos escritos de G. K. Chesterton (1874-1936), com a ideia de “democracia dos mortos”, e de C. S. Lewis (1898-1963), com a noção de “Tao”, que são expressões, respectivamente, da Tradição e da Lei Natural, bem como as definições de cultura propostas pela historiografia dawsoniana e pelo criticismo eliotiano. Nesse sentido, o tema mais importante do pensamento de Russell Kirk é, sem dúvida, um dos menos conhecidos e enfatizados pela maioria dos analistas de sua obra. Trata-se do conceito kirkiano de “Imaginação Moral”, que reflete o fato de o conservadorismo não ser apenas uma proposta política, mas, principalmente, um estilo de vida, forjado pela educação e pela cultura, que se expressa numa forma de humanismo cristão, sustentado por uma concepção sacramental da realidade. Nessa perspectiva, os fatos e circunstâncias culturais, especialmente a moralidade, não devem ser vistos como acidentes históricos, mas como desenvolvimentos necessários da própria natureza humana, a partir de uma evolução social não planejada, ou seja, uma ordem espontânea que emerge da interação entre pessoas e entre povos. Consequentemente, a partir de tais premissas, entende-se que a cultura sobrevive e se desenvolve com base em determinados valores religiosos.
O conceito de Imaginação Moral foi retirado de uma passagem da obra de Edmund Burke, tendo sido enriquecido com reflexões elaboradas pelo Cardeal John Henry Newman, por Irving Babbitt, por G. K. Chesterton e por T. S. Eliot, dentre outros. De acordo com Russell Kirk, a chamada Imaginação Moral é a capacidade distintamente humana de conceber a pessoa como um ser moral, sendo um processo por intermédio do qual o eu cria metáforas a partir das imagens captadas pelos sentidos e guardadas na mente, e que, então, são empregadas para descobrir e julgar correspondências morais na experiência. Na perspectiva kirkiana, a Imaginação Moral se opõe às formas corrompidas e anárquicas de imaginação que dominam o cenário cultural de nossa época, sendo estas as seguintes:
1ª) A Imaginação Idílica, que na busca de emancipação dos constrangimentos convencionais, se torna fantástica e sem restrições, primitivista e utópica, numa total rejeição e revolta contra velhos dogmas, hábitos e costumes;
2ª) A Imaginação Diabólica, que, pela perda do conceito de pecado e por entender a natureza humana como algo infinitamente maleável e mutável, faz as normas morais transformarem-se em valores relativos ao eu ou à cultura.
Além de ter sido objeto de diferentes ensaios nas coletâneas Inimigos das Coisas Permanentes, A Política da Prudência e Redimir o Tempo, a temática da Imaginação Moral assume no livro A Era de T. S. Eliot a posição de fio condutor da narrativa que descreve a importância do conservadorismo eliotiano. Por intermédio dos padrões de normatividade oferecidos pela Imaginação Moral, os indivíduos desenvolvem a capacidade ética de discernir acerca do que a pessoa humana pode ser. Guiados por alegorias ou outras formas de expressão simbólica, tornam-se capazes os membros da comunidade humana de absorver a correta ordem da alma e a justa ordem da sociedade, ao diferenciar o verdadeiro e o falso, o bem e o mal, o belo e o feio. Uma correta visão da Lei Natural e da natureza humana é oferecida também pela Imaginação Moral, cujos elementos podem ser apreendidos nas grandes narrativas religiosas, míticas e literárias de nossa civilização. Na cruzada que moveu contra o relativismo cultural dominante, Russell Kirk defendeu que a Imaginação Moral deve ser incentivada por intermédio de uma profunda renovação pedagógica.
