Progressismo sem consentimento: o erro político de impor virtudes

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Vivemos uma era de palavras desgastadas. Entre elas, poucas foram tão corrompidas quanto “progressista”. O termo, que deveria designar um espírito voltado à construção, à liberdade e ao aperfeiçoamento das instituições humanas, passou a significar, com frequência, o contrário: a crença de que se pode impor a todos uma nova moral, mesmo à força do Estado.

Progredir é um verbo nobre. Implica caminhar, superar erros, preservar o que funciona, corrigir o que falha. O problema começa quando essa ideia de progresso é convertida em bandeira ideológica. “Progressista”, então, já não significa quem busca o bem comum com base em razão, liberdade e consentimento, mas sim quem se arroga o direito de reeducar os outros — inclusive contra a vontade deles.

Essa distorção revela um equívoco conceitual grave: confundir progresso com imposição. Em nome de um suposto avanço civilizacional, exige-se não apenas o respeito a estilos de vida diversos, mas a adesão subjetiva a eles. Não basta mais tolerar — é preciso aplaudir, endossar, celebrar. Do contrário, o dissenso será tratado como atraso, intolerância ou até crime de opinião.

O paradoxo é evidente: em nome das minorias, viola-se o indivíduo. Em nome da liberdade, cala-se quem discorda. A mesma lógica que condena imposições morais do passado repete a fórmula — agora com sinal trocado. O discurso muda, a estrutura permanece: há um grupo que detém a verdade e outro que deve se curvar.

A democracia, no entanto, não pode ser confundida com unanimismo moral. Ela é, por definição, o regime da maioria. Mas essa maioria é limitada: não pode suprimir direitos que não lhe pertencem. Vida, liberdade, propriedade — nenhum de nós os delegou ao Estado. São anteriores a ele, e é por isso que a minoria mais fundamental que existe, como dizia Ayn Rand, é o próprio indivíduo.

Esse é o ponto que muitos progressistas contemporâneos ignoram: não há verdadeiro progresso onde há coerção. O que deveria ser avanço vira dominação. O que deveria ser pluralismo vira silenciamento. O que deveria ser liberdade vira norma obrigatória.

Talvez o debate mais urgente do nosso tempo não seja entre progressistas e conservadores, mas entre quem entende os limites do poder e quem quer redesenhá-los ao sabor da própria vontade.

Na raiz desse problema, está uma inversão da lógica política: a ideia de que o Estado existe para educar o indivíduo. É um erro grave. O Estado não é professor nem guia moral. É apenas um instrumento — imperfeito, coercitivo por natureza — criado para proteger os direitos fundamentais. Quando tenta ir além disso, passa a ditar comportamentos, controlar consciências, corrigir pensamentos. Torna-se tirânico, ainda que em nome de um suposto bem.

Em tempos recentes, essa tendência se intensificou. Políticas públicas passaram a ser elaboradas com base em agendas morais, não em princípios universais. Discurso virou política de Estado. Divergir de certas pautas deixou de ser um direito e passou a ser um problema — a ser combatido, exposto, punido. Em nome da virtude, reabilitou-se a censura. Em nome da inclusão, ergueram-se novas formas de exclusão.

Tudo isso se dá sob o manto de palavras bonitas: diversidade, tolerância, equidade. Mas essas palavras, descoladas de seu sentido original, viram ferramentas de controle. Quem define o que é “inclusivo”? Quem decide o que é “intolerável”? O critério muda conforme a agenda, e o resultado é que a política deixa de ser espaço de mediação para se tornar campo de doutrinação.

É aqui que o conceito de consentimento ganha centralidade. Não o consentimento retórico das massas capturadas por palavras de ordem, mas o consentimento real, individual, que fundamenta a legitimidade de qualquer poder sobre o cidadão. David Hume já alertava que a maioria dos governos não se originava de um contrato propriamente dito, mas de costume, hábito e estabilidade — e que a ideia de um “consentimento original” era, na prática, uma ficção conveniente para justificar a autoridade.

Mas, se o contrato social é uma construção hipotética, o consentimento contínuo é real. Ele se manifesta no limite da obediência voluntária, na aceitação tácita de regras que não esmagam, na convivência com instituições que não invadem. É por isso que toda estrutura política justa deve operar com parcimônia: não basta ser votada, deve ser aceita. Não basta ser legal, deve ser legítima. A legitimidade nasce do reconhecimento interior de que a regra é justa — ou, no mínimo, tolerável. Quando esse sentimento se desfaz, o poder precisa da força.

E o “progressismo” de hoje, travestido de virtude universal, tem testado esse limite. Quando valores identitários ou morais são impostos por decreto, sem espaço para dissenso, a obediência se torna resistência passiva. O cidadão se cala, mas não consente. Tolera, mas não respeita. Cumpre, mas não crê. E esse abismo entre o dever externo e o repúdio interno corrói os fundamentos da convivência democrática.

A verdadeira ordem social não se constrói com silêncios forçados, mas com consentimento legítimo — aquele que respeita a liberdade de consciência. Nenhuma política que obrigue a adesão moral pode ser justa. Nenhuma lei que reeduque almas pode ser boa. O papel do Estado não é formar consciências, mas proteger espaços para que cada consciência se forme por si.

David Hume desconfiava das abstrações políticas – e com razão. O progresso real, dizia ele implicitamente, é mais fruto da estabilidade que da ruptura. Evoluímos quando preservamos a paz, quando mantemos a confiança nas instituições e quando rejeitamos a tentação de governar demais. A liberdade não nasce da utopia; nasce do limite.

Mas, quando se perde o limite, até a linguagem perde o sentido. Como em 1984, não basta obedecer — é preciso amar o Grande Irmão. A divergência deixa de ser erro para se tornar heresia. A discordância não é mais um direito, mas um desvio. Palavras são redefinidas, emoções policiadas, consciências moldadas. O que se exige já não é só conduta, mas convicção. Não basta calar: é preciso concordar. Não basta respeitar: é preciso sentir o que se manda sentir.

Nesse cenário, o progresso vira distopia. A virtude, instrumento de controle. E o “bem comum”, um eufemismo para poder concentrado. 1984 foi escrito como um alerta. Quando a política começa a imitar a ficção distópica, é sinal de que ultrapassamos a linha que separa o progresso da opressão.

Talvez seja o momento de recuperar o espírito de resistência que um dia inspirou a Gadsden Flag: não como nostalgia, mas como advertência. Porque a liberdade não precisa ser imposta a ninguém — apenas protegida de quem quer impô-la à força.

*Originalmente publicado no site de Claudio Dantas. 

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Leonardo Correa

Leonardo Correa

Advogado e LLM pela University of Pennsylvania, articulista no Instituto Liberal.

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