Tendo como base não apenas os escritos do Cardeal John Henry Newman, de Irving Babbit e de T. S. Eliot, dentre diversos outros importantes analistas, mas também a própria experiência como docente e a criteriosa observação dos desastrosos experimentos progressistas no ensino, Russell Kirk dedicou muitas de suas reflexões aos problemas educacionais. A atual crise no ensino vigente em todas as sociedades ocidentais, de acordo com a percepção do ilustre conservador americano, deve-se à limitação da autoridade dos pais, à diminuição do envolvimento das igrejas e à falta de maior atuação das comunidades locais, por um lado, e, por outro, ao processo de estatização do ensino. Juntamente com o aumento do poder dos burocratas da educação e dos sindicatos de professores, merece destaque nesse processo a compulsória imposição por diretrizes governamentais dos ideológicos modelos pedagógicos, com destaque para as progressistas concepções de John Dewey (1859-1952), por sua vez inspiradas tanto no igualitarismo, no democratismo e no sentimentalismo de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) quanto no utilitarismo de Jeremy Bentham (1748-1832) e no idealismo de Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831).
Os escritos sobre temas educacionais ocupam um espaço significativo na produção intelectual kirkiana, sendo um objeto que merece investigação mais detida dos pesquisadores e que, até o momento, não recebeu a atenção devida. Diversos artigos de opinião de Russell Kirk publicados tanto na coluna “To the Point” [Direto ao Ponto], entre 30 de abril de 1962 e 29 de junho de 1975, em diferentes jornais de grande circulação em todo o seu país, quanto na coluna quinzenal “From the Academy” [Da Academia], veiculada na National Review, de 19 de novembro de 1955 até 17 de outubro de 1980, discutem questões específicas sobre os problemas educacionais que assolam as nossas sociedades ocidentais. Além de um capítulo exclusivo sobre a temática no livro Breve Manual de Conservadorismo, diferentes ensaios nas coletâneas Inimigos das Coisas Permanentes, A Política da Prudência e Redimir o Tempo abordam a temática. No entanto, os principais escritos do conservador americano sobre o referido assunto são os livros Academic Freedom: An Essay in Definition [Liberdade Acadêmica: Um Ensaio em Definição], de 1955, The Intemperate Professor and Others Cultural Splenetics [O Professor Intemperado e Outras Rabugices Culturais], de 1965, e Decadence and Renewal in the Higher Learning: An Episodic History of American University and College since 1953 [Decadência e Renovação no Ensino Superior: Uma História Episódica da Universidade Norte-Americana desde 1953], de 1978.
De acordo com a perspectiva kirkiana, a decadência da educação, visível no fanatismo e mediocridade de parcela significativa tanto dos professores quanto dos alunos, deve ser combatida pela implantação de um modelo educacional humanista, livre dos desvios da burocracia governamental e sindical, guiado pelas famílias, amparado pelas igrejas e outras associações voluntárias, pautado no ensino dos clássicos da civilização ocidental, comprometido com a sensibilidade artística e preocupado em despertar a busca pela sabedoria e a prática das virtudes. Em linhas gerais, Russell Kirk enfatizou em seus diversos escritos sobre a temática os referidos princípios aqui ressaltados, que devem ser propagados por verdadeiras concepções educacionais, desprovidas do ópio ideológico e do intervencionismo estatal ou sindical, visto que nesses ensinamentos morais repousam os mais importantes fundamentos de uma sociedade livre, justa e próspera.
V – O legado kirkiano no Brasil
Há mais de uma década, os escritos de Russell Kirk estão sendo difundidos em nosso país. No período entre 2008 e 2010, veiculamos no periódico COMMUNIO: Revista Internacional de Teologia e Cultura diversos artigos do conservador americano. Além de ter lançado, em 2015, a biografia intelectual Russell Kirk: O Peregrino na Terra Desolada, de nossa autoria, foram publicados pela É Realizações os livros A Era de T. S. Eliot: A Imaginação Moral do Século XX, em 2011, A Política da Prudência, em 2013, Edmund Burke: Redescobrindo um Gênio, em 2016, e A Mentalidade Conservadora: De Edmund Burke a T. S. Eliot, em 2020, sendo que para os quatro volumes contribuímos com estudos introdutórios. Uma primeira edição em português do Breve Manual de Conservadorismo foi lançada, em 2021, pela Trinitas, sendo que a mesma casa editorial publicou, em 2023, uma edição revista e ampliada da mesma obra, com prefácio, posfácio, notas explicativas e revisão técnica elaborados por nós.
Além de nosso supramencionado livro, publicamos outros escritos sobre o pensamento kirkiano. Um verbete de nossa autoria sobre Russell Kirk foi veiculado no Dicionário de Filosofia Política, organizado por Vicente Paulo Barretto e Alfredo Culleton, lançado, em 2010, pela Editora Unisinos, sendo o presente ensaio uma versão revista e ampliada do texto em questão. Nas edições em português, lançadas pela É Realizações, dos livros A Era de T. S. Eliot: A Imaginação Moral do Século XX, A Política da Prudência, Edmund Burke: Redescobrindo um Gênio, e A Mentalidade Conservadora: De Edmund Burke a T. S. Eliot foram veiculadas, respectivamente, as apresentações à edição brasileira “A vida e a imaginação de Russell Kirk”, “A Formação e o Desenvolvimento do Pensamento Conservador de Russell Kirk”, “O lugar de Edmund Burke no conservadorismo kirkiano e as análises de Russell Kirk sobre o pensamento burkeano” e “O Lugar da Mentalidade Conservadora Kirkiana no Conservadorismo Moderno”, todas as quatro de nossa autoria. A editora Trinitas, na segunda edição revista e ampliada do Breve Manual de Conservadorismo, publicou o nosso prefácio “A Importância do Conservadorismo Kirkiano”.
No contexto que marcou a emergência da chamada “Nova Direita”, força pujante na política brasileira atual, os escritos de Russell Kirk foram citados em obras de diferentes autores nacionais. Referências ao pensamento kirkiano podem ser encontradas nos livros O Mínimo sobre Conservadorismo, de Bruno Garschagen; A Imaginação Totalitária, de Francisco Razzo; Contra a Idolatria do Estado, de Franklin Ferreira; e Guia Bibliográfico da Nova Direita, de Lucas Berlanza.
Obras de autores estrangeiros traduzidas para o português e publicadas no Brasil, ao longo da última década, ressaltam a importância do pensamento kirkiano. Dentre esses trabalhos, destacamos o verbete sobre Russell Kirk escrito por Nicolas Kessler veiculado no monumental O Dicionário do Conservadorismo, organizado por Frédéric Rouvillois, Christophe Boutin e Olivier Dard, bem como os capítulos sobre o pensamento do conservador americano nos livros A Beleza Salvará o Mundo, de Gregory Wolfe, e A Mente Comum, de Andre Gushurst-Moore, além das passagens nos volumes Conservadorismo: Um Convite à Grande Tradição, de Sir Roger Scruton, Conservadorismo: A Luta Por Uma Tradição, de Edmund Fawcett, e O Movimento Intelectual na América desde 1945, de George H. Nash.
Todavia, muito antes do recente fenômeno da “Nova Direita”, os escritos de Russell Kirk foram conhecidos no Brasil, entre as décadas de 1960 e 1990, por alguns dos grandes intelectuais liberais brasileiros das gerações anteriores. A obra pioneira a mencionar o pensamento kirkiano em nosso país foi Os Construtores do Império, de 1968, no qual o historiador e filósofo João Camilo de Oliveira Torres (1915-1973) utilizou os seis cânones elencados em A Mentalidade Conservadora na sua definição de conservadorismo, que antecede o relato sobre o Partido Conservador, que, entre 1837 e 1889, foi a mais importante força política do regime monárquico brasileiro. Em diversas passagens de seu imprescindível livro O Espírito das Revoluções, de 1996, o nosso finado amigo embaixador José Osvaldo de Meira Penna (1917-2017) citou o ilustre pensador americano.
Ao buscarmos melhor compreender o pensamento burkeano, por indicação de nosso finado mentor Og Francisco Leme (1922-2004), o pensamento kirkiano, em 1996, foi-nos apresentado por nosso saudoso mentor Ubiratan Borges de Macedo (1927-2007), que citou o pensador americano em seu livro Liberalismo e Justiça Social, de 1995, tendo incentivado o nosso estudo sistemático da temática, razão pela qual dedicamos a biografia intelectual que escrevemos sobre o ilustre conservador à memória do filósofo, historiador e jurista brasileiro que guiou os nossos passos iniciais na pesquisa desse objeto. Na segunda edição revista e ampliada, de 2018, de seu livro História do Liberalismo Brasileiro, ao dissertar sobre o volume Russell Kirk: O Peregrino na Terra Desolada, escrito por nós, o nosso saudoso e estimado mentor Antonio Paim (1927-2021) fez a seguinte afirmação:
“Mantendo-se fiel, simultaneamente, aos princípios sociológicos e econômicos hayekianos de Og Francisco Leme e às reflexões históricas e filosóficas de Ubiratan Borges de Macedo, o estudo de Alex Catharino sobre o pensamento kirkiano aponta um caminho possível para um diálogo entre o liberalismo conservador e o liberalismo social. O trabalho de Alex Catharino também procura ressaltar a importância de não se negligenciar o legado da tradição liberal brasileira, ao mesmo tempo que acentua a necessidade de um maior conhecimento da doutrina elaborada no exterior.”
De nossa parte, a título de conclusão, esperamos que a leitura das obras de Russell Kirk atue como uma espécie de fármaco não apenas para a grave mazela do pensamento esquerdista dominante entre a intelectualidade brasileira, mas também para distúrbios menores constatados entre alguns membros da “Nova Direita” em nosso país. Por um lado, além de reforçar a importância da defesa tanto da liberdade individual e da propriedade privada quanto das instituições do Estado de Direito, da economia de livre mercado e do sistema representativo, os escritos do ilustre conservador americano poderão exorcizar do imaginário de muitos brasileiros que se identificam com o conservadorismo os nefastos vícios do autoritarismo, do intervencionismo, do centralismo, do nacionalismo, do moralismo, do sectarismo e do dogmatismo. Por outro, o conhecimento do pensamento kirkiano por todos os adeptos do liberalismo poderá esclarecer a importância de combater as posturas ideológicas, progressistas e revolucionárias, bem como de conservar a legítima Tradição, enquanto parte da ordem espontânea que garante o vínculo entre o passado, o presente e o futuro, além da necessidade de congregar liberdade com moralidade. Espero que todos apreciem a leitura das obras de Russell Kirk, que, na cruzada literária em favor das “coisas verdadeira”, empunhou a espada da imaginação para defender a ordem, a liberdade e a justiça contra os diferentes inimigos desses princípios fundamentais sobre os quais todas as sociedades civilizadas deveriam estar sustentadas.
VI – Sugestões de leituras em português
BERLANZA, Lucas. Guia Bibliográfico da Nova Direita: 50 Livros para Compreender o Fenômeno Brasileiro. Pref. Alex Catharino. São Paulo: LVM Editora, 2022.
CATHARINO, Alex. Russell Kirk: O Peregrino na Terra Desolada. Pref. Luiz Felipe Pondé. São Paulo: É Realizações, 2015.
CATHARINO, Alex. “Russell Kirk (1918-1994)”. In: BARRETO, Vicente & CULLETON, Alfredo (Eds.). Dicionário de Filosofia Política. São Leopoldo: UNISINOS, 2010. p. 289-293.
FAWCETT, Edmund. Conservadorismo: A Luta Por Uma Tradição. Trad. Pedro Elói Duarte. Lisboa: Edições 70, 2021.
FERREIRA, Franklin. Contra a Idolatria do Estado: O Papel do Cristão na Política. São Paulo: Vida Nova, 2016.
GARSCHAGEN, Bruno. O Mínimo sobre Conservadorismo. Campinas: O Mínimo, 2023.
GUSHURST-MOORE, Andre. A Mente Comum: Política, Sociedade e Humanismo Cristão de Thomas More a Russell Kirk. Trad. Fernando Silva. São Paulo: LVM Editora, 2021.
KESSLER, Nicolas. “Russell Kirk (1918-1994)”. In: ROUVILLOIS, Frédéric ; BOUTIN, Christophe & DARD, Olivier. O Dicionário do Conservadorismo. Trad. Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: É Realizações, 2023. p. 348-350.
KIRK, Russell. A Era de T. S. Eliot: A Imaginação Moral do Século XX. Apres. Alex Catharino, intr. Benjamin G. Lockerd Jr., trad. Márcia Xavier de Brito. São Paulo: É Realizações, 2011.
KIRK, Russell. A Mentalidade Conservadora: De Edmund Burke a T. S. Eliot. Apres. e posf. Alex Catharino; pref. Henry Regnery; trad. Márcia Xavier de Brito. São Paulo: É Realizações, 2020.
KIRK, Russell. A Política da Prudência. Apres. Alex Catharino; intr. Mark C. Henrie; trad. Gustavo Santos e Márcia Xavier de Brito. São Paulo: É Realizações, 2013.
KIRK, Russell. Breve Manual de Conservadorismo. Pref. e posf. Alex Catharino; intr. Wilfred M. McClay; quest. Bruce Frohnen; trad. Ulisses Teles e Helena Mussoi. São Paulo: Trinitas, 2ª ed. rev. e ampl., 2023.
KIRK, Russell. Edmund Burke: Redescobrindo um Gênio. Apres. Alex Catharino, pref. Roger Scruton, trad. Márcia Xavier de Brito. São Paulo: É Realizações, 2016.
MACEDO, Ubiratan Borges de. Liberalismo e Justiça Social. Pref. Antonio Paim. Rio de Janeiro: IBRASA, 1995.
MEIRA PENNA, José Osvaldo de. O Espírito das Revoluções: Da Revolução Gloriosa à Revolução Liberal. Pref. Antonio Paim. Campinas: VIDE, 2a ed., 2016.
NASH, George H. O Movimento Intelectual na América desde 1945. Trad. Roberta Sartori. São Paulo: LVM Editora, 2023.
PAIM, Antonio. História do Liberalismo Brasileiro. Pref. Alex Catharino. São Paulo: LVM Editora, 2ª ed., 2018.
RAZZO, Francisco. A Imaginação Totalitária: Os Perigos da Política como Esperança. Rio de Janeiro: Record, 2016.
SCRUTON, Roger. Conservadorismo: Um Convite a Grande Tradição. Trad. Alessandra Bonrruquer. Rio de Janeiro: Record, 2020.
TORRES, João Camilo de Oliveira. Os Construtores do Império: Ideais e Lutas do Partido Conservador Brasileiro. Brasília: Edições Câmara, 2017.
WOLFE, Gregory. A Beleza Salvará o Mundo: Recuperando o Humano em uma Era Ideológica. Pref. Rodrigo Gurgel, trad. Marcelo Gonzaga de Oliveira. Campinas: Vide Editorial, 2015.
*O presente ensaio é uma versão revista e ampliada do verbete “Russell Kirk (1918-1994)”, veiculado no Dicionário de Filosofia Política, organizado por Vicente Paulo Barretto e Alfredo Culleton, lançado, em 2010, pela Editora Unisinos, conforme informado no texto.
Dedicamos o presente trabalho à inteligente, talentosa, bela e sensível historiadora Veridiana Palmieri, que, dotada da burkeana “graça natural da existência” enfatizada pela imaginação kirkiana, inspirou-nos na reelaboração deste ensaio, além de ter sido uma paciente interlocutora ao longo processo de escrita e a revisora da versão final do texto